Cristiana Faria Moreira (Texto) e Nuno Ferreira Santos (Fotografia), in Público on-line
Pavilhão do Casal Vistoso poderá ficar aberto até Setembro, se se justificar. Câmara está a ultimar a abertura de mais um centro de acolhimento temporário, no Parque das Nações. E a estudar como vai arranjar forma de que quem está nos centros não tenha de regressar de novo às ruas.
Entre as frágeis camas do Pavilhão do Casal Vistoso, avistam-se umas pinturas que parecem retratar aquele campo desportivo, agora adaptado a centro de acolhimento de pessoas em situação de sem-abrigo. Jaime Rentería mostra-as, orgulhoso. Está no centro há um mês e meio. Tinha chegado há umas semanas a Lisboa para participar numa exposição. “E depois isto aconteceu. Fechou tudo. Estava a tentar ficar num hotel e vender as minhas pinturas na rua, mas depois não havia ninguém para comprar, por isso fiquei sem dinheiro para pagar o hotel e tive de ir para a rua.”
Foi a primeira vez que o colombiano de 63 anos se viu assim desprotegido, na rua. Um dia, um “jovem”, como Jaime lhe chama, comprou-lhe três pinturas. Foram trocando mensagens no Facebook, até que no dia em que foi despejado do hotel, o “jovem” lhe ligou a perguntar como estava. “Eu disse-lhe que ia dormir na rua naquela noite e ele disse que não ia deixar-me dormir na rua. E ligou para várias pessoas em Lisboa e, no dia seguinte, enviou-me para aqui”, conta o colombiano. “É a primeira vez que me vejo na rua. E para mim foi algo muito duro.”
Os quatro centros de acolhimento criados pela Câmara de Lisboa albergam, neste momento, cerca de 220 pessoas. Destas, algumas estavam já habituadas a este tipo de respostas, mas o que preocupa mais os técnicos são as pessoas que se viram de repente na rua porque não conseguiram voltar ao país de origem ou que ficaram desamparadas, porque se viram sem o seu trabalho precário e dinheiro para pagar a renda, tornando-se sem-abrigo pela primeira vez na vida.
A diversidade de situações é “grande” e obriga a uma “operação muito complexa”, com necessidade de ser alargada. Para o final da semana, início da próxima, está planeada a abertura de mais um centro de acolhimento temporário na Pousada de Juventude do Parque das Nações. Terá capacidade para 50, 60 pessoas — homens e casais —, avança o vereador Manuel Grilo.
A autarquia está, assim, preparada para manter o Pavilhão do Casal Vistoso aberto até Setembro, se houver necessidade, assume o responsável. Como o espaço é municipal, poderá manter-se assim. Já os outros pavilhões terão de ser “devolvidos” quando os clubes reiniciarem as suas actividades. “Espero que até lá tenhamos as soluções encontradas para todos e cada um deles”, sublinha.
Na Colômbia, Jaime Rentería trabalhava com pequenas fundações. É professor de inglês, idioma que aprendeu durante os 25 anos que viveu nos Estados Unidos. Diz-se “surpreendido” com a forma como técnicos e voluntários lidam com tanta gente diferente naquele pavilhão. E deixa-lhes um elogio: “Estou surpreendido com a paciência que eles têm. Estas pessoas são arrogantes, gritam, e eu nunca vi um assistente social confrontá-los ou exaltar-se, mesmo quando são insultados. Estou aqui a aprender. A aprender a lidar com as pessoas.”
Ainda não sabe quando sairá do centro, mas terá de tratar de renovar o visto. Se conseguir, quer continuar a expor a sua arte pela Europa. “Num mês e meio [em Lisboa], vendi 54 quadros. Em Paris, num ano, vendi 14. Aqui, estou muito contente. Vamos ver como isto corre.”
Impedir o regresso à rua
Por agora, a autarquia está também a estudar como vai impedir que quem está nos centros não regresse de novo às ruas. Para tal, serão mobilizadas respostas no âmbito do programa Housing First, dos apartamentos partilhados, de unidades de acolhimento que estão a ser criadas. Será suficiente?
