15.2.21

A história de cinco alunos sem acesso às aulas online em casa mostra como a pandemia acentua desigualdades - Eles não estudam em casa

Hugo Franco (texto), Tiago Miranda (fotos), in Expresso

Isaac Fernandes, nove anos, é um miúdo reguila que põe à prova todos os que o rodeiam. Na primeira aula online de Inglês do novo confinamento não parou de mexer as pernas, perder o lápis, baloiçar o banco e até saiu para ir à casa de banho enquanto a professora Marta Moreira lhes relembrava as partes do corpo e as divisões da casa. Na casa onde mora não tem computador e por isso, no ano passado, durante o fecho das escolas, não pôde assistir às aulas. Vive com os pais, três irmãos, a tia e dois primos num pequeno apartamento no Cabeço do Mouro, em São Domingos de Rana (Cascais), um bairro de habitação social de prédios branco e rosa.

Ali as famílias vivem com empregos precários ou estão no desemprego, e acolhem nas apertadas casas os familiares que vão chegando da Guiné e Cabo Verde à procura de novas oportunidades. Esta segunda-feira, no reinício do ensino à distância, Isaac Fernandes ia novamente ficar afastado das aulas se não fosse o trabalho de formiguinha do agrupamento de escolas Frei Gonçalo Azevedo e da Santa Casa da Misericórdia de Cascais.

Como o apartamento onde mora é já pequeno para as muitas pessoas que lá vivem, foi sugerido à família que Isaac acompanhasse as aulas num computador na eco-ludoteca [espaço de animação cultural e social] situada no bairro. Entre as 10h15 e as 11h desta manhã de segunda-feira, esteve juntamente com o seu colega de turma do 4ºB, Ricardo, os dois com máscara, e ao lado de duas técnicas da Santa Casa da Misericórdia de Cascais, a acompanhar a revisão da matéria dada pela teacher. Mas ele não vai muito à bola com o Inglês. “Gosto mais de Português e de jogar à bola.”

Com o telemóvel a tocar a toda a hora, Sónia Martins, coordenadora de uma equipa da Misericórdia de Cascais, explica que ali, na eco-ludoteca, há seis alunos a terem aulas online, número que deverá aumentar nos próximos dias. A equipa técnica acompanha ainda outras crianças noutras escolas do mesmo agrupamento. “Há ainda alguns meninos sem computador para ter as aulas síncronas. Há outros miúdos que até já têm computador em casa, emprestado pelo Ministério da Educação, mas os pais não sabem sequer mexer neles, não conseguindo por isso ter acesso às aulas online. Há muita iliteracia digital. Outros têm computadores antigos que não dão para fazer ligação por Zoom [uma das plataformas usadas nas aulas online].”

Só em Cascais existem, de acordo com o vereador da educação Frederico Almeida, “entre 200 a 300 alunos” que se deslocam à escola para terem aulas online por não terem computador em casa. Em todo o país, a Associação Nacional de Dirigentes Escolares estima que haja pelo menos 300 mil estudantes sem equipamento informático para assistir às aulas.

Mal termina a aula de Inglês de Isaac e de Ricardo na eco-ludoteca, Sónia Martins mete-se no carro com duas colegas para ajudarem uma família que não consegue entrar no Zoom. Entram equipadas com fatos anticovid em casa de Eugénia Nunes, tia de duas raparigas de sete e 12 anos e de um rapaz de 13 anos que há cerca de cinco anos foram retirados aos pais pela comissão de proteção de menores, por problemas relacionados com dependências. “Não lido muito com computadores e lembrei-me de vos pedir ajuda”, diz Eugénia enquanto as técnicas acedem aos três portáteis cedidos pelo Ministério da Educação. O problema técnico é resolvido com relativa rapidez, o que permite aos jovens assistirem às próximas aulas sem percalços.

SEM TÉNIS E SEM AULA

Às duas da tarde, na Escola Básica de Trajouce (Cascais) não há correrias, gritos e risos de crianças pelos pátios, salas e corredores. O silêncio é quase total. É preciso chegar à sala de expressões artísticas para ouvir as conversas soltas entre três rapazes, o Marinho e o Yusson, ambos de seis anos, e o Jaílson, de sete. Estão às voltas com os portáteis cedidos pelo Ministério da Educação com a ajuda de Marcos Braz, animador naquele estabelecimento de ensino. É ali, na zona com mais rede da escola, que vão ter as aulas enquanto se mantiver o lockdown.

A ausência de pessoas e das rotinas das aulas deixa as três crianças um pouco confusas. “Gosto mais de quando estão cá os meus amigos e jogamos à bola ou brincamos juntos”, diz Yusson. O rapaz mais velho anda de meias pela sala. “Os ténis estão-me apertados”, queixa-se. A mãe de Jaílson retirou o par de ténis coloridos de um caixote do lixo para o filho, mas com aquele tamanho só serviriam ao seu irmão mais novo. “Trata-se de uma família com muitas dificuldades económicas”, explica Marcos Braz. Também os outros dois meninos provêm de um meio “muito modesto”.

O bairro em redor da escola é habitado por “famílias com contextos complicados”. O animador sente que há muitas crianças que passam os seus dias muito sozinhas. Os pais ou estão a trabalhar ou, se estão em casa, não lhes conseguem dar apoio nos estudos. “O nosso problema é a carência.” Carência de alimentos, bens e também de afetos.

Devido a problemas técnicos, Jaílson não teve aula Zoom. Os outros dois rapazes também não tinham tido aulas no período da manhã porque o filho da professora do 1º ano fora submetido a uma pequena cirurgia. Mas ela faz-lhes uma surpresa e aparece na escola. “Estão bons os meus meninos?”, pergunta Tânia Branquinho com doçura. As crianças mostram um sorriso aberto e pedem-lhe para ir até à sua sala de aula habitual.

A professora deixa-os brincar um pouco na sala vazia e com cadeiras empilhadas em cima das mesas. Olha para eles sem esconder alguma preocupação. “Continuamos a ter os mesmos problemas do primeiro confinamento: as famílias não têm computador, muitas não sabem ler nem escrever e se estes miúdos não viessem agora à escola não conseguiam aprender nada. Mas não se pode pedir muito mais porque os pais atravessam grandes dificuldades”, resume antes de se despedir de Marinho, que queria ficar um pouco mais na escola, e de Jaílson, que mostra notórias dificuldades a andar com os ténis.

Já Yusson fica encostado à porta da sala à espera que alguém da família o venha buscar. Foi um primo de 15 anos que o levara até à escola, substituindo a mãe que está a trabalhar e o pai que não vive com eles. Apesar das inúmeras tentativas de Sónia Martins a digitar o número de telemóvel, o jovem familiar teima em não atender. Yusson parece mais frágil agora que não tem os dois amigos para brincar e à medida que a escola vai ficando ainda mais silenciosa. Por fim, a professora e a técnica acabaram por levar o aluno de seis anos a casa. O primo esquecera-se dele.

COM ISABEL LEIRIA

NÚMEROS

37
mil almoços chegaram a ser servidos nas escolas em alguns dias desta semana. Na primeira semana de pausa letiva a média foi de 21 mil. Em abril de 2020, no primeiro confinamento, tinha sido de 10 mil


2600
filhos de trabalhadores dos serviço essenciais recorreram a alguma das 700 escolas de acolhimento abertas na pausa letiva. O número é agora superior, já que muitos precisam ir à escola para terem um computador a funcionar ou apoio para estudar