Eunice Lourenço (Renascença) e Helena Pereira (Público), in RR
“Cuidar dos feridos” desta crise, acelerar as grandes obras públicas em 2021 e apoiar uma estrutura de rendimentos “instável” é a receita do ministro do Planeamento.
Ministro do Planeamento. "Vamos manter e acelerar todos os grandes projetos de obras públicas"
O Governo vai avançar em breve com mais ajudas às micro empresas afetadas pela crise da pandemia de covid-19. Será mais um estímulo com efeitos rápidos para dinamizar a economia, como explica o ministro do Planeamento Nelson Souza, que hoje defende o Plano Nacional de Reformas (PNR) no Parlamento.
Em entrevista ao Renascença e ao Público, que pode ouvir esta quinta-feira pelas 13h00, o ministro adianta ainda que este mecanismo, que irá conceder entre 3 e 5 mil euros a cada empresa, vai disponibilizar 50 milhões de euros. Mas isso não quer dizer uma inversão nas apostas que vinham a ser feitas no PNR: “Vamos manter todos os grandes projetos de obras públicas”.
Já o objetivo de investir na digitalização tornou-se cada vez mais premente, sublinha o ministro, dando como exemplo o meio escolar.
No PNR 2020-24, lê-se que “foi largamente reorientado para a procura de respostas urgentes à situação de emergência que vivemos”. Que mudanças é que a covid-19 veio trazer a esta estratégia?
Por nós, não seria este o momento escolhido para apresentar um verdadeiro PNR. O diagnóstico do impacto da pandemia na economia ainda é incompleto. Não sabemos como a pandemia vai evoluir e as análises estatísticas ainda não estão totalmente apuradas. Ainda não houve oportunidade para completar a revisão das políticas públicas. E porque ainda não foi possível fazer a discussão que é sempre bom ter com os parceiros sociais e a Comissão Europeia. É um PNR absolutamente extraordinário. O essencial da nossa estratégia vai manter-se: os desafios da descarbonização/crescimento verde e o da digitalização/inovação. Esta pandemia fez perceber a importância da digitalização nas sociedades modernas, mas também a importância de não deixarmos ninguém para trás neste processo. Quem estava à margem destas possibilidades, ficou mais isolado e excluído.
Isso refletiu-se muito na educação.
Por exemplo. Daí, que reorientação temos que ter? O essencial mantém-se, mas com maior atenção nalgumas preocupações: o acesso à escola digital passou a ser uma das prioridades da futura programação dos fundos. Isso vai ser feito já na reprogramação dos fundos do Portugal 2020.
Os fundos serão aplicados na reconversão das escolas, em novos quadros eletrónicos, mas também nos computadores e internet que o primeiro-ministro anunciou para o próximo ano letivo?
Sim. Não pode voltar a suceder o que aconteceu: alunos sem acesso a meios indispensáveis. Para além disto, continuamos a ter um défice de qualificações que vem de trás e que ainda não está resolvido. Voltou a agravar-se e a vir ao de cima o facto de a nossa estrutura de rendimentos ser muito instável. Outra questão ainda por resolver é o equilíbrio territorial do nosso desenvolvimento. Junta-se a isto cuidar dos feridos e dos mais afetados que saem desta crise que são sectores do turismo e todas as atividades conexas, sectores que trabalham muito com o mercado interno, como serviços e restauração, e que garantem níveis de emprego muito elevados e finalmente os sectores exportadores mais tradicionais como o têxtil, calçado e mobiliário.
O que vai deixar de ser feito? Vai haver recursos financeiros para tudo?
Não quer dizer que nós queremos fazer tudo mas queremos fazer o que for necessário para manter o nível elevado de atividade económica para assegurar rapidamente a recuperação do emprego, do PIB e das exportações. O nosso modelo é diferente do que foi usado na crise anterior e que foi apelidado de austeritário. É um modelo que assenta no impulso do crescimento, no estímulo económico para que possa surtir efeito o mais depressa possível.