Manuel Grilo atira com números e nota que já saíram dos centros 26 pessoas “para respostas mais definitivas”: duas mulheres da Casa do Lago foram para casas do Housing First. Outros foram encaminhados, através da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, para pensões e quartos.
“Já começou o acolhimento mais definitivo das pessoas. Neste momento estão a chegar às associações que estão a trabalhar com este programa Housing First mais cem vagas. E serão seguramente mais de cem pessoas que irão para este programa em que as pessoas terão direito em primeiro lugar a uma casa”, diz.
Segundo os dados mais recentes conhecidos, há nas ruas de Lisboa 361 pessoas que ali pernoitam, e mais 1967 que estão em quartos, centros de acolhimento temporário ou outros alojamentos que os colocam também entre a população sem-abrigo.
Vítor Lourenço faz parte do grupo dos 361. Está no centro desde 18 de Março, praticamente desde que abriu. Ouviu falar do pavilhão e foi até lá. Esperou oito horas, mas conseguiu entrar. Para início de conversa, o homem de 46 anos faz questão de esclarecer que o “ano e pouco” que tem passado na rua nada tem que ver com consumo de drogas ou álcool. “Foram situações da vida”, resume. Estava a viver numa pensão quando se separou da mulher. Ao mesmo tempo, ficou sem emprego e sem dinheiro para pagar a pensão. “A minha vida deu uma volta radical.” Acabou a pernoitar junto ao Cais do Sodré.
Já trabalhou em muita coisa, conta. “Fui empregado de balcão, empregado de mesa, de esplanada. Atraquei navios. Trabalhei nas obras. Um pouco de tudo.” Não recebe subsídio nenhum, nem Rendimento Social de Inserção. “Nunca quis nada disso porque eu consigo trabalhar.”
Vai fazendo uns biscates, uns recados a pessoas que já o conhecem. Sempre ganha alguma coisa para comer, para as suas coisas. Por agora, vai matando os tempos livres no centro de acolhimento com música e leitura. Na mesa-de-cabeceira improvisada tem dois livros — As Aventuras de Tom Sawyer e Natascha Kampusch - A Rapariga da Cave. E tem um “grupinho dos velhotes” para jogar à sueca. “É uma amizade, que aqui há pouco. Bastava passar aqui 24 horas e ver.”
Face às sequelas que a crise provocada pela pandemia poderá deixar, atirando para a rua mais pessoas, Manuel Grilo não consegue dizer, para já, se se verifica um aumento do número de pessoas sem tecto nas artérias da capital. Mas que é “normal” que haja, sobretudo porque têm chegado aos centros pessoas de outras zonas do país. “Aqui [no Casal Vistoso] notamos que vieram pessoas de Faro, de Beja, de Braga. Há aqui um acolhimento de pessoas em situação de sem-abrigo que, não tendo encontrado respostas nas suas cidades, dirigiram-se para Lisboa”, sublinha o autarca.
Quanto a casos de infecção pelo novo coronavírus nos centros de acolhimentos temporários, a ficha está por enquanto limpa. No Casal Vistoso, diz o vereador, houve dois casos suspeitos, que se revelaram negativos.
“Se acontecer, as pessoas estarão confinadas. Se estiverem assintomáticas ou com sintomas ligeiros, transitarão para a mesquita, que é hoje um equipamento onde está organizado para acolher” pessoas infectadas que estejam assintomáticas ou com sintomas ligeiros.
Vítor Lourenço lá acaba por admitir que desvalorizou a doença quando ela começou a ser falada. “Na altura brincava com isso.” Agora, sabe que o assunto é sério, mas rejeita “paranóias”. Ali, no centro do Casal Vistoso, é obrigado a medir a temperatura todos os dias.
Sobre o futuro, agarra-se agora ao currículo que está a ser feito para depois tentar arranjar trabalho ou um sítio para viver. Ele diz que não falta força para trabalhar. “Esta noite vou-me levantar às 3h30 da manhã para sair daqui para ir para o Mercado da Ribeira ajudar a descarregar limões e depois encher a carrinha com caixas”, conta Vítor. Que não se despede sem deixar também um beijinho às duas filhas, Beatriz e Inês, na esperança de que leiam estas linhas no jornal.