Tiago Palma, in RR
Horas que parecem dias, dias que parecem meses. Um psicólogo explica o que é, afinal, esta sensação de confusão temporal, hoje generalizada numa sociedade que se viu confinada em casa. Um filósofo diz-nos que, mesmo de regresso à normalidade possível, talvez estejamos, na verdade, só… “reconfinados”. E a literatura, o que tem ela para nos dizer sobre cenários assim? Que muito provavelmente, mais cedo que tarde, vamos todos usar “peruca” como na Grande Peste de Londres (metaforicamente falando).
Tudo é novo. Este tempo é novo. E a perceção do tempo, da passagem dele, em pandemia, durante semanas e meses confinados à habitação e, agora, a retornar lentamente ao exterior, alterou-se profundamente na sociedade como um todo – e em cada um enquanto indivíduo.
Ora as horas são longas demais, rotineiras, mecânicas, ora breves, sem lhes notarmos a passagem, na esperança de que o medo se vá e regressemos à normalidade, a uma normalidade possível.
À pergunta sobre se faz, ou não, sentido esta perceção (de certa forma volátil) do tempo, David Neto, psicólogo clínico e investigador, diz à Renascença que sim. Que sempre fez.
“Já antes, mesmo antes desta situação de pandemia, sabíamos que, por exemplo, em contexto de institucionalização, existe desorientação temporal – o que é normal.” E porquê "normal"? “Porque quem está institucionalizado tem as rotinas todas iguais, dia após dia, e é muito fácil, em consequência desta rotinização e desta perda de contacto com o mundo exterior, haver desorientação.”
No livro “A Montanha Mágica”, de 1924, o Nobel da Literatura Thomas Mann descreveu assim o tempo de Hans Castorp, personagem confinado a um sanatório nos Alpes suíços por causa da tuberculose: “As pessoas acreditam que o interesse e a novidade do conteúdo levam a que o tempo passe, isto é, abreviam a passagem do tempo, ao passo que a monotonia e o vazio contribuiriam para obstruir ou refrear essa mesma passagem”.
Castorp debruça-se sobre quase tudo em pensamento: a política, a cultura, a religião e, claro, o tempo. Mas são também entediantes os tempos no sanatório.
“O que designamos por tédio é uma abreviação doentia do tempo decorrente da monotonia: a uniformidade constante produz a redução atroz e assustadora dos longos períodos de tempo. Quando um dia se assemelha a todos os outros, todos os outros se assemelham a esse dia”, descreve Thomas Mann no livro.
Na situação de confinamento recente, e tão real, algo semelhante acontece, aponta David Neto. “Os nossos fins de semana são parecidos aos nossos dias de semana, é quase como se houvesse uma espécie de contínuo entre os momentos de trabalho e os momentos de lazer. E isso faz com que o tempo se torne confuso.” O que pode ter dois efeitos: quer uma espécie de dilatação temporal, “o tempo demora imenso a passar”, quer algo paradoxal, “quando parece que de repente a semana passou num instante”, explica o psicólogo clínico.
A referida desorientação temporal, associada ao medo, da infeção ou da consequência económica da pandemia, pode também afetar a nossa saúde mental “de maneira bastante significativa”, diz David Neto. Contudo, não afeta todos da mesma forma. O psicólogo procura separar o impacto da pandemia em dois grupos de pessoas distintos.
“Para a generalidade da população que está em confinamento, esta redução do contacto social, esta situação de stress acrescido, provoca um aumento do sofrimento e da perturbação. Mas para a maior parte das pessoas isto é uma situação gerível e pode vir a ser ultrapassada, sem que haja um impacto duradouro – embora seja relevante no momento presente. Há um segundo grupo, que importa referir, que por ter um conjunto de vulnerabilidades prévias, por ser mais sensível ou estar em situações em que o stress impacta de uma maneira mais significativa – como é o caso dos profissionais de saúde –, estas pessoas podem desenvolver quadros mais complexos, uma perturbação grande do foro psicológico, e mais duradouros”, lembra.
Um estudo publicado em 2015 no “Journal of Affective Disorders”, intitulado a "Perceção do tempo na depressão: uma meta-análise", analisou a noção subjetiva do tempo em pacientes que sofrem de depressão. Os resultados sugeriram que indivíduos deprimidos percecionam o tempo de forma mais lenta, que ele se move mais lentamente, do que indivíduos não deprimidos. Segundo os autores, tal perceção é atribuída ao facto de, perante um ambiente negativo, a atenção ser direcionada a si e não aos outros ou a eventos externos – o que leva a uma desaceleração significativa da velocidade temporal.