Por isso mesmo, não queremos a ideia de que para dar um impulso económico é preciso abandonar muitas outras coisas, não.
Como grandes obras públicas?
Não, o que queremos fazer é manter todos os projetos de obras públicas que estão em execução, até acelerados na medida das possibilidades. A reprogramação do Portugal 2020 vai reafirmar todos esses grandes projetos quer na área da ferrovia, quer nos metros. Já tivemos reuniões de trabalho com todos os ministros sectoriais que reafirmaram a sua capacidade de comprometer esse ritmo de execução. O país precisa que esses projetos sejam executados e possam ser antecipados quando tal for possível. Mais do que isso: queremos que sejam acompanhados pelo impulso de outros projetos de pequena e média dimensão que têm um investimento público mais rápido, provavelmente, mais na área da conservação, manutenção, que não precisem de tantas autorizações administrativas e concursos públicos pesados.
Em que áreas?
Vamos ter de lançar um plano de investimentos públicos de pequena dimensão de forma a ter um efeito mais rápido na economia uma vez que o investimento de maior dimensão tem processos mais morosos. Estou a falar de centros de saúde, escolas e requalificação de património histórico. Vamos aumentar a todos os projetos que tenham execução nos próximos 12 meses a taxa de comparticipação até 100% de modo a que sejam acelerados.
Em relação à ferrovia, o que pode ser antecipado?
Não estamos a falar de medidas com efeito imediato na capacidade de transportar mais pessoas nas próximas semanas ou meses. O programa de investimentos até 2023 tem a ferrovia, os portos, o sistema de mobilidade do Mondego. Vamos antecipar alguns prazos sobretudo em 2021 e 2022. É mais nesse sentido. Em primeiro lugar, não vamos desistir de nenhum projeto público de grande dimensão. Em segundo lugar, já falei dos investimentos de média e pequena dimensão, que são normalmente da responsabilidade dos municípios (as escolas, unidades locais de saúde, património). Por outro lado, estamos a estudar o lançamento de iniciativas de dinamização do investimento, no valor de 50 milhões de euros, para modernizar as micro e pequenas empresas de modo a adaptarem-se aos novos requisitos desta fase de desconfinamento. Dentro de dias, vamos pôr em prática um sistema ultra-rápido para que as empresas possam responder às novas exigências sanitárias e vamos estudar outros mecanismos complementares com pequenas obras que dinamizem um segmento ainda mais micro de investimentos. Estamos muito preocupados em que a economia funcione aos diversos níveis: não só nas grandes cadeias produtivas, mas também a nível do sistema linfático.
Mas aí não têm que ter em conta a viabilidade das empresas? O PM ainda esta semana dizia que não valia a pena os bancos estarem a dar crédito a empresas sem viabilidade. Aqui nos fundos isso também não se coloca? Há empresas que necessariamente vão cair. Se calhar, não é possível tratar todos os feridos.
Há alturas em que se tem que escolher, como vimos até com crueza nesta crise [sanitária] porque os recursos são escassos. Na economia isso sucede muitas vezes. Temos graduações diferentes que fazemos na avaliação. Quando uma empresa quer auxílios no valor de algumas dezenas de milhões de euros, aí naturalmente temos que ser rigorosos e o escrutínio deve ser total. Aí, sou muito pouco sensível aqueles que dizem que somos muito burocráticos e que pedimos muitas coisas. Outra situação é, quando para dinamizar o mercado, estamos a falar de apoios de cinco ou três mil euros.
Está a dizer que nesses casos o Governo vai ser mais generoso.
