Natália Faria, in Público on-line
Depois de sucessivos atrasos, o plano de prevenção do suicídio deverá ser apresentado em Março e, além do aumento dos preços do álcool, recomenda o reforço da protecção social aos desempregados.
Certificação electrónica de óbitos
Diagnosticado o problema da subnotificação dos suicídios em Portugal, todos concordaram que a implementação do sistema de informação dos certificados de óbito (Sico) permitiria perceber, finalmente, quantas pessoas se matam afinal em Portugal em cada ano. Porém, o projecto que deveria ter entrado em funcionamento em todo o país no início deste mês ainda não saiu da fase experimental. "A questão da compatibilização dos sistemas informáticos com as conservatórias atrasou um bocadinho a situação", explica Álvaro Carvalho, da DGS.
O director-geral da Saúde, Francisco George, recusa falar em atrasos. "O sistema vai entrar em funcionamento a nível nacional quando acabar o período experimental. Em Coimbra, está a funcionar com grande normalidade", afiançou George. A experimentação do sistema que visa a certificação electrónica de todos os óbitos ocorridos em território nacional arrancou nos Hospitais da Universidade de Coimbra, a 15 de Novembro. Um mês depois foi alargada ao Agrupamento dos Centros de Saúde do Baixo Mondego.
Ao permitir a desmaterialização dos certificados de óbito, o sistema ajudará a eliminar o estigma que leva a que muitos suicídios não sejam registados como tal, alegadamente por pressão das próprias famílias. Por essa razão, é expectável que as estatísticas resultantes da implementação do novo sistema apontem para um aumento significativo dos casos.
O aumento generalizado do preço das bebidas alcoólicas e a definição de preços mínimos, nomeadamente para evitar as "borlas" nos espaços de animação nocturna, são duas das recomendações contidas no plano de prevenção do suicídio, que está na fase final de redacção. "O álcool desencadeia uma forma de depressão e esta, como se sabe, aumenta a propensão para a intenção suicida. E está demonstrado que o aumento do preço do álcool é dissuasor do seu consumo", justifica o psiquiatra Álvaro Carvalho, director do Programa Nacional para a Saúde Mental da Direcção-Geral de Saúde (DGS).
Depois de vários atrasos, o plano de prevenção do suicídio deverá avançar em Março. Nele, os especialistas recomendam ainda o reforço dos programas de emprego e a atribuição pela Segurança Social de subsídios às famílias mais atingidas pelo desemprego, porque, como salienta ainda Álvaro Carvalho, "há uma correlação directa entre o aumento do desemprego e o suicídio".
Ultrapassados alguns reveses - nomeadamente a recomposição da equipa responsável pela redacção do plano, por força da saída em Outubro do psiquiatra Ricardo Gusmão em desacordo com a metodologia adoptada -, o plano assumiu finalmente um carácter urgente. "Portugal está a assistir a um aumento do número de desempregados - próximo de um milhão - e, ao mesmo tempo, a reduzir os apoios no campo da protecção social. É uma conjugação de factores que cria as condições para que haja um aumento do suicídio", diagnostica José Carlos Santos, da Sociedade Portuguesa de Suicidologia.
Este responsável alude a um estudo publicado em 2011, segundo o qual a cada aumento de 1% na taxa de desemprego nos países da União Europeia correspondeu uma subida de 0,8% na taxa de suicídio, entre 2007 e 2009. O mesmo estudo, da autoria do investigador David Stuckler, aponta a Suécia como o único país em que não houve uma relação directa entre o desemprego e o suicídio, "exactamente porque este país reforçou os apoios no campo da protecção social", segundo José Carlos Santos.
Alcandorado nestas "evidências científicas", Álvaro Carvalho mostra-se confiante na receptividade do Governo às recomendações, apesar de reconhecer que a proposta de reforço da protecção social contrasta com a orientação política assumida. "A importância disto mede-se no próprio programa global de saúde mental que a Organização Mundial de Saúde está a preparar para 2013-2020 e que já aponta para um aumento generalizado do suicídio em pessoas na idade activa", enfatiza o psiquiatra, segundo o qual os secretários de Estado da Saúde e do Emprego foram já inteirados destas propostas. "A atitude, nomeadamente na questão do álcool, tem sido de muita receptividade. Hoje é consensual que a permissão de venda a partir dos 16 anos colide com toda a evidência científica que mostra que a capacidade de metabolização do álcool é deficitária até à idade adulta. Por outro lado, sendo o álcool uma substância psicotrópica fácil, barata e legal, é fácil de perceber o quanto potencia o descontrolo mental das pessoas e facilita as respostas impulsivas, sobretudo em períodos de crise social e económica".
Porque "em 60% dos suicídios as pessoas consultaram o médico no mês anterior", o plano de prevenção do suicídio recomenda acções de sensibilização dos profissionais dos cuidados de saúde primários, nomeadamente dos médicos de família "para aumentar a capacidade de diagnóstico e de terapêutica". Álvaro de Carvalho sublinha a propósito que "Portugal é dos países da UE em que as pessoas em situação de sofrimento emocional mais frequentemente procuram os cuidados de saúde primários: 18% para uma média europeia de 11%".
A reorientação das atenções para o suicídio ocorre numa altura em que Portugal continua sem estatísticas fiáveis sobre o problema. O sistema de informação dos certificados de óbito deveria ter arrancado no início de Janeiro, mas continua atrasado (ver caixa). Enquanto isso, e contrariando a convicção generalizada de que os suicídios estão a aumentar em Portugal, o Instituto Nacional de Estatística apontou para uma diminuição do número de casos em 2011: 1012, contra os 1098 de 2010. O Instituto de Medicina Legal apresenta um número superior para 2011: 1208 casos. "É mais correcto dizer que ocorrem cerca de duas mil mortes por suicídio por ano em Portugal do que acreditar nestes números", contrapõe Ricardo Gusmão, para quem a subnotificação dos suicídios se deve mais à impreparação dos médicos no preenchimento dos certificados de óbito do que a qualquer pressão das famílias no sentido de ocultar o ocorrido. "Os médicos deviam receber formação nesta matéria", preconiza este professor na Faculdade de Ciências Médicas de Lisboa.
Em dissonância com os ex-parceiros do plano de prevenção do suicídio, Gusmão sustenta que "não há nenhum elemento que permita afirmar que o desemprego está a fazer aumentar o suicídio consumado". "Se assim fosse", diz, numa alusão às conclusões de Stuckler, "por cada 55 mil desempregados em Portugal morreriam mais 80 homens e mulheres em idade activa. Ora, isso não se verificou". Mais do que o desemprego ou o álcool ("a taxa de suicídio em Portugal está a crescer desde muito antes da crise"), Gusmão considera que os divórcios e a toma de antidepressivos "são os factores que melhor explicam a variação da taxa de suicídios, em Portugal e na Europa".