Pedro Rios, in Público on-line
Com a pandemia gerada pelo novo coronavírus veio uma outra pandemia: um ataque à saúde mental sem precedentes. “É como estar em acção militar sem qualquer treino”, diz o autor do best-seller O Demónio da Depressão.
O Demónio da Depressão (editado nos Estados Unidos em 2001, publicado em Portugal em 2016 pela Quetzal, um dos melhores livros do século XXI para o Guardian) Andrew Solomon assinou um “tratado” moderno (e um best-seller) sobre uma doença que se estima que afecte mais de 260 milhões de pessoas em todo mundo. A partir da sua casa em Nova Iorque, o escritor e professor de psicologia clínica na Universidade de Columbia diz que o isolamento e o medo do desconhecido “vão afectar as pessoas durante muito tempo”.
“As pessoas vão ficar gravemente deprimidas e ansiosas especialmente se isto durar um longo período de tempo – algumas vão-se matar, algumas vão ter que lidar com depressão para o resto da vida, outros vão ter perturbação de stress pós-traumático e ter flashbacks terríveis. É como estar em acção militar sem qualquer treino”, explica ao P2 o também autor de Longe da Árvore.
Numa conferência de imprensa, um jornalista perguntou a Trump o que tinha a dizer aos americanos que estão com medo. O Presidente rejeitou a pergunta e apelidou o repórter de “terrível”. Mas não deveríamos aceitar o medo como inevitável numa crise como esta?
Toda a gente está com medo, e por uma boa razão: podemos morrer disto, podemos perder pessoas que amamos, isso é muito assustador. Há uma certa quantidade de medo que faz sentido ter, que é inevitável nisto tudo. O desafio é prevenir que isso se torne em ansiedade clínica, garantir que o medo é proporcional à realidade, pensar: “Isto é assustador, mas a maior parte das pessoas que contraem esta doença não morrem por causa dela, as pessoas que praticam auto-isolamento cuidadoso provavelmente não serão infectadas.”
Ajuda muito as pessoas contemplarem qualquer coisa positiva que os distraia da situação – o que não quer dizer que o positivo ultrapassa o negativo (todos preferíamos não estar nesta situação). Estar com o meu marido e o meu filho desta forma deu-nos uma proximidade e um tempo de família que provavelmente nunca teríamos de outra forma.
Pelo lado positivo, temos visto manifestações de solidariedade e boa vizinhança um pouco por todo o lado. E manifestações às varadas, criando ou recriando uma comunidade. A crise também mostra o melhor de cada um?
Aqui em Nova Iorque as pessoas vão às janelas e batem palmas, batem em panelas e tachos como um tributo aos profissionais de saúde que estão a tomar conta de nós todos. À superfície, é um gesto maravilhoso para pessoas que têm sido incrivelmente auto-sacrificadas e disponibilizam-se para enfrentar este vírus e ajudar outras pessoas, mas acontece também pelo sentimento de comunidade, de ligação às pessoas. Vamos à janela, está toda a gente lá, vemos os vizinhos, ouvimos o barulho do quarteirão ao lado, sabemos que está a acontecer em toda a cidade e experimentamos um grande sentimento de solidariedade. Numa altura em que os elementos de base da comunidade, o trabalho, a família, são postos em causa pelo isolamento, isto dá-te um sentimento de unidade e ligação.
Temos muita sorte em viver numa era em que nos podemos encontrar no Skype ou no Zoom, ligar aos nossos melhores amigos, perguntar “Como foi o teu dia?”. É muito íntimo: a tragédia alimenta a intimidade. Vemos isto em países afectados pela guerra. Senti-o depois do 11 de Setembro [de 2001] em Nova Iorque, a última vez em que houve algo que se aproximasse disto. Clarifica muito as coisas. Espero que as pessoas possam levar essa clareza para o período que se segue à resolução desta primeira crise.
Vem aí uma pandemia de má saúde mental?