Podemos assegurar não totalmente que a empresa que recebe o nosso apoio possa perdurar no futuro, mas há uma coisa que temos que garantir sempre: que o dinheiro que foi obtido foi aplicado naquilo que ela disse que ia ser aplicado e que consta nos nossos regulamentos. Agora, se, de facto, foi para uma empresa que não conseguiu assegurar a sua sobrevivência mesmo com o nosso apoio, enfim, isso ninguém pode garantir em boa verdade mesmo com muitas análises de risco que possamos fazer. A experiência diz-nos que mesmo nas tais maiores empresas vemo-nos confrontados com a triste e crua realidade de empresas que vão à falência na mesma.
É uma nova preocupação da Europa. A Europa, globalmente falando, acreditou demais numa conceção liberal de uma divisão internacional de trabalho que poderia concentrar-se naquilo que era mais agradável, mais limpo, menos trabalhoso, com menos suor fazer-se, e deixar para os outros, porventura os chineses, a produção e a manufatura mais custosa. Viu agora, numa situação de aperto, que fez mal e que não pode viver assim. Os nossos apoios comunitários às empresas têm uma forte concentração já na atividade industrial. Perto de 70% dos apoios do Portugal 2020 são atualmente destinados à atividade industrial. Temos é que recalibrar o tipo de indústria a apoiar: com maior valor acrescentado, mais baseada no conhecimento, mais focada nas cadeias de valor com procura emergente. Nenhum país deve depender em excesso de nenhum sector. É uma questão de bom-senso, não só na economia, mas na nossa vida em geral, temos que ter mais do que um amigo.
Nesta altura em que estamos a falar ainda não há um quadro pluri-anual definido. Acredita que existirá até ao fim deste semestre?
Não quero deixar de acreditar que nas próximas semanas havemos de ter uma clarificação do quadro de apoios que contamos do lado da Europa, ou seja, uma decisão política sobre o novo quadro financeiro pluri-anual e sobre o novo plano de recuperação decidido no último Conselho Europeu. É inconcebível que essa clarificação não esteja feita até ao final deste mês.
Acha que é preciso ou não um plano de contingência que acautele a possibilidade de o próximo quadro comunitário de apoio não arranque no dia 1 de janeiro de 2021, como dizia esta semana a eurodeputada do PS Margarida Marques, apelando à “imaginação” de todos.
A criatividade é requerida a todos. Temos que chegar a acordo todos. Temos que ser criativos, inteligentes e disponíveis. Mas não se pode jogar com as palavras. O orçamento da UE tem que se ajustar às novas necessidades criadas por esta crise. Seria muito pouco entendível que o orçamento mais o fundo de recuperação não crescessem de uma forma substantiva, dando corpo às expectativas criadas. E não falemos de percentagens do rendimento nacional bruto porque o RNB projetado para os primeiros anos dos próximos sete vão ser revistos fortemente em baixa. O 1,07% apresentado no último Conselho Europeu, neste momento, esse 1,07% sobre um RNB em termos absolutos que já não é aquilo que era, mas vai ser menos do que era já representa um corte grande efetivo no orçamento da UE. Sejamos claros: os referenciais não se fazem em termos de percentagem neste contexto, mas devem fazer-se em termos de valor.
Como europeísta não está triste com as dificuldades com que os países têm tido na procura de um consenso?
Os europeus são responsáveis pela difícil situação em que estamos agora porque estivemos dois anos a discutir o quadro financeiro pluri-anual e não chegamos a acordo. Agora, temos dois problemas em vez de um. Temos o quadro financeiro pluri-anual mais o problema de recuperação da pandemia. Quero acreditar que vamos ser capazes de concretizar esse caminho criativo e vamos chegar a consenso. Acho que na hora de decidirmos a Europa vai ser capaz de vencer estes atavismos e estas visões estreitas porque se trata de visões estreitas não só do ponto de vista de pensamento e de ideologia, mas também sob o ponto de vista de racionalidade e de perspetiva económica. A solidariedade sempre fez parte da racionalidade económica. Foi assim que o mercado comum foi construído. A saída da crise tem de ser do mesmo modo.