David Neto socorre-se de um exemplo para explicar esta desaceleração: os acidentes, nomeadamente os traumáticos. “Esta noção subjetiva de tempo faz sentido, por exemplo, quando nós estamos a passar por um acontecimento traumático, como é o caso de um acidente, onde é relativamente frequente haver uma dilatação temporal, ou seja, parece que aqueles segundos demoram imenso tempo a passar. E é assim porque nós medimos o nosso tempo subjetivo em função da novidade da informação e em função da relevância afetiva."
Portanto, é normal, e falando da pandemia, que haja, "em momentos que tenham muita informação, que tenham muita coisa diferente a acontecer", uma perceção de tempo mais dilatada. "Enquanto que nos dias mais rotineiros, mais iguais uns aos outros, o que parece é que há uma perceção temporal mais reduzida”, lembra.
O “tempo duplo” e o ciclo vicioso das insónias
E a filosofia, que tanto discorreu sobre tempo e a passagem temporal, o que diz sobre esta perceção subjetiva do tempo agora, em pandemia?
“O facto de o tempo parecer estender-se, esticar-se, ter mais tempo dentro do tempo, advém simplesmente do facto de que ele não é pulsado pelas mil batidas que o pulsam quando nós estamos na vida social”, defende à Renascença o filósofo José Gil. E explica: “A nossa vida em confinamento é reduzida a certos gestos básicos, certos ritos. Mas tudo isso é artificial. No melhor dos casos, a nossa vida familiar em casa reproduz a vida social. E com gestos bem mais reduzidos: vamos comer, ler, fazer exercício, dormir. E a nossa vida relacional, social, que é muitíssimo mais complexa e rica, vai rebater-se sobre estes pequenos gestos, que se repetem sempre os mesmos, sem variação”.
Segundo o filósofo, o tempo em confinamento é um “tempo duplo”. Primeiro há um tempo suspenso da vida social, “onde tudo está reduzido à família, a pequenos gestos, ao trabalho, ao estrito tempo de trabalho”. E depois há o que considera ser o tempo de espera, “estamos sempre à espera do desconfinamento, de voltar à normalidade: o confinamento é um fechamento que leva a uma passividade, fundamentalmente é uma vida de passividade”.
As duas temporalidades, explica o filósofo, tenderão a confundir-se numa só. “O tempo suspenso passa ele próprio a ser um tempo de espera.”
O isolamento, quando demorado, pode, de entre várias perturbações psicológicas, dificultar igualmente o sono. “O que nós sabemos da psicopatologia é que não existe uma única perturbação mental que não tenha algum tipo de alteração do sono”, explica o psicólogo clínico David Neto. E ressalva que tanto podem ser insónias primárias, “a dificuldade em adormecer”, como, depois, uma espécie de sono agitado, “quando a pessoa até pode dormir as oito horas, mas sentir que não dormiu o suficiente e acordar cansada”.
Mas o sono tem igualmente uma “relação circular” com os afetos, lembra. “Porque nós sabemos também que a falta de sono, por sua vez, provoca alterações a nível de humor. E, portanto, por vezes acontecem estes ciclos viciosos, em que a ansiedade ou outro tipo de reações afetivas alteram o sono, que por sua vez tem, depois, um impacto a nível do humor e faz com que as pessoas não estejam bem.”
“Morbidez” da vida confinada e uma certeza: “Portugal é ótimo a esquecer”
Mas será tudo mau? Ou, ainda assim, é possível retirar algo positivo deste tempo? O filósofo José Gil responde. “Algo positivo? Coletivamente, não, acho que não. Individualmente há sempre exceções, pessoas que têm quase como profissão isolar-se, para investigar, pensar. E, portanto, isto pode ser até um tempo que permita o isolamento que normalmente não têm – e isso levar a uma certa criatividade. É possível. Mas no meu entender isso são casos excecionais – mesmo corporativamente excecionais. Socialmente não é admissível um tempo de confinamento. Uma sociedade não existe em confinamento: é quase um tempo mórbido.”
Atentemos na literatura. O que nos diz ela sobre o estar só? No fragmentário “Livro do Desassossego”, Fernando Pessoa escreveu, enquanto Bernardo Soares pensa que nunca sairá dos Douradores: “Somos, por pouco que o queríamos, servos da hora”. Já na poesia feita diário, Al Berto, no livro “O Medo”, escreve, a 6 de janeiro de 1984: “Passei o dia prostrado, como se esperasse alguém”.
Há muito tempo, não prostrado ou servo da hora, que o escritor, ilustrador e músico Afonso Cruz vive no Alentejo, mais ou menos isolado no seu monte em Casa Branca, no concelho de Sousel. A ele, diz à Renascença, o confinamento é mais um dia na vida.
