Joana Gorjão Henriques, in Público on-line
Os centros de alojamento temporário apoiados pela Segurança Social são provisórios, mas a pandemia trouxe mais pedidos e mais prolongados. Mães com filhos têm mais dificuldade em encontrar casa. Há quem fique mais de um ano por falta de alternativa. Chegar à habitação social é quase impossível, comentam especialistas. “Estou há sete anos neste centro e zero foram encaminhadas para casas camarárias”, diz um director.
Quando os colegas da escola de Emília, cinco anos, fazem festas de aniversário, por vezes convidam os outros para irem às suas casas. Mas Emília não pode convidar ninguém a ir ao centro de alojamento temporário onde vive. “Não pode porque não tem onde. Eu digo: ‘não podes receber amigos mas aquilo é casa, não estás na rua e não faz de ti diferente dos outros”, diz-nos a mãe, Helena Costa. “Mas é muito doloroso”, acrescenta, a chorar.
Aos 27 anos, Helena Costa foi despejada, em Maio de 2020, da casa onde vivia no Barreiro. Estava em plena pandemia e o marido, empregado na construção civil, ficou desempregado. Estiveram dois meses sem pagar renda e o senhorio pô-los fora. O filho mais novo, Wilson, tinha apenas um mês. Na altura foram para um hostel, apoiados pela Segurança Social, até que o marido seria preso, acusado de auxílio à imigração ilegal. Ela e os dois filhos seriam então encaminhados para o Centro de Acolhimento de Emergência Social – Residência São João de Deus, gerido pela Associação Vitae, concelho de Sintra. Desde essa altura que ali vivem.
Ainda recentemente, por causa das ocupações de casas municipais devolutas por mães com filhos, se relatava que era para este tipo de locais que as mulheres eram encaminhadas pelas autoridades quando ficavam na rua. Mas isto está longe de ser a solução para quem fica sem tecto. Aliás, o Estado contabiliza as pessoas que estão nestes centros com quem tem protocolos através da Segurança Social como sem-abrigo. Segundo o Instituto de Segurança Social, no ano passado ficaram alojadas em centros de acolhimento 1349 pessoas e nos últimos cinco anos chegaram aos cinco mil (apesar do pedido, o ISS não especificou a divisão por ano, nem por género, nem quantas destas pessoas eram crianças). Em 2020 os sem-abrigo ultrapassaram as 8100 pessoas.
Está sol e frio mas não podemos entrar no edifício por causa da pandemia. À porta, rodeada dos dois filhos, sentada num banco de jardim, Helena Costa tenta descrever o local. Mostra a foto de um quarto com duas camas que ela juntou para formar uma só e onde dorme com os miúdos. É um quarto pequeno, tem poucas coisas. Com os despejos, conseguiu guardar as suas coisas em casa de uma amiga. Helena Costa tem hora de entrada e de saída, precisa de justificar as suas rotinas, cumprir horários de refeições. Partilha casa de banho, a sala de convívio (que diz não frequentar), o refeitório. Quando se fala da comida, Emília interrompe: “Não gosto”. De vez em quando assustam-se com os barulhos das outras crianças ou de outro utente. Há quem desate aos berros sem razão.
Angolana, Helena veio juntar-se ao marido há quatro anos. Em Luanda, ele trabalhava na secretaria de uma universidade, ela tinha emprego num supermercado de manhã e num restaurante de tarde. O desalojamento aconteceu numa altura em que estavam proibidos os despejos, mas esse é o tipo de leis que “não funcionam para estrangeiros”, comenta.
No centro, sem documentos, com um recém-nascido no colo, Helena não trabalhou durante um tempo. Ao fim de um ano, com ajuda dos técnicos, conseguiu o título de residência. Agora trabalha como auxiliar de lar na Santa Casa da Misericórdia de Vila Franca de Xira. Isso implica acordar às 4h, sair antes das 5h30 para chegar à escola dos filhos pelas 7h, e entrar às 7h15. Já só por volta das 18h é que regressa a Belas.
Com o ordenado mínimo, recebe o abono do filho que nasceu em Portugal e que ronda os 150 euros, mas faz os descontos da Segurança Social (fica a receber cerca de 620 euros), paga 150 euros da escola da filha que ainda não tem autorização de residência - portanto não tem apoio da acção social escolar -, mais a escola do filho e mais 100 euros a uma ama para ficar com os meninos porque ela tem folgas rotativas e não há quem fique com as crianças quando trabalha ao fim-de-semana. Falta contabilizar o passe. Está a tentar a autorização de residência para a filha desde Dezembro de 2020, altura em que conseguiu a sua, mas o SEF não tem vagas.