Há quatro respostas para tudo isto. Uma é para pessoas com saúde mental muito robusta: mantenham-se calmos e continuem. Outra é para pessoas – talvez sejam a maioria – que se sintam instáveis, assustadas e inseguras e talvez precisem daquilo a que chamo de “primeiros socorros psiquiátricos”. E depois há pessoas que nunca sofreram de depressão clínica e ansiedade e que serão lançadas para elas. Para muita gente, a interacção social normal é a coisa mais essencial, tirar-lhes isso é como tirar um peixe da água ou a heroína de um viciado. Dependem para o seu sentido delas mesmas. E depois há as pessoas, que são também uma parte importante da população (25% da população é diagnosticada em algum momento da sua vida com depressão ou ansiedade), que já tiveram depressão e ansiedade e para quem esta crise fornece muitos incentivos para que piorem.
Recebe cartas de todo o mundo de leitores com depressão e ansiedade. O que lhe têm dito nesta fase?
Recebi centenas e centenas de cartas desde o início da quarentena em vários locais do mundo. Há pessoas que já não se estavam a sentir muito bem e que agora se sentem frenéticas. Tornou-se mais difícil conseguirem apoio psiquiátrico do que antes de todos os recursos serem empenhados na luta contra a covid. Acho que nunca houve uma taxa tão alta de depressão, não só nos Estados Unidos.
As pessoas estão a sofrer terrivelmente e só desejo que apareça uma vacina num futuro relativamente próximo e que possa pôr este episódio para trás das nossas costas. Talvez leve oito meses, talvez dois anos, mas que seja algum tempo finito. O trauma que tem sido feito psicologicamente às pessoas deve-se a duas coisas: o isolamento e o medo do que vai acontecer. Esses dois traumas vão afectar as pessoas durante muito tempo.
Acabei de receber uma carta de alguém em Inglaterra que me partiu o coração: “A minha melhor amiga sofria de depressão há muitos anos e dizia-me muitas vezes que este isolamento era intolerável. Eu respondia-lhe que ela tinha de aguentar e que tudo acabaria por passar. No entanto, ela cometeu suicídio na semana passada, dizendo que não podia viver assim.” Aqui está alguém que morreu do novo coronavírus que não estava infectada pelo novo coronavírus.
Isto é um perigo actual muito real, devemos prestar atenção ao aspecto de saúde mental de tudo isto, tal como prestamos à saúde física. As pessoas vão ficar gravemente deprimidas e ansiosas especialmente se isto durar um longo período de tempo – algumas vão-se matar, algumas vão ter que lidar com depressão para o resto da vida, outros vão ter perturbação de stress pós-traumático e ter flashbacks terríveis. É como estar em acção militar sem qualquer treino. É uma coisa terrível para a saúde psicológica do mundo.
Homenagem aos trabalhadores da saúde em Nova Iorque MIKE SEGAR/REUTERS
Especialistas têm alertado para as consequências para a saúde mental da falta do toque entre pessoas. O Andrew escreveu que, em alguns casos, talvez devamos calcular o risco e permitir o toque. O abraço como um risco calculado.
Há quem sofra de privação do toque, pode ser muito tóxico para essas pessoas. Uma das minhas melhores amigas vive em Nova Iorque, o marido tem um emprego na Califórnia, viam-se aos fins-de-semana. Ela contou-me: “Não toquei nem fui tocada por ninguém desde o início de Março.” Isso pode ser muito tóxico, a falta de toque é péssima. Não é que queira encorajar as pessoas a serem imprudentes ou a ignorarem os conselhos de distanciamento social, mas temos de ter em conta que se insistirmos num distanciamento absolutamente rígido para absolutamente toda a gente durante todo o tempo vamos ter consequências de saúde mental muito graves. Temos que calcular riscos com apoio de médicos. Podemos ter pessoas que estão sozinhas, em quarentena, e que ocasionalmente encontram-se para interagir. Vai haver algum risco envolvido e algum benefício. Não vai apenas animar-te a tarde, mas beneficiar-te, dando-te a resiliência perante este vírus. Para não seres destruído pelo teu próprio medo e sentimento de solidão.
