12.2.21

Confinamentos afectam a saúde física e mental de crianças e jovens. São precisas mil e uma estratégias para compensar

Maria João Lopes, in Público on-line

Da saúde física à mental, passando por questões de socialização e de aprendizagem, são vários os desafios que períodos de confinamento, sem escolas abertas, colocam a pais com crianças e adolescentes em casa. As soluções para um problema que consideram “complexo” nem sempre serão simples de pôr em prática, tudo é “desafiante”. Ainda assim, poderão implicar tentar ter algum tempo para eles, ter atenção a sinais de irritação, desafiá-los a fazer exercício, e promover actividades em conjunto, seja brincar, pintar, ver um filme, uma série ou dançar.

O cenário repete-se: confinamento, creches e escolas fechadas, crianças enfiadas em casa todo o dia, muitas em apartamentos, pais tensos, em teletrabalho e sem disponibilidade para dar a atenção necessária. Pode haver mais agitação, mais birras. Adolescentes isolados no quarto. Muito tempo em frente aos ecrãs. Os problemas que crianças e adolescentes (e pais) enfrentam em mais um período de restrições apertadas, imposto pela pandemia provocada pelo SARS-CoV-2, são conhecidos de muitas famílias e o desafio para superá-los é grande.

O psicólogo Eduardo Sá alerta: “Não vale a pena ter a ideia de que as crianças passam por isto sem se molharem.” Ainda assim, o psiquiatra Diogo Guerreiro deixa uma mensagem de esperança: “Acredito que possa ser tudo recuperável.”

Diogo Guerreiro, médico psiquiatra, doutorado na área da saúde mental na adolescência, considera “complexo” enumerar os impactos que períodos de confinamento como este podem ter na saúde mental e física de crianças e jovens: “A nível de saúde física, é óbvio que temos, nesta fase, vários problemas. Uma parte do desenvolvimento psicomotor, que deviam estar fazer na escola, na Educação Física, nos desportos, no ballet, no basquetebol, ficou ausente. Temos uma série de miúdos fechados em casa, a maioria provavelmente sem jardins e espaços exteriores. Temos aí um obstáculo ao desenvolvimento físico deles e estamos apenas nesta parte específica. Os miúdos devem estar a brincar e a saltar, e isso acaba sempre por afectar o desenvolvimento físico e psicológico do cérebro”, começa por explicar.

Mas estes períodos de confinamento também afectam “a vertente psicossocial” – “a maturação, a maturidade”, a forma “como lidam com o stress, a rotina” – e a “socialização”. Como? “O nosso desenvolvimento enquanto seres humanos é feito através da forma como socializamos uns com os outros, nos adolescentes é fundamental a relação com professores e outros colegas. Estes confinamentos põem uma série de crianças e jovens em risco. Não quer dizer que não possa ser recuperado e minimizado. E que, tendo em conta estas limitações que vivemos, não se possa contornar.”

Para isso, Diogo Guerreiro deixa alguns conselhos: “Os jovens devem manter a sua rotina, dentro do possível. Se o pai tem um filho pequeno em casa, talvez não seja boa ideia estar todo o dia em frente à consola ou à televisão. Manter alguma actividade física, mesmo que seja em casa, mesmo que seja através do YouTube, fazer um passeio higiénico. Tentar incentivar miúdos que estão em casa a manter o contacto com os outros por via tecnológica, para que conversem uns com os outros, até mesmo quando estão a jogar nas consolas, o que retira um certo ónus negativo ao tempo que passam nas consolas.”

Será, porém, inevitável que passem mais tempo de olhos nos ecrãs: “Nestes confinamentos, claro que os miúdos vão estar mais tempo em frente aos ecrãs. Mas estamos um bocadinho preocupados, na psiquiatria, com eventuais adições, vícios, a videojogos e redes sociais.” O que fazer, então? “Temos de cumprir o nosso papel de pais, mesmo nestas condições adversas, e limitar um pouco o tempo que passam em frente aos ecrãs, conversar com eles sobre isso. Proibir não faz sentido, mas criar regras adaptadas à idade. Nesta fase, mais do que nunca, a comunicação entre a família é essencial”, diz o psiquiatra.