O desalojamento aconteceu numa altura em que estavam proibidos os despejos, mas esse é o tipo de leis que “não funcionam para estrangeiros”, comenta Helena Costa
Insegurança dentro do centro não sente. Mas viver ali não é a sua ambição. “Tudo é partilhado, não há privacidade nenhuma. Fico a chorar por dentro. Convivemos com as pessoas e não sabemos se amanhã acordamos com saúde.”
Quer encontrar uma casa, pensa na filha que em breve vai precisar de estudar, e no filho que praticamente não viveu noutro lugar. Segundo conta, a assistente social insiste com ela para que procure casa mas Helena não conseguiu, até agora, encontrar nenhuma. Já se inscreveu nos concursos de habitação social de várias autarquias - sem sucesso.
Voltar para Angola está fora de questão. Em Luanda estaria numa situação ainda mais complicada; órfã de pai, e com mãe ausente, “sempre tive que lutar”, afirma. Helena faz uma pausa: “Nunca fui uma pessoa parada. Desde criança sempre tive que aprender a trabalhar para me sustentar e ter uma vida digna. Foi isso que me fez sair. Saber que os filhos estão a passar pior do que eu é muito triste. Não procuro uma casa de graça, só um sítio para os meus filhos que a minha condição económica possa pagar porque eu tenho força de trabalhar e trabalho. Se tiver oportunidade vou à luta.”
Acordar às 4h, sai antes das 5h30 para chegar à escola dos filhos pelas 7h, e entrar às 7h15. Já só por volta das 18h é que regressa a Belas
O centro tem um protocolo com o Instituto das Irmãs Hospitaleiras do Sagrado Coração de Jesus – Casa de Saúde da Idanha e no site informa-se que assegura alimentação, higiene pessoal, acompanhamento e encaminhamento social, cuidados básicos de saúde, acompanhamento psiquiátrico, apoio psicológico, apoio jurídico, actividades ocupacionais, actividades pedagógicas. Segundo a responsável, Vânia Oliveira, neste momento dos 56 utentes há dez que têm trabalho. Aqui acolhem diversos tipos de pessoas: de agregados familiares a vítimas de violência doméstica. Sete agregados e 16 pessoas estão ali porque foram despejados. Não há pessoas com consumos de droga ou álcool, diz ao PÚBLICO. No total o centro acolhia 11 crianças, com entre um e 17 anos.
“Não é uma situação fácil para as pessoas quando chegam”, comenta. “Há horários, há regras, e não é fácil. Nós compreendemos.” Por exemplo, quem precise de sair do centro fora do horário ou passar fim-de-semana fora tem que informar a técnica de referência, que depois articula com a gestora de processo da Segurança Social.
Vânia Oliveira garante que “as pessoas não saem sem a sua situação resolvida, é tudo articulado com a Segurança Social”: “A intervenção tem sempre como base o diagnóstico e são as pessoas que definem o seu projecto de vida”, explica.
Os membros de um casal heterossexual têm de ser separados, cada um fica na sua ala. Quem chega sozinho partilha quarto. A equipa ajuda os utentes na procura de emprego, a fazer currículos, e Vânia Oliveira garante que “as pessoas não saem sem a sua situação resolvida, é tudo articulado com a Segurança Social”: “A intervenção tem sempre como base o diagnóstico e são as pessoas que definem o seu projecto de vida”, explica. “Ajudamos de forma a que consigam atingir o que pretendem”.
Há quem encontre trabalho e continue a precisar de apoio, até porque para alugar casa são necessários requisitos que nem sempre as pessoas conseguem cumprir, como ter fiador e caução.
Há ainda outra tendência com a pandemia afirma Tiago Pimentel: “Tendo em conta o valor baixíssimo da prestação social que as pessoas recebem a resposta passa muitas vezes por aluguer de quartos partilhados mas vários senhorios acabaram por travar durante a pandemia. O temporário tornou-se mais longo”
Pandemia aumentou e prolongou pedidos
A descrição de Vânia Oliveira não é muito diferente da de Tiago Pimentel, responsável técnico de outro centro de alojamento temporário em Lisboa - Ponto de Luz. Há, porém, uma tendência identificada por si desde a pandemia: os pedidos aumentaram e o período médio de permanência também, ou seja, em 2020 e 2021 receberam metade das pessoas do que em 2019 porque as que ficaram, ficaram mais tempo (passaram de cerca de 200 para cerca de 100). O centro nunca tem lugares vagos: sai um, entra outro. “Nem há tempo para arrefecer as camas”, comenta. Também Vânia Oliveira identifica um aumento de permanência dos utentes.