Da desinfecção à lavagem de mãos e ao tocar na cara, sentimos que estamos sempre a fazer algo de errado. Mas como será para alguém com perturbação obsessiva-compulsiva?
É quase impossível perceber quais são as precauções razoáveis e quais são as preocupações absurdas. A maior parte das pessoas ou está a fazer demasiado ou não está a fazer o suficiente. Não faço ideia do que é demasiado ou o que é insuficiente: borrifo com uma solução alcoólica encomendas, mas depois recebo outra encomenda, esqueço-me e trago-a para dentro da casa [sem desinfectá-la]. As autoridades médicas disseram que não há nenhum caso conhecido de transmissão através de pacotes ou produtos alimentares... Há um momento em que começas a ficar louco por fazer todas estas coisas, como uma pessoa obsessiva-compulsiva. Tenho uma perturbação obsessiva-compulsiva ligeira, mas recebi uma carta de alguém que sofre de uma perturbação obsessiva-compulsiva muito mais grave. Ele contava como limpa as mãos até ao ponto em que a pele começa a cair em pedacinhos. Isso não é saudável, de todo: é muito mais fácil apanhar o vírus se tivermos feridas nas mãos e magoamo-nos. E estarmos a gastar tanto tempo nestas precauções todas ao ponto de não nos sentirmos vivos na nossa própria vida é muito perigoso, também.
Sinto que é como bater na madeira, acender uma vela numa igreja, parecem simbólicas muitas destas coisas. “Tomei esta decisão, tenho que desinfectar o pacote.” Muito disto parece ritualístico. Isso é psicologicamente desorientante.
O que pode ser feito pelos governos para controlar a previsível pandemia de saúde mental?
Pessoas com prática de epidemiologia de saúde mental devem ter uma plataforma para falar. Porque uma das coisas que é difícil para as pessoas é o sentimento de que são as únicas que se estão a desmoronar. Sentem que devem reagir, ficar boas, “outras pessoas lidaram com isto, porque não eu?”. A depressão é sustida quando sabemos que neste momento um enorme número de pessoas está a lidar com ela e que mais ainda estão a lidar com ansiedade grave, quando sabemos que há tratamentos para isto e especialistas que sabem o que fazem. O processo passa por abrir a conversa.
A pandemia está a impor restrições muito fortes a funerais. Como é que esta amputação dos rituais de luto habituais afecta as pessoas?
Pessoas com experiências reais de perda não estão a ter a oportunidade para fazer o luto da melhor forma. Quando a minha mãe morreu, as pessoas vieram ter comigo, ajudaram-me, seguraram-me fisicamente e lembraram-me da vida. Hoje, muitos de nós não estamos a ser lembrados da vida quando perdemos pessoas, muitos de nós estamos a ser deixados ao luto por conta própria. O luto é horrível de qualquer forma, mas o luto solitário é uma experiência ainda mais horrível. Não poder fazer um funeral... Há uma razão pela qual os funerais existem em todas as culturas do mundo, da supostamente mais primitiva à supostamente mais avançada.
O especialista em morte e luto David Kessler afirma que esta pandemia põe toda a gente de luto. “A perda da normalidade; o medo do impacto económico; a perda da conexão. Isto está a afectar-nos e estamos de luto.” Concorda?
Por vezes, é um medo muito racional de perda porque alguém que conhecemos está doente, a preocupar-nos. Mas o seu medo pode ser instigado pelo facto de que perdeu o emprego, não tem poupanças ou rendimentos e vai perder a sua casa. Há também o medo de alguém velho e vulnerável que você ama e que tem que sair de casa para comprar comida. Há o medo do momento presente, o medo por antecipação do que aí virá e a tristeza factual de perder pessoas. E muitas pessoas estão a sentir em algum grau todas estas coisas, todas a misturar-se. É difícil lidar com todos estes diferentes medos, mais o luto, mais a tristeza e o sentimento de que isto é avassalador, tudo a vir ao mesmo tempo.