Neste cenário, há um grupo, o dos filhos únicos, que o psiquiatra admite poder sentir-se ainda mais isolado: “Os filhos únicos estão mais isolados. Especialmente se forem irmãos de idades parecidas, acompanham-se muito mais. Esta parte da socialização, mesmo sendo diferente, está mais preservada. No caso dos filhos únicos, podem realmente sentir-se muito mais solitários e a solidão faz muito mal ao nosso funcionamento e ao nosso cérebro. A sensação de solidão está mais associada a quadros depressivos, mas podemos estar sós e não nos sentirmos sozinhos”, diz Diogo Guerreiro, salientando novamente ser “importante” que os pais promovam “algum tempo com amigos por videochamadas” e falarem “com os filhos”.
“Miúdos têm muito mais neuroplasticidade”

Claro que os miúdos de idades mais novas “têm uma capacidade de atenção muito mais reduzida do que os mais velhos”, sendo, por isso, mais difícil usar a tecnologia para estabelecer grandes contactos: “Em idades mais novas, é mais difícil. Com três, quatro anos, ainda ligam pouco a videochamadas. Por outro lado, a principal fonte de bem-estar nestas idades é as famílias, a principal coisa é as famílias tomarem conta deles”.

O psiquiatra deixa como conselho aos pais que “se cuidem, estejam bem e tirem um pouco para brincar com eles, fazer pinturas e desenhos”, já que “as videochamadas não funcionam muito bem até ao primeiro ciclo”. Outro conselho “é estarem disponíveis para todas as perguntas das crianças, respondendo o mais honestamente possível e adaptado à idade”. Devem ainda ficar alerta para um eventual aumento de birras, irritação, e dificuldade em dormir à noite.

Apesar de todos os problemas identificados, é possível uma mensagem de esperança: “Acredito que possa ser tudo recuperável. E que será uma altura passageira, e os miúdos têm muito mais neuroplasticidade, acredito que poderá ser reversível, mas poderá haver alguns atrasos, na motricidade, socialização, alguns atrasos, sim, mas não irreversíveis, serão recuperáveis”, diz Diogo Guerreiro, alertando, porém, que os pais precisam “de ter algum tempo” para os filhos e que "não é realista pensar” que “podem estar em teletrabalho e dar” esse apoio, havendo idades em que precisam de atenção quase permanente e para várias tarefas.

Para este psiquiatra, é difícil dizer em que idades isto que se está a viver poderá deixar mais marcas: “Ainda não sabemos, nunca passámos por algo parecido como isto nesta época. O que sabemos é que, nos adolescentes, entre os 14, 16, 17 anos, uma altura de muita exploração, procura de autonomia, e de se saber relacionar com o mundo, pode deixar algumas marcas. É altura de grandes aventuras com amigos, namoros, sexualidade, e [isso] poderá ficar estagnado. E poderá ser complicado se houver esta sensação de perda, se vier um sentimento de medo, se os jovens, que percebem o que é morrer, começarem a ficar com este medo. Mesmo quando isto estiver tudo passado, podem desenvolver problemas relacionados com medos de doenças, por exemplo.”

Quanto às crianças, Diogo Guerreiro considera que “depende muito do que se passa com a família e de como gere isto”: “Têm o cérebro muito neuroplástico, se for bem gerido pela família, provavelmente, as consequências serão menores. Poderá haver algum atraso a nível motor ou de socialização, mas recuperável. Embora, se o stress e medo forem grandes na família, com perdas por exemplo, a situação possa ser diferente. Sabemos que o que se passa na infância pode levar a quadros de doença mental na idade adulta”, ressalva.