Mas serão os escritores (não só pelo que o isolamento trará de calma, mas por haver na pandemia um objeto literário) uma profissão “privilegiada” neste confinamento? Afonso diz que não.
“Eu percebo quando se diz que os escritores precisam de isolamento. Mas não sei… Por um lado, a maior parte dos escritores até vive nas cidades. Os estímulos culturais de que um escritor necessita – o cinema, o teatro, a pintura – estarão nas cidades. E não quero dizer com isto que a natureza não seja uma fonte de inspiração; mas é só uma. Eu quando saio de casa, é aí que as coisas diferem, tenho espaço, tenho horizonte, tenho uma noção diferente da vida. Por outro lado, se nós imaginarmos que a maior parte da inspiração de um escritor está na literatura, naquilo que ele lê, o acesso às livrarias é mais próximo da vida citadina do que é aqui: a livraria mais perto fica a 60 quilómetros, eu tenho que fazer 120 quilómetros se quiser ir a uma”, lembra.
Afonso diz ver na pandemia, na catástrofe e na promessa de redenção que há numa pandemia, uma temática “recorrente na literatura, mas estimulante”. “Acho que é um ótimo exercício e ótima maneira de ver a humanidade, porque é convertê-la numa outra coisa.”
Mas não é a pandemia que mais interessa na literatura; interessam os homens em pandemia. “Tudo é matéria literária, não há nada que se possa converter em literatura. Mas a pandemia não é fundamental. Não interessa a alegoria, não interessa o contexto e ambiente em que se vai inserir história. É precisamente sobre o que não trata o livro que normalmente o livro trata verdadeiramente. A ‘Ilíada’ não é sobre a guerra de Troia; é sobre a nossa alma: a alma humana. Ao imaginar o ‘Ensaio Sobre a Cegueira’, Saramago não imaginou só um mundo apocalíptico, em que as pessoas deixam de ver; imaginou, sim, o que é que aconteceria se tivéssemos de nos relacionar em determinadas circunstâncias, circunstâncias limite", explica.
De volta ao psicólogo David Neto: o que há a fazer, afinal, para não sofrer com o tempo? “O que há a fazer? A redução das notícias, manter uma certa rotina, procurar ter alguma higiene do sono, procurar fazer exercício: são tudo indicadores que sabemos que estão associados à promoção do bem-estar e que, portanto, são úteis no lidar com estas situações de crise.”
Mas o psicólogo clínico adverte: isto pode não ser suficiente. “É muito tentador pegarmos nestas coisas que nós sabemos que são coisas boas em termos da promoção de saúde mental e de bem-estar e tentar generalizar. Mas para algumas pessoas pode não ser suficiente. Para as tais pessoas que estejam numa situação de stress acrescido, ou que tenham de alguma maneira um impacto maior, eu diria que o mais importante provavelmente é procurar algum tipo de ajuda, falarem com um psicólogo ou, pelo menos, falar com as pessoas de quem gosta, no sentido de tentar ter apoio. E é importante o apoio estar disponível.”
O que virá a seguir, e o que está já a vir, para José Gil não é necessariamente um tempo normal, mas antes um “novo normal”. E este desconfinamento é só um "reconfinamento".
"Sim, reconfinamento. Regressa-se à normalidade com restrições em tudo o que é a vida: restrições nos locais de culto, nos cinemas, nos cafés, tudo isto é faseado mas é restrito, quer dizer que nós vamos encontrar a mesma vida social, com as mesmas estruturas, instituições, postos de trabalho, lugares, tudo na mesma, mas tudo restringido. Continuará a passividade. E o que é grave é que isto vai continuar: isto é o futuro próximo. Isto vai modificar extremamente a nossa vida, ao mesmo tempo que a não modifica. Acabará por ser o novo normal, que é um normal de maior passividade do que o anterior normal”, considera o filósofo.
Afonso Cruz continua no monte alentejano. Ainda a escrever, ainda a ilustrar, ainda a produzir cerveja artesanal. Acredita que depois, seja lá quando for o depois, esqueceremos o que agora se vive. E não é só ele que o diz: é a história.
“Parece-me que nós somos ótimos a esquecer, a deixar determinadas coisas para trás. Depois das legislaturas de Cavaco Silva, votámos duas vezes para a sua Presidência. [Risos] E, portanto, nós esquecemos determinadas coisas, obliteramos. E retomamos a normalidade”, acredita.
O escritor recorre a uma epidemia histórica, a Grande Peste de Londres, de 1665, como exemplo: "Escrevi há pouco tempo sobre a Grande