José Morgado, in Público on-line
Felizmente, como se diz cá em casa a pensar nos campos do Meu Alentejo, vai um Inverno como os de antigamente, com chuva e frio.
A propósito do frio mas também por outras razões tenho-me lembrado com muita frequência do frio da infância, uma expressão retirada da narrativa de Juan José Millás em O Mundo quando enuncia, “Quem teve frio em pequeno, terá frio para o resto da
vida, porque o frio da infância nunca desaparece”.
Na verdade, no Inverno ou no Verão existem muitos miúdos que passam frio, às vezes muito frio, e nem sempre conseguimos dar por isso. Acontece até que alguns deles sentem frio em ambientes muito aquecidos ou mesmo no Verão, como disse. Não se
trata do frio que vem de fora, daquele de que falam os alertas coloridos que nos fazem por esta época de Inverno, é o frio que está à beira, um bloco de gelo disfarçado de família ou de instituição de acolhimento, é o frio que vem de dentro e deixa a alma
congelada. Do frio que vem de fora, apesar de incomodar, acho que, quase sempre, nos conseguimos proteger e proteger os miúdos, mas dos frios que estão à beira e dos que vêm de dentro nem sempre o conseguimos fazer porque também nem sempre os entendemos ou estamos atentos ao frio que tolhe muitas crianças e adolescentes.
É também o frio que se percebe em milhares de miúdos que estão a passar mal, como fala a gente, miúdos que chegam à escola com fome. Miúdos para os quais a escola já tem que também alimentar o corpo. Muitos destes miúdos têm pequeno-almoço quando chegam à escola e alguns outros, como em Elvas, recebem ainda o jantar quando saem da escola. Miúdos para os quais as escolas mantêm abertas no período de férias as cantinas escolares que lhes assegura o aconchego do sustento. Miúdos de famílias que batem à porta das cantinas sociais e dependem da resposta das instituições de solidariedade social para assegurar a sobrevivência.
A pobreza que ameaça os miúdos é gelada. Há algum tempo, um estudo do ISEG apontava para que cerca de 40% das crianças e adolescentes vivessem em risco de pobreza, sendo que esse quadro de privação afecta sobretudo os padrões e a qualidade
da alimentação. O estudo sublinhava também, entre outros indicadores, que o grupo etário 0-17 anos é o mais vulnerável ao risco de pobreza tendo ultrapassado o dos mais velhos.
As perspectivas para o futuro próximo não parecem particularmente animadoras. Sabemos que estamos num período económico recessivo, sem criação de riqueza e que devido aos baixos salários, continuamos um dos países mais assimétricos da Europa pelo que ter trabalho nem sempre é suficiente para fugir ao risco de pobreza. Recordo um trabalho de Agostinho Silvestre apresentado no VII Congresso Português de Sociologia referindo que o facto de se ter trabalho já não constituir factor de protecção contra a pobreza. Em 2010, 12% dos trabalhadores portugueses viviam abaixo do limiar de pobreza e 16% das pessoas que em 2011 usufruíram do Rendimento Social de Inserção (35.015), acumularam esse apoio com rendimentos do trabalho, o que significa aumento da pobreza entre pessoas com trabalho.
Os indicadores sobre as dificuldades que afectam a população mais nova são algo de preocupante. Esta realidade não pode deixar de colocar um fortíssimo risco no que respeita ao desenvolvimento e sucesso educativo destes miúdos e adolescentes
e portanto, à construção de projectos de vida bem sucedidos. Como é óbvio, em situações limite como a carência alimentar, estaremos certamente em presença de outras dimensões de vulnerabilidade que concorrerão para futuros ameaçados.
É também por questões desta natureza que a discussão aberta sobre as funções do estado e o seu financiamento deve ser informada.
Relembro a história que vivi há uns anos em Inhambane, Moçambique, quando ao passar por uma escola para gaiatos pequenos o Velho Carlos Bata me dizer que se mandasse traria um camião de batata-doce para aquela escola. Perante a minha estranheza explicou que aqueles miúdos haveriam de comer até se rir, “só aprende quem se ri”, rematou o Velho Bata.
Pois é Velho, miúdos com fome, não riem, não aprendem e vão continuar pobres.
Apesar de sentir confiança na resiliência dos miúdos, expressa em muitíssimas situações de gente que sofreu e resistiu a experiências dramáticas, uns mais que outros naturalmente, parece-me fundamental que estejamos atentos aos frios da infância.
Muitas vezes, como diz Millás, quem teve frio em pequeno terá mesmo frio no resto da vida. Quando olhamos para muitos adultos à nossa volta parece também claro o frio que terão passado na infância.
O autor é professor e investigador do Instituto Superior de Psicologia Aplicada - Instituto Universitário