Marta Gonçalves, in Expresso
Relatório “Direitos Humanos na Europa”, da Amnistia Internacional, identifica graves atrasos económicos e sociais em Portugal (exemplo: o país falhou em proteger os inquilinos do despejo forçado), aponta melhorias em direitos civis, políticos e de liberdade de expressão e faz uma ressalva: “Falta transparência nas investigações à ação da polícia”
As pernas da criança estão feridas. Noutra é o rosto. Não são marcas deixadas por uma corrida ou por um jogo de bola entre miúdos do bairro. São dentadas de ratazanas que entram pelas casas onde vivem com as famílias. Moram no Bairro da Torre, a poucos quilómetros do centro de Lisboa e que começa logo depois do aeroporto, em Camarate.
“Há crianças que crescem ali e vivem ali sem eletricidade, sem condições básicas de higiene. São habitações sem quaisquer condições e, sobretudo agora neste momento de isolamento social, esse problema agrava-se ainda mais e é urgente dar uma solução a estas famílias”, diz ao Expresso Pedro A. Neto, diretor-executivo da Amnistia Internacional – Portugal. “No Bairro da Torre moram 37 famílias, muitas são de migrantes africanos e de etnia cigana que estão há muitos anos em Portugal.”
O direito a uma habitação condigna é daqueles em que “Portugal ainda tem muito caminho para caminhar” para chegar “onde é desejável”: que toda a gente tenha uma casa com o mínimo de condições. Esta quinta-feira a Amnistia Internacional publicou o relatório “Direitos Humanos na Europa”, que destaca os problemas em Portugal em assegurar o direito à habitação a toda a população.
Também no Bairro da Torre há muita casa sem eletricidade, algumas que não têm um frigorífico. “As pessoas que vivem na pobreza - e isto é muito claro agora em tempos de isolamento - não têm uma casa condigna, não têm acesso a coisas tão básicas como um frigorífico, essencial para as pessoa armazenarem e manterem alimentos. Até o acesso à educação não é igual para todos e, por isso, há aqui discriminação com base na condição económica”, sublinha Pedro A. Neto. “Em direitos civis, políticos e de liberdade expressão estamos a evoluir e estamos mais à frente do que países como a Hungria, Polónia ou Turquia. No entanto, em termos legislativos e em matéria de direitos económicos, sociais e culturais há muito por fazer.”
De acordo com o relatório agora publicado, que ainda assim sublinha a importância da aprovação da Lei de Bases da Habitação em setembro do ano passado, Portugal “falhou” em proteger os inquilinos do despejo forçado. “Apesar de o Governo ter tomado medidas para tornar as rendas mais acessíveis, os mais vulneráveis continuam a ter dificuldades em aceder a habitação adequada e os moradores de bairros informais continuam em risco de terem as suas casas demolidas e de serem despejados à força sem acesso a procedimentos adequados”, lê-se no documento.
No Bairro da Torre já moraram muitas mais famílias, no entanto foram-lhes oferecidas soluções “dispersas”. “A comunidade do bairro desfaz-se”, sublinha. Também o caso do Bairro 6 de Maio, na Amadora, é destacado pelo responsável da Amnistia Internacional, onde também foram feitos despejos e onde escasseiam condições mínimas para morar.
“Conheci um senhor que trabalhou toda a vida na construção civil e nunca teve um salário suficiente que lhe permitisse sair daquela habitação fraca com a família e comprar ou arrendar uma casa com mais condições”, exemplifica Pedro A. Neto. “É uma pessoa que hoje está reformada, recebe pouco e, se for despejada dali, não vai ter condições. Precisa de alternativas. Estamos a falar de alguém que trabalhou arduamente toda a vida e, mesmo assim, não conseguiu sair das condições de pobreza em que vivia.”
Dizem as Nações Unidas que ter uma habitação é ter uma casa num local seguro, com acesso a serviços de saúde e educação sem o risco de ser expulso. E, de acordo com a Lei de Bases da Habitação, “todos têm direito à habitação, para si e para a sua família”, mas em Portugal há cerca de 26 mil pessoas que não o têm. O último levantamento do Governo, em 2018, dava conta que “persistem situações de grave carência habitacional”. “Há várias pessoas que vivem em habitação informal, em construções que não foram legalizadas - e consequentemente têm também dificuldade de acesso a eletricidade, saneamento e água corrente, por exemplo”, diz Pedro A. Neto.