O psicólogo Eduardo Sá também considera que os impactos destes confinamentos, com escolas fechadas, em crianças e jovens dependem da “gestão” que os pais consigam fazer da situação, da “disponibilidade” que têm e até do espaço onde habitam. Refere que, com pais em teletrabalho ou, então, com famílias que moram num apartamento de 50 metros quadrados, e com alguns membros do agregado isolados com covid-19, “tudo fica mais condicionado”. Reconhecendo todas as dificuldades em questão, o psicólogo considera que “mal seria” que uma criança “não ficasse tendencialmente agitada” quando está “fechada em casa, sem espaço para outras actividades” que não sejam entre “a sala e o quarto”.
“Turbulência absolutamente fora do vulgar”

Eduardo Sá compreende que “os pais não se conseguem desdobrar” e que “entreguem um pouco” do tempo das crianças “à televisão e aos jogos de vídeos, para que estejam quietas e caladas, mas também é importante ter a noção” de que tal “altera o comportamento delas”: “Se deixarmos duas horas a uma tarde aos cuidados dos ecrãs, as crianças ficam agitadas e irascíveis, ficam com perturbações de comportamento. Num contexto destes, com crianças e pais tensos, preocupados, cansados, que reagem numa espécie de pingue-pongue em relação a isso, temos em mãos todo um patamar de desencontros que podem ser significativos, e que podem ser tanto mais quanto mais isto durar. Não vale a pena ter a ideia de que a crianças passam por isto sem se molharem.”

E acrescenta: “Depois de tanto [tempo] fechados no quarto, seguramente que os nossos filhos vão ter com o quarto, no futuro, uma relação menos apaixonada.” Questionado sobre se é recuperável o que, eventualmente, crianças e jovens perdem com este tipo de confinamentos, Eduardo Sá responde: “Depende da gestão que se faça a seguir.” E ressalva que, em causa, não está apenas este e o anterior confinamento, e as alturas em que as escolas estiveram fechadas, mas também o período que se seguiu, com crianças a irem para a escola de “mantinha” ou, então, com intermitências, por causa de surtos, por exemplo, entre outras situações baralhadas pela pandemia. “Gera uma turbulência absolutamente fora do vulgar que inevitavelmente tem consequências. O que me preocupa é que as consequências nem sempre são levadas a sério como deviam”, alerta, notando que “lacunas graves” podem surgir “em termos de aquisição de competências” e que, em algumas disciplinas, pode haver “consequências muito graves” e “comprometer a escolaridade perigosamente”.

As principais preocupações do psicólogo prendem-se sobretudo com as fases de transição em todos os ciclos, do pré-escolar até à entrada no ensino superior. “Se não frequentarem o jardim-de-infância e estiverem na transição dos cinco anos para os seis, quando entrarem [no 1.º ano] levam mais limitações. Também me preocupam os muito pequeninos, se estão na transição para o jardim-de-infância, foram dois anos de ‘não toques’, ‘não te aproximes’. São lacunas que vão precisar de ser detalhadamente cuidadas”, diz Eduardo Sá. O especialista defende que, no regresso à escola e nos próximos anos lectivos, devem adoptar-se estratégias tendo em conta tudo o que aconteceu e tendo também em consideração a necessidade de “criar paridade entre alunos”, uma vez que a pandemia “acentuou uma clivagem”, entre as condições socioeconómicas de cada agregado familiar.

“Desejaria que, quando discutimos este tipo de coisas, não disséssemos que a normalidade vai voltar porque não vai ser assim”, afirma Eduardo Sá, frisando que considerar que, quando as crianças voltarem às aulas, “tudo volta à normalidade”, é revelar um “índice de distracção” “muito maior do que seria admissível”. “É uma questão que nos devia unir a todos, isto devia preocupar-nos de tal forma que devia gerar uma espécie de plano para que não tivesse outro tipo de consequências”, insiste. E que consequências podem ser essas? “Crianças que não consolidam os seus conhecimentos quando partem para o nível seguinte acabam por ter dificuldade em circunstâncias onde não teriam”, diz, referindo ser “absurdo” pensar que “o nível de atenção” das crianças num ensino que não é presencial é o mesmo.
Reservar tempo para ver filmes, séries, dançar e jogar em conjunto

O psicólogo admite que, embora não compensando a “ausência” dos colegas, o recurso que os adolescentes podem ter, através dos telemóveis e da tecnologia, para contactarem entre si, pode criar uma “almofada”. Ter irmãos também pode “atenuar um pouco” os efeitos do confinamento, mesmo que possa “dar cabo dos ouvidos e da paciência dos pais”. Tudo isto que se está a viver tem “perigos”, mas também “factores de crescimento”: “Os nossos filhos adolescentes tiveram consciência do quanto significa a liberdade”, nota o psicólogo.