Conhece esta experiência? Os cientistas pegam em ratos e põem-no numa jaula. Se o rato empurra uma alavanca e nada acontece, ele pára de empurrar a alavanca. Se cada vez que ele empurra a alavanca receber comida, ele vai empurrar a alavanca quando tiver fome. Se o rato for posto numa situação em que por vezes a alavanca fornece comida e por vezes não, ficará frenético e vai empurrar e empurrar a alavanca, tentando perceber quando vai conseguir comida. Se não houver padrão, o rato vai pressionar a alavanca até ao ponto de morrer. Este exercício de aleatoriedade… Quem sabe quem vai estar morto amanhã? Quem sabe que medo vai estar no horizonte? Quem sabe o que vai acontecer amanhã, no próximo mês, no resto do ano e talvez no próximo? Penso que as pessoas ficarão loucas nessa situação.
Na sua popular TED Talk defende que precisamos de pegar nos traumas “e torná-los partes de quem nos tornamos”. Uma “narrativa de triunfo”. Podemos fazer isso agora?
Aqueles que sobreviverem e passem para o outro lado disto, em que isto fica para trás, vão poder dizer: “Aprendi estas coisas todas com isto.” Eu, de certeza, vou poder dizer que desenvolvi uma relação diferente com o meu filho. E com o meu cão, que acha esta situação a melhor coisa de sempre. Haverá lições a aprender, mas só serão evidentes quando deixarmos de ser soterrados com notícias mais assustadoras a cada dia. Sofri de depressão, sinto que aprendi muito com ela, mas não quero voltar a ter uma. Quando estava deprimido, não pensava: “Oh, estou a aprender tantas coisas!”. Só queria que acabasse.
No seu livro Far and Away: How Travel Can Change the World, defendeu que viajar é fundamental para ter um mundo mais pacífico e tolerante. Tão cedo não viajaremos como dantes. Isto é também uma grande perda?
Uma grande perda. O internacionalismo ajudou a estabelecer um mundo global. Sinto que vamos a caminho de um período tipo “guerra entre estados” no qual o nacionalismo idiota pregado por Trump e outros ficará mais forte. Se não houver pessoas de outros países a entrar no teu país e se tu nunca vais aos países deles, as incompreensões acontecem. Quando estava em reportagem na Líbia para a New Yorker, entrevistei todos os que estavam no gabinete de Kadhafi, que, supostamente, ia fazer reformas. Todas as pessoas que conheci e que queriam paz com o Ocidente tinham estudado no estrangeiro. Todos os que queriam manter as políticas terroristas que caracterizavam o regime não tinham estudado fora da Líbia.
Nesse livro, proponho que se todas as pessoas no mundo passassem um mês num país estrangeiro, qualquer um, metade dos problemas diplomáticos desapareceriam. Agora, se toda a gente suspeitar de vizinhos, de minorias, de pessoas de outros países, de qualquer pessoa que não eles mesmos, isso terá efeitos terríveis na diplomacia internacional.
Como escritor e conferencista sente o impacto económico dos cancelamentos. Como vê o futuro?
Estou preocupado com os escritores, mas ainda mais com amigos que são performers a tempo inteiro. Cantores de ópera, actores, outras carreiras em que se não tens uma audiência que paga para te ver não há dinheiro para o que fazes, pessoas que passaram a sua vida a cultivar esses talentos extraordinários e que não têm a oportunidade de os exercer.
Parece impensável que há menos de dois meses eu estava a falar para uma audiência de mais de 1500 pessoas, convivendo com elas, assinando livros no final. Tenho amigos que estão a lançar livros agora e a fazer eventos online, eu fiz alguns também, mas não é a mesma coisa. E a economia é muito diferente: na ópera, estamos dispostos a pagar 200 dólares para ter um bom lugar, mas ninguém vai pagar 200 dólares para ver algo na Internet.
É bom que tenhamos estas aproximações [comunicação online], é melhor ter esta crise agora do que teria sido há dez anos – com excepção da situação política americana, graças a Donald Trump. Mas as consequências económicas para os escritores são desastrosas.
Linhas de Apoio e de Prevenção do Suicídio em Portugal
SOS Voz Amiga
(entre as 16 e as 24h00)
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