“FALTA TRANSPARÊNCIA NAS INVESTIGAÇÕES À AÇÃO DA POLÍCIA”
Não é a primeira vez que é recomendado - também não é apenas iniciativa da Amnistia Internacional - e é um dos pontos destacados no relatório: a necessidade de Portugal criar um órgão totalmente independente que investigue, quando necessário, a atuação das forças da autoridade.
Paragem de autocarro onde Cláudia Simões e o polícia se envolveram em confronto
Paragem de autocarro onde Cláudia Simões e o polícia se envolveram em confronto
“São recorrentes os episódios e as polémicas que surgem na imprensa e nas redes sociais de suspeitas de uso excessivo da força por parte do Estado, aqui representado pela polícia”, diz Pedro A. Neto, recordando o caso da Cova da Moura em que oito agentes foram condenados pela detenção ilegal de seis afrodescendentes, e o caso de Cláudia Simões, a mulher que foi imobilizada e alegadamente agredida por um polícia numa paragem de autocarro na Amadora. “O uso da força é legítimo quando é para eliminar ameaças de violência pública. Ou seja, nem todo o usa da força é excessivo ou ilegítimo, algum é adequado.” Ainda assim, precisa de ser investigado, defende.
Atualmente, a polícia das polícias é a Inspeção-Geral da Administração Interna (IGAI), que é responsável, entre outras coisas, por investigar os casos suspeitos de abuso da autoridade. A instituição faz parte da tutela do Ministério da Administração Interna (MAI). “Há pouca transparência na forma como se faz Justiça nestes casos. As polícias têm os seus departamentos internos de inspeção, há também o IGAI, mas que estando dentro do MAI não é organicamente independente”, refere.
A sugestão é, portanto, “que em substituição ou em complemento do IGAI” seja criada uma organização “de facto externa e de facto independente” que conduza as investigações. “E isto é importante também para proteger os bons agentes, que merecem ver esclarecidos estes episódios dúbios e, ao mesmo tempo, para assegurar que a confiança dos cidadãos na Justiça e na perceção que têm dos agentes e instituições”, acrescenta Pedro A. Neto.
Qualquer jovem português, quando atinge a maioridade, recebe uma carta em que é convocado para o Dia da Defesa Nacional. Isto acontece com todos os que fazem 18 anos, até com aqueles que são portadores de deficiência ou com mobilidade reduzida e que, apesar da idade legal, o grau de dependência pode até ser equivalente ao de uma criança de dois anos.
“Claro que isto não tem consequências práticas [porque não vão], é apenas muito triste. Mas muito triste é também os pais destas crianças e jovens não terem apoios sociais que lhes permitam tomar conta dos filhos”, diz o diretor-executivo da Amnistia em Portugal, salientando que esta ausência de resposta é uma herança “dos tempos da austeridade, em que os serviços da Administração Pública e da Segurança Social foram dos mais sacrificados” e que muitos não voltaram a ser repostos.
Os cuidados e apoios às crianças com deficiência são outros dos pontos negativos apontados pelo relatório, havendo “preocupação” de que não estejam a receber o que têm direito. Apesar da criação do estatuto de cuidador informal, a Amnistia defende que este “não é suficiente”. “É um princípio mas não chega”, considera Pedro A. Neto. “Há pais que, caso deixassem de trabalhar para se tornarem cuidadores informais, teriam este problema: o subsídio que lhes seria atribuído não seria tão alto como o salário que têm e mesmo assim o ordenado não é suficiente para pagar as despesas.”
Por fim, há as questões de género: embora o relatório saliente a evolução na legislação portuguesa no último ano, falta “deixar de pôr o ónus da culpa” na vítima de crimes sexuais, assim como definir melhor conceitos como violação, tendo em conta a Convenção de Istambul. “Ainda não é suficientemente claro o que é o consentimento.”