Apesar de não querer dar conselhos, por “receio de estar a por pó de arroz numa questão complexa”, Eduardo Sá diz aos pais que, “se sentirem filhos a reclamar ou mais metidos consigo, devem esclarecer o que se está a passar” e que, no que respeita aos mais pequenos, por mais difícil que seja, “não entreguem a parentalidade ao babysitting dos ecrãs”.

Já a psicóloga Bárbara Ramos Dias deixa algumas dicas e até algum encorajamento para se enfrentar tudo isto. “É desafiante, em todas as idades, para os pais que estão a trabalhar, tendo de os entreter. Cabe-nos dar alternativas, se não vão passar o dia todo no ecrã. Pintar, plasticina, fazer tricô. Eles vão estar mais agitados, ansiosos, vão tender a isolar-se mais e temos de arranjar alternativas”, começa por dizer. E acrescenta: “Tanto crianças como adolescentes precisam do conforto da família. O problema é os pais conseguirem dar conforto aos adolescentes. Quanto mais os pais pedirem para sair do quarto, mais criticarem e gritarem que não arrumaram nada, mais se vão isolar.” Defende o “incentivo pela positiva”: “Se cumprires vamos fazer algo, ver um filme, a tua série, dançar, algo em que considerem divertido ir para a sala.”

Outras dicas desta psicóloga passam por, por exemplo, “desafiar a dançarem online com amigos”, “ter rotinas” e, também, “fazer exercício físico”: “Saber que a esta hora vou estar em família, naquela no tablet, naquela hora a fazer exercício, noutra a fazer algo criativo fora dos computadores”. Defende que “organização e regras” são “fundamentais”, até para “ajudar a planear” o dia.

Bárbara Ramos Dias entende que, diante da inevitabilidade de ter de “ficar em casa”, não ajuda os pais fixarem-se na ideia de que os adolescentes “estão a desperdiçar uma parte da vida”, mas antes perguntar: “Como podemos melhorar a vida dos nossos filhos? Dando colo, atenção, e ignorando birras e indisposições, nos adolescentes. Não alimentar a discussão e a zanga”, diz, notando que, um pouco depois, se deve ir perguntar “como se pode ajudar”. E sublinha a importância da partilha de algumas actividades: “Ouvir música em conjunto, ver uma série em conjunto. Antes de pensarmos nos desequilíbrios, vamos pensar em como os podemos equilibrar, e nada melhor do que colo e amor.” A psicóloga nota que estes períodos também podem ajudar os adolescentes “a trabalhar a frustração”: “Este aprender a lidar com este não gigantesco é uma aprendizagem brutalíssima.” Em relação aos filhos únicos, admite que “este isolamento pode ser mais problemático”, podendo levá-los a sentirem-se “muito sozinhos”, em todas as idades. Diz que os que têm irmãos sempre “vão discutindo” entre eles, mas ressalva que também há miúdos que “gostam de estar sozinhos”.

Aos pais, lembra ainda que não são professores, que não terão as mesmas competências pedagógicas, e que não devem desgastar a relação com os filhos por causa de questões relacionadas com a aprendizagem – questões que, acredita, terão de ser acauteladas pela escola que deverá ter em conta o que as crianças e jovens não aprenderam devidamente, nestes períodos. E insiste que os pais devem parar “um pouco": “Os miúdos queixam-se de que os pais estão sempre no computador. E, nem que seja ao final da tarde, passarem tempo juntos, a brincar ou a conversar, depende das idades, ou a dançar, os adolescentes adoram dançar.”