Mariana Correia Pinto (texto) e Paulo Pimenta (fotografia), in Público on-line
O novo coronavírus tornou o tacto proibido, a proximidade um perigo, o volume do mundo diferente. Como se orientam, agora, as pessoas cegas? Como imaginam as cidades sem gente? ACAPO fala numa reaprendizagem e já adoptou medidas
Henrique Santos guarda o mapa da cidade na cabeça. Percorre-a todos os dias, sozinho, e conhece-lhe de cor a calçada irregular, as ruas mais ou menos estreitas, os caixotes do lixo e semáforos no caminho, os bancos de pedra e recantos de serenidade. Mas o mapa de Henrique desenhou-se antes da pandemia global e da revolução geográfica por ela imposta – e agora, nas mesmas ruas, praças ou avenidas, quase sem gente nem ruído, já nada lhe parece o mesmo. De repente, viu-se transportado para outro lugar, “silencioso e vazio”, bem longe do Porto. “É como se estivesse numa aldeia”, diz: “É uma nostalgia tremenda para quem se habituou a ver a cidade louca.” Henrique Santos é cego. Mas conjuga o verbo ver. Usa-o a toda a hora. “A gente não vendo, vê”, tenta explicar, rosto virado ao sol. “Apenas vemos de outra maneira.”
Essa “outra maneira” declarada por Henrique Santos traduz uma verdade simples: a cegueira não é apenas a falta de um sentido, mas também a ampliação e transformação de outros. Tomé Coelho, presidente da Associação dos Cegos e Amblíopes de Portugal (ACAPO), tem a frase sumária na ponta da língua: “As mãos são os nossos olhos.” E os ouvidos “também ajudam”. Mas agora que o novo coronavírus tornou o tacto proibido e mudou o volume do mundo, como se orienta quem não vê? “Temos todos de reaprender. Há novas dificuldades a juntar às velhas”, responde Tomé Coelho.
A adaptação é complexa e contraria ensinamentos de anos - mas fazê-la é um acto de sobrevivência. À porta de um dos prédios altos e brancos da urbanização Vila D’Este, uma mini-cidade de 17 mil habitantes dentro de Vila Nova de Gaia, está Marlene Brandão. Traz dois sacos para depositar no contentor do lixo e a chave do correio na mão. “Se contar duas caixas de baixo para cima, sei que é a minha, o 5º A. Dantes apalpava, agora tento reduzir ao mínimo o contacto.” A bengala vai à frente, na mão direita, a mesma onde ostenta uma pulseira do FCPorto, mas Marlene, 42 anos de vida e nove de cegueira total, até saberia orientar-se sem ela, não fossem os obstáculos criados por alguns, como o sofá e brinquedos abandonados no passeio por onde caminha. Geralmente, confessa, prefere andar na rua, fugindo melhor de cocó de cães e incivilidade alheia.
Metros à frente, aguarda à porta da “Broas e Broinhas”, padaria exígua da urbanização onde só entra um de cada vez. “Quando a dona Júlia me vir chama-me”, comenta. Pede dois pães, confia que escolham os mais torradinhos agora que não pode tocar no saco plástico para eleger pela textura, bebe um café em embalagem descartável. Segue para a mercearia a poucos metros: “Venho sempre a esta porque é a única onde ainda me deixam escolher a fruta e os legumes.” Pega em tomate, pepino, repolho. Regressa a casa.
Marlene Brandão nasceu com problemas de visão. Era menina pouco dada a bonecas e com um sonho impossível: “Queria ser camionista, como o meu pai. Ter uma empresa com ele e andarmos juntos na estrada.” Um glaucoma congénito, a ausência de íris e cataratas nos dois olhos seriam travão a fundo nesse futuro, mas Marlene soube sempre reinventar desejos. No 10º ano, já com acuidade visual muito baixa, mudou-se para um colégio dedicado a pessoas cegas no Porto. Aprendeu a compreender o espaço, a usar bengala, a ler em braille. Fez um curso de telefonista e cumpriu o primeiro estágio na APPACDM - Associação Portuguesa de Pais e Amigos do Cidadão Deficiente Mental. “Para mim foi muito importante ver como havia gente pior do que eu. A minha deficiência não é deficiência, é uma limitação.”
Agora, porém, os limites apertaram. Para evitar o toque, fundamental para as pessoas cegas, tornou-se mais dependente e insegura. Para cumprir a ordem de distanciamento, tem de contar com a acção de outros: “Se me aproximar de alguém que está em silêncio, não sei que estou a fazê-lo.” Nos autocarros, por exemplo, corre o risco de entrar e sentar-se junto a alguém. A ajuda externa tornou-se ao mesmo tempo mais precisa e menos desejável por implicar proximidade. São dias de “grande frustração”. E de medo também. “Este bicharoco é mesmo invisível e tenho muito medo dele.”
O inimigo invisível para todos
Marlene diz invisível e explica-se. “Os nossos inimigos seres humanos não são invisíveis. Vemos com o resto do corpo: com o som, com o tacto. Este é mesmo invisível, é igual para todos.” Henrique Santos usa o mesmo adjectivo para classificar o SAR-Cov2 – invisível –, mas recusa o medo. “Só tenho de me acautelar. Uso desinfectante. Máscara não, os médicos não aconselham.” Ouviu dizê-lo nos noticiários das suas emissoras de preferência, a TSF e a Antena 1, companhias fiéis num rádio a pilhas que traz pendurado no sobretudo cinza. Henrique Santos já morou na mesma urbanização de Marlene – mas isso foi antes de uma revolução na sua vida, antes de perder um emprego de anos como revisor de livros em braille, de se divorciar e apartar da família. Hoje, vive sozinho num quarto de uma pensão, paga 10 euros por dia. Ao Rendimento Social de Inserção e à Prestação Social para a Inclusão, junta esmolas angariadas na estação de São Bento durante o dia e na Rua das Galerias de Paris à noite. Mas sem gente a circular, “esse rendimento desapareceu”.