Em geral, a esmagadora maioria dos 25 utentes são mulheres - representam 90% neste momento - e em todos os casos trata-se de pessoas que foram despejadas e estão à espera de alternativa. Há ainda outra tendência com a pandemia: “Tendo em conta o valor baixíssimo da prestação social que as pessoas recebem, a resposta passa muitas vezes por aluguer de quartos partilhados mas vários senhorios acabaram por travar durante a pandemia. O temporário tornou-se mais longo”, comenta. O PÚBLICO tentou saber junto da Segurança Social se esta era uma tendência geral ou apenas deste centro, mas não obteve resposta.
“Quem está de fora vê que uma mãe recebe 700 euros e pensa que consegue organizar -se, mas não é assim. Arranjar casa no mercado para uma família é muito difícil, são muitos obstáculos", diz Tiago Pimentel, director do centro Ponto de Luz
A média de estadia neste local para onde a SS encaminha famílias são os dois meses, afirma. Há quem fique bem mais. A ideia é que a estadia seja sempre temporária, que as pessoas fiquem o menor tempo possível porque a “instabilidade faz parte deste tipo de respostas”, comenta. “Hoje um utente partilha o quarto com uma pessoa, amanhã pode ter que o fazer com outra. E as crianças sentem essa instabilidade”, descreve.
A tentativa “é sempre que as pessoas não se acomodem”. Confessa que por vezes “fazem pressão”, quando consideram que a pessoa já tem condições para sair - algo avaliado em conjunto com as técnicas de Segurança Social responsáveis pelo seu caso. Segundo diz, neste momento não existe nenhum desses casos no centro. De qualquer forma, afirma: “Uma saída tem que ser feita de forma sólida”. Senão vira-se “contra o próprio sistema”.
São justamente as mulheres com filhos quem mais tem dificuldade de encontrar alternativa, dizem estes dois técnicos. Porque muitas vezes não têm com quem os deixar durante o dia enquanto teriam que trabalhar, porque as casas para agregados são obviamente mais caras. E encaminhar mulheres com filhos para quartos alugados também não é solução, avalia Tiago Pimentel.
O enfoque do trabalho neste centro é ajudar as mães a obter meios de subsistência, arranjarem emprego e escolas onde deixar os filhos. “Quem está de fora vê que uma mãe recebe 700 euros e pensa que consegue organizar -se, mas não é assim. Arranjar casa no mercado para uma família é muito difícil, são muitos obstáculos. Depois pedem fiador e caução e quando sabem que as pessoas estão em instituições não querem alugar.” Encontrar casa na habitação social é praticamente impossível: “Estou há sete anos neste centro onde passaram centenas de pessoas e zero foram encaminhadas para casas camarárias. Eu costumo dizer: ‘não se agarrem a esta possibilidade’ para baixar as expectativas.”
Segundo dados recolhidos pela associação Habita junto da Pordata, as mulheres são as mais afectadas pela crise na habitação. De um total de 4.068.878 agregados domésticos em 2020, 470.654 eram monoparentais e, destes, 84,75% eram encabeçados por uma mulher. São justamente as famílias monoparentais que têm maior probabilidade de ser afectadas pela pobreza (25% versus 16% no total).
Com o seu rendimento Jerusa não pode sequer pagar 400 euros de renda; e encontrar uma casa abaixo desse valor com quartos suficientes para os filhos na periferia de Lisboa é impossível, diz. Sente-se pressionada pelas assistentes sociais de Loures a sair do centro
Queixas de pressão de assistentes sociais
É, de facto, difícil chamar casa a este centro. Não podemos entrar dentro da área onde ficam os quartos por causa da pandemia, mas conseguimos ver de fora. Atravessamos uma estrada com árvores à volta, depois de passar a segurança que é sempre informada pelos utentes para onde vão. À direita há um pequeno casebre abandonado. O alojamento fica a seguir: é um pré-fabricado branco, com um pátio, onde há roupa estendida e brinquedos de crianças, vários triciclos com cores e bonecos. Tem duas alas, 25 camas, uma sala de convívio e um refeitório. Sendo uma solução de emergência “há degradação de mobiliário e necessidade de arranjar constantemente”, reconhece o director.
