por Henrique Cunha, in RR
O alerta é do presidente da Rede Europeia Anti-Pobreza. “O dinheiro não é para isso”, contesta o padre Jardim Moreira, que pede a Bruxelas que chumbe este tipo de pretensões.
Cerca de 2,7 milhões portugueses vivem em situação de risco de pobreza ou de exclusão social. Os números são do gabinete de estatística da União Europeia. Calcula-se que em 2013 os pedidos de ajuda cresceram 13%, mas a verdade é que a crise e as medidas de austeridade conduziram a uma redução dos apoios sociais. Para o padre Jardim Moreira, “esta é uma realidade muito preocupante”. O presidente da Rede Europeia Anti-Pobreza alerta ainda para a possibilidade de o Governo pretender "deitar mão" a verbas dos fundos estruurais para "tapar buracos" do Estado.
De acordo com o Instituto Nacional de Estatística, 25% da população portuguesa vive numa situação de pobreza. Quem precisa de uma acção mais urgente?
A resposta não é linear. Na forma tradicional, temos os antigos pobres e os pobres de pobreza mais difícil. Agora, temos novos pobres, que perderam tudo. Estão muito mal e, se não fossem as famílias e os vizinhos a apoiarem e a assumirem muitas das tarefas, seria muito complicado. Outros abandonam o país. É como quem foge de um incêndio.
Quais as soluções?
Temos de insistir, junto da tutela, que não basta responder com emergência essencialista. É preciso pensar um plano nacional que ajude a sair desta situação sempre redundante. Isto significa que o respeito pela dignidade da pessoa humana não está a ser considerado nestas políticas de ataque à crise. Há que mudar de mentalidades, de estratégia e de políticas. Caso contrário, esta gente mais jovem vai sofrer, e sofrer arduamente.
Há algum tempo, a Rede Europeia Anti-Pobreza alertou para a necessidade de políticas capazes de dar prioridade à luta contra a pobreza. Já teve ecos desse alerta?
Não, não tenho tido. A convicção que tenho é a de que há dificuldades enormes em encontrar uma solução. Os pobres aumentaram, mas os ricos aumentaram muito mais: em número e em riqueza. A injustiça campeia neste país. Nem todos são respeitados e, assim, começamos a pôr em causa a democracia. É, por isso, urgente uma distribuição mais equitativa dos rendimentos.
O próximo quadro comunitário europeu - o QREN, Quadro de Referência Estratégica Nacional - pode constituir um importante instrumento na luta contra a pobreza?
Nós conseguimos, ao nível europeu, pressionar Bruxelas e foi consignado que uma parte dos fundos estruturais fossem para a pobreza. No entanto, a seguir, Bruxelas condicionou tudo isto quando deixou ao cuidado de cada país a gestão dos fundos segundo o princípio da subsidiariedade. E estamos a saber – e esperamos que Bruxelas não consinta – que esses dinheiros podem ser desviados para “caixas” [Geral de Depósitos] e fundos do Estado, em vez de serem encaminhados para o desenvolvimento dos mais pobres. Esta é uma manobra que pode acontecer com o Governo português.
Tem indícios concretos de que isso possa acontecer?
Isso está dito. Está dito que os dinheiros podem ser para tapar os buracos da Caixa Geral de Depósitos ou para os fundos de reforma. Mas o dinheiro não é para isso. Se o assunto chegar a Bruxelas, a União Europeia deve rejeitar a solução. Não podem ser os fundos estruturais a pagar as políticas do Estado. Os fundos devem ser aplicados para responder às necessidades. Neste caso, 20% dessas verbas deviam ser aplicadas no combate à pobreza. Uma parte dessa verba deve ainda ser canalizada para a qualificação das instituições [instituições particulares de solidariedade social]. Sabemos que é fundamental a mudança de mentalidades, de critérios e de estratégias.
As IPSS estão a viver grandes dificuldades...
Estão a viver dificuldades porque o Estado não tem correspondido. Aumentam as despesas, aumenta a carga fiscal, aumenta o IVA e diminui a capacidade de participação dos próprios utentes. Assim, as instituições não se conseguem manter.
Como se pode socorrer todos os que não constam das estatísticas, muitas das vezes porque têm vergonha de tornar a publica sua condição?
Eu tenho pena de dizer o que vou dizer, mas acho que é necessário. A Igreja, de um modo geral, está convencida de um erro: que os centros sociais paroquiais são o exercício da caridade da Igreja. Não o são. Os centros sociais paroquiais vivem e recebem as verbas contratualizadas com o Estado. Lembro o velho adágio “manda quem paga”. Se é o Estado que paga, é ele que manda e é ele o dono das políticas. Ora, a Igreja devia ter uma intervenção que fosse identitária da acção da caridade evangélica, do amor às pessoas, independentemente da aplicação e da realização das políticas sociais do Estado. Em Portugal, julga-se que as políticas sociais do Estado são da Igreja. Não é verdade.
De que forma deve, então, a Igreja actuar?
Eu tenho uma imensa pena que a Igreja não tenha coragem a nível hierárquico de clarificar esta situação, de apelar a que se actue numa resposta a nível mais local. Como dizia o Padre Américo, cada paróquia que resolva o problema dos seus pobres. Mas isto é pela caridade. Não é pela caridadezinha. Receio que muita gente possa ouvir e pensar que eu estou a ser retrógrado. É pela caridade, que não é a partilha do que me sobra, mas a partilha gratuita dos bens que me fazem falta. Temos de avançar para uma sociedade civil que assuma que as soluções para os problemas cabe a todos e não só ao Estado. Todos nós temos que olhar para o nosso próximo. Amar o próximo, a começar pela família.
Seguir o espírito natalício?
O espírito de Natal é muito bonito, mas muitas vezes é demasiado superficial. É muito batom. É bonito quando brilha, mas acaba o batom e tudo volta ao normal. A consciência e a justiça estão para além do batom, desta maquilhagem. Parece que entramos todos numa certa hipnose e passados os Reis entramos na selva outra vez. Quando conseguirmos uma justiça equitativa para todos em que a dignidade não seja um favor e que o direito não seja uma esmola, então sim todos poderemos viver no respeito uns pelos outros.