Faltam poucos minutos para o meio-dia e Henrique Santos, cabelo grisalho e cachecol felpudo, é o primeiro de uma fila de dezenas de pessoas no Beco de Passos Manuel, centro do Porto. Nunca tanta gente foi à Associação Católica Internacional ao Serviço da Juventude pedir comida, vai contando quem aguarda. Pessoas em situação de sem-abrigo, homens e mulheres com rendimentos encolhidos pela crise pandémica, gente como Maria da Costa, gorro de Portugal e mochila fluorescente de menina de primária a contrastar com os seus 75 anos. A fila forma-se à porta, o uso do lavatório à entrada é obrigatório.
Henrique sai com um saco na mão. O “conduto” ficará para o jantar, ao almoço comerá sopa e um pão. Por estes dias, perdeu o restaurante de preços económicos onde enganava o estômago e teve de atalhar outras soluções. Desce a Rua de Passos Manuel, vira à esquerda em Sá da Bandeira, inicia a caminhada pela íngreme 31 de Janeiro. O som das gaivotas na cidade silenciosa é mais estridente do que nunca. “Estamos quase a chegar”, vai dizendo o homem, “portuense de gema”, 61 anos. Vai junto aos edifícios, a bengala a tocar-lhes de vez em quando. “Pelo som sei onde estou.” Chega à pensão, sobe as escadas em caracol apoiando o cotovelo em vez da mão.
Em Portugal, segundo dados dos Censos de 2011, há 892 mil pessoas com “muita dificuldade" visual e quase 28 mil cegos. A ACAPO reproduz o discurso de Marlene Brandão quanto às dificuldades maiores do momento: a subtracção do tacto na vida destas pessoas traz enormes problemas, a distância de segurança é difícil de cumprir, o uso de transportes, numa população impossibilitada de usar veículo próprio, é mais perigoso. “São coisas que habitualmente não são um problema e agora sim”, aponta Tomé Coelho.
Contra o isolamento e a tristeza
Com isolamento forçado e angústia aumentada, a ACAPO teme os efeitos psicológicos. Por isso, mesmo com o atendimento presencial cancelado, tem psicólogos, terapeutas e outros profissionais em teletrabalho a contactar os associados. Conversam, confortam, avaliam necessidades. Com algumas parcerias, garantem a entrega de bens alimentares, refeições e medicamentos em casa – quem precisar só tem de contactar a associação. Assim como para obter um leitor de ecrã, software que permite o acesso à informação através de voz ou caracteres aumentados. “Podem pedir por 90 dias, as licenças são gratuitas. É uma companhia e uma forma de se manterem mais informados.”
Na delegação do Porto – “segunda casa das pessoas cegas”, como diz a dirigente Paula Costa – pediu-se aos associados relatos dos maiores receios e obstáculos em dias de pandemia: o medo de sair, de não guardar distanciamento, de tocar e não tocar, de ir às compras e não ter restaurantes, da solidão e do futuro. “Seremos pelo menos um bom ouvido”, promete. Em breve, vão fazer sessões de poesia via Skype e o compromisso de um novo desafio a cada semana fica já firmado. Um alerta para todos: há relatos de peditórios para a ACAPO em algumas zonas do país, mas a associação não está a fazer, nem fará, nenhum pedido de ajuda. “Não dêem dinheiro e denunciem”, pede Tomé Coelho.
À porta do seu pequeno apartamento sem varanda, Marlene Brandão indica a dois trabalhadores de uma empresa de transportes onde podem colocar a bicicleta de cycling cedida, para estes dias, pelo seu ginásio. Sem as aulas de natação na piscina de Campanhã nem os jogos de Goalball, jogo praticado por atletas com deficiência visual, faz o possível para manter o corpo são. Embora o tecto em vez do céu seja a antítese da sua existência: “Eu sou da rua, do desporto. Aqui sinto-me um passarinho preso na gaiola.”
Falta-lhe o ruído dos automóveis no asfalto da auto-estrada vizinha. As palmas batidas em uníssono nos primeiros dias da pandemia. Faltam-lhe os risos e vozes das crianças da escola primária mesmo abaixo da sua janela, o seu relógio natural. “Quando as ouvia a brincar no escorrega sabia que era hora do intervalo das 10h30. Agora não as ouço, às vezes esqueço-me da hora de almoço”, explica “É tudo muito triste. Há nove anos, também em Março, estava a ficar cega. Agora, Março de novo… Nunca me esquecerei dele.” Desempregada e sozinha em casa, abraça “Brandão”, um cão de peluche que é “companhia de guerra”, como se amansasse o mundo áspero. E procura visitar os dias felizes, as vivas “memórias visuais” guardadas na mente. Quando pensa no Porto, no entanto, imagina-o deserto, fechado, melancólico. “Como se fosse sempre 1 de Janeiro” e a cidade vivesse a “ressaca” de uma longa noite de passagem de ano. Mas, desta vez, sem fogo de artifício.


