20.4.20

Os Direitos Humanos invisíveis nos tempos de Covid- 19

Susana Amador (Opinião) in DN

As Nações Unidas lançaram um relatório sobre o impacto da pandemia de Covid-19 sobre os avanços alcançados, durante décadas, para a igualdade de género.

O documento revela que a pandemia pode reverter conquistas sobre os direitos das mulheres e pede que a liderança e a contribuição feminina sejam o centro dos esforços de recuperação contra o novo coronavírus.

O secretário-geral da ONU, António Guterres, em mensagem sobre este tema ressaltou que cerca de 60% das mulheres em todo o mundo trabalham na economia informal, recebendo salários inferiores e sob grande risco de cair na pobreza extrema.    

Começam a ser preocupantes e até angustiante a perda de milhões de postos de trabalho pelas mulheres, sobre as quais incide igualmente (por falta de partilha) as tarefas de cuidar das crianças e dos idosos, em trabalhos não-remunerados. 

Existe ainda outra realidade penumbra para o qual nos alerta este relatório da ONU, quando evidencia que a pandemia e as medidas de confinamento estão a traduzir- se num aumento nos casos de violência doméstica. 

Os dados oficiais revelam que somente no ano passado, uma em cada cinco mulheres foi vítima de violência. E muitos dos agressores estão em casa por causa da quarentena, com todos os riscos e perigos que essa presença em clima de tensão acrescida pode gerar.


Estão assim a surgir novos perigos, face a esta novo paradigma para o qual todos devemos estar atentos. Os pedidos de apoio, quer de vítimas de violência de género, quer de violência contra as crianças, registou subidas nos países mais atingidos como na China, em França ou no Reino Unido. 

Em Portugal, neste domínio, o Governo está a reforçar a capacidade de resposta da Rede Nacional de Apoio às Vítimas de Violência Doméstica (RNAVVD), para fazer face às consequências do isolamento social imposto para combater a pandemia da Covid-19.

Com efeito, mais duas estruturas temporárias de acolhimento de emergência, que vão dispor de quartos de isolamento, com vaga para mais 100 pessoas serão uma enorme mais-valia. Estes dois locais de acolhimento juntam-se, assim, aos 65 já existentes e em pleno funcionamento.

Nestas estruturas será implementado um plano de contingência e de atuação, que inclui a "criação/reforço dos meios de comunicação/atendimento à distância; reforço do atendimento telefónico; monitorização das situações em acompanhamento com maior regularidade; designação de uma equipa para situações e pedidos de urgência; atendimento presencial em situações urgentes, com equipas em rotatividade e articulação estreita com outros serviços e autarquias para responder a necessidades urgentes de acolhimento".

São muitos os desafios que a pandemia do novo coronavírus impôs aos sistemas de saúde e da educação de todo o mundo,  provocada por um vírus que apesar de não olhar a geografias, na verdade não atinge todos os países e povos da mesma maneira. 


Em África são já diários os reportes do aumento da fome e da perda de vidas humanas até no âmbito da saúde materna, com mulheres a morrer em trabalho de parto por não conseguirem aceder ao hospital como no Uganda.  

Igualmente nos campos de refugiados, designadamente na Grécia, são muitos os dramas dilacerantes que se vivem, que já existiam antes da crise sanitária e agora avolumaram-se.  À vulnerabilidade a que estavam sujeitos soma-se agora o isolamento e todos os custos que este transporta para aqueles "que dormem ao relento em lençóis de chuva e camas de vento ".

Com a interrupção dos programas de acolhimento, a suspensão dos procedimentos de asilo e a quarentena, os refugiados na Europa estão assim mais expostos e frágeis do que nunca à nova pandemia de coronavírus.

O que temos sabido ultimamente sobre estes seres humanos tão frágeis e vulneráveis, em particular sobre as mulheres e crianças refugiadas? Sublinhe-se que existe ainda um número muito alargado de menores desacompanhados, que estão totalmente desprotegidos. Sobre estes "invisíveis "não há boletins diários, fogem às estatísticas e deixaram de ter a lente da comunicação social.

Apesar de estamos focados nas nossas próprias frentes de luta, temos que fazer um esforço para sair do casulo individual e da bolha dos nossos territórios.

Com efeito, urge tratar desse vírus maior que é a indiferença perante a fome, perante os conflitos armados e face a outras doenças que matam furiosamente e para as quais as vacinas existentes há muitos anos que teimosamente não chegam a quem delas mais precisa.

Na verdade, precisamos de inverter todas as desigualdades e em particular a desigualdade entre homens e mulheres que em momentos de crise de larga escala provoca sempre inaceitáveis recuos nos direitos das mulheres.

Essas crises são também uma ameaça na proteção das crianças, que longe das escolas por estas estarem encerradas em 188 Países no mundo, estão também mais longe do olhar atento dos seus professores e educadores.

Preocupamo-nos com as ruas desertas, mas devemos acima de tudo preocuparmo-nos com os líderes mundiais desertos de alma. Infelizmente temos muitos maus exemplos dessas frias lideranças a pairar em diversas latitudes. 

Os direitos humanos e a proteção internacional não podem ficar de quarentena, há que os defender diariamente sem tibiezas, sem recuos, sem bolhas de isolamento que não nos deixam ver as atrocidades que estão a ser cometidas.

Afinal, se à luz da Declaração Universal dos Direitos Humanos, "todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos, dotados de razão e de consciência, devem agir uns para com os outros em espírito de fraternidade" então mesmo em tempos de pandemia, impõe-se que possamos agir em conformidade com a letra e espírito dessa Declaração que impõe a universalidade dos direitos humanos, sem confinamentos e sobretudo sem máscaras.