É ali que está Jerusa Laureano desde Junho do ano passado. A viver no Catujal, foi uma das cinco famílias despejadas por um senhorio privado em Março de 2021, depois de litígios e de uma ordem do tribunal. Primeiro foi para um hostel, depois seria encaminhada para o centro com o seu filho que agora tem 18 anos. É com ele que partilha o quarto. Já viu muita gente entrar e sair desde que ali chegou. Entretanto, as filhas de oito e 13 anos que viviam com a sua mãe em Angola vieram para Portugal mas estão com uma amiga até Jerusa Laureano resolver a sua situação. Já tem emprego, mas não tem casa: é cuidadora de uma idosa que vive em Carnaxide, trabalha dois dias seguidos, descansa outros dois; recebe o ordenado mínimo, sobre o qual desconta para a Segurança Social.
Quando chegou a Portugal há cinco anos ficou em casa de uma tia que entretanto já regressou a Angola. Viveu em quartos e enviava dinheiro para a família. Imigrou à procura de melhores condições de vida, “o que todo o imigrante faz”. Depois de uns meses, sentiu-se mal, foi ao médico - e descobriu que tinha um cancro no pâncreas. Não pode regressar a Angola por causa dos tratamentos, por isso o plano é mesmo trazer todos filhos: falta trazer ainda o filho de sete anos. A mãe de 83 anos já não tem condições, afirma. No jardim do Largo da Luz, Jerusa explica que quer que o filho que vive com ela estude mas que o processo burocrático de transferência de matrículas de Angola ainda não se efectivou.
: “Todas as mulheres queriam sair e ter uma solução habitacional diferente, mais privacidade, o seu espaço, os seus horários para reconstruírem a sua vida. A questão é que se não houver um percurso oleado para as pessoas poderem sair elas não saem porque não conseguem”, diz Sónia Nobre, autora de uma tese sobre mulheres sem-abrigo
Quando voltou a trabalhar depois de um período parada tentou encontrar casa. Com o seu rendimento não pode sequer pagar 400 euros de renda, diz; e encontrar uma casa abaixo desse valor com quartos suficientes para os filhos, mesmo na periferia Lisboa, é impossível, diz. Sente-se pressionada pelas assistentes sociais de Loures a sair do centro; diz que insistem que o filho procure emprego - “mas ele veio para estudar”, afirma - e acusa-as de proferiram ofensas depois de saberem do seu desejo de trazer as filhas para Portugal ameaçando denunciá-la ao SEF. Escreveu isto numa carta que foi enviada a várias entidades, mas não teve resposta. O PÚBLICO questionou o Instituto de Segurança Social (ISS) sobre como comenta estas acusações, mas até ao fim do dia não obteve resposta. O ISS também não explicou por que é que Jerusa Laureano ainda não tinha sido realojada, ao contrário de outras três famílias que foram despejadas ao mesmo tempo. “Por que é que as assistentes sociais resolveram o problema de umas famílias e de outras não? Estávamos nas mesmas condições”, questiona.
Sobre a sua estadia no centro comenta: “Se perguntar, ninguém gosta de estar aí. As pessoas vêm parar aqui por alguma necessidade”.
Despejos são “enorme risco”
Foi justamente isso que concluiu Sónia Nobre, autora da primeira tese de doutoramento feita em Portugal sobre mulheres sem-abrigo (Women’s Homelessness and Housing Exclusion in the Northern Lisbon Metropolitan Area: An In-depth Exploratory Study), para a qual entrevistou 34 mulheres: “Todas as mulheres queriam sair e ter uma solução habitacional diferente, mais privacidade, o seu espaço, os seus horários para reconstruírem a sua vida. A questão é que se não houver um percurso oleado para as pessoas poderem sair elas não saem porque não conseguem”, comenta ao telefone com o PÚBLICO.
Muitas das mulheres que entrevistou entre 2015 e 2018 eram mães, mas não estavam com os filhos nos centros. “Os despejos são um enorme risco. Estas mães tentam arranjar solução pedindo a instituições ou a familiares que fiquem com os filhos mas separam-se. É um momento muito perverso, perdem tudo e ainda têm que se separar dos filhos”.
Sónia Nobre chama a atenção para o facto de muitas mulheres estarem em situações de sem-abrigo escondidas como quartos alugados, casas de familiares ou amigos, em edifícios abandonados e que por isso não são consideradas sem-abrigo – erradamente
O que deveria ser feito? “O ideal seria haver uma resposta habitacional e não institucional o mais célere possível de forma a não terem que se separar e proteger as crianças do trauma que representa”, comenta.
Na sua investigação, Sónia Nobre encontrou pessoas com uma diversidade de histórias, de contexto social e cultural mas concluiu que a situação de sem-abrigo não acontece de repente, é o culminar de um processo que envolve vários factores que se sobrepõem, sendo os despejos, situações de violência doméstica, rupturas de relacionamentos, saídas de estabelecimentos prisionais ou de casas de acolhimento no caso de jovens os mais comuns.
A investigadora chama a atenção para o facto de muitas mulheres estarem em situações de sem-abrigo escondidas como em quartos alugados, casas de familiares ou amigos, em edifícios abandonados e que, por isso, não são consideradas sem-abrigo – erradamente, na sua opinião.
Em relação aos centros de alojamento/acolhimento temporários, resultou da sua análise que desempenham uma função importante na vida destas mulheres porque dão um tecto, sítio para dormir e para fazer a higiene pessoal, ajudam as pessoas a tratar de burocracia para resolver questões como receber o rendimento social de inserção (RSI) ou elaborar o currículo. “São uma alternativa à rua porque na verdade as mulheres estão ali por não terem para onde ir,” afirma. E há o aspecto emocional: muitas encontram apoio, companhia, ajuda mútua, algumas criam relações depois de terem vivido em solidão.
Os obstáculos à saída são em muitos casos os mesmos que levaram à condição de sem-abrigo: a pobreza persistente.
Mas há obviamente aspectos negativos: o tipo de estruturas, a vivência conjunta de muitas pessoas que não se conhecem, vêm de contextos diferentes e têm histórias de vida distintas – há pessoas com patologias mentais, outras com histórias de consumos, há quem seja gerador de conflitos, ou simplesmente berre.
Sónia Nobre sublinha que a literatura sobre este tema tem referido a necessidade de criar mais centros para mulheres, espaços maiores com menos pessoas acolhidas e mais pessoal. Em média, verificou que as vagas de alojamento temporário devem ser até seis meses, mas habitualmente este período é ultrapassado – das pessoas que acompanhou a que permaneceu mais tempo ficou 22 meses.
“A lei diz que as pessoas têm que ser apoiadas e encontradas alternativas, mas a realidade não é essa"
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A grande questão é que os obstáculos à saída são em muitos casos os mesmos que levaram à condição de sem-abrigo: a pobreza persistente. “Mesmo que uma mulher receba o RSI (mais ou menos 190 euros) para sair para um quarto alugado em Lisboa não encontra nenhum a menos de 250/300 euros – não consegue comportar, quanto mais os transportes e a alimentação. Muitas vezes a Santa Casa da Misericórdia apoia no aluguer de quartos, mas o problema persiste. Há uma inadequação dos valores (de apoio) e falta de soluções habitacionais a preços comportáveis”, refere.
Ouviu queixas de pressão de assistentes sociais sobre as mulheres. Algumas mencionaram que os prestadores de serviços não “têm noção clara das necessidades reais que as pessoas enfrentam”, “às vezes as pequenas dificuldades são grandes dificuldades”, comenta. “É o problema de não existirem recursos humanos suficientes. A proximidade e profundidade para perceber o que são os problemas requer tempo e qualidade com as pessoas”, afirma.
A nível da prevenção há pontos de grande vulnerabilidade como as situações de violência doméstica e de despejos: “A lei diz que as pessoas têm que ser apoiadas e encontradas alternativas, mas a realidade não é essa. É necessário prevenção a nível de redução de pobreza, protecção social, mercado de trabalho, compatibilização entre cuidar da criança e flexibilidade de horários.” Já a nível de intervenção é necessário aplicar o que está escrito na Estratégia Nacional para a Integração de Pessoas em Situação de Sem Abrigo, defende: articular, trabalhar em rede, aumentar soluções habitacionais estruturais. “Sem isso, por mais que estejamos articulados, nunca vamos conseguir dar resposta em tempo útil – as pessoas ficarem num quarto não é solução. Estas mulheres precisam de ser apoiadas, e quanto mais se prolongam estas situações mais difícil se torna encontrar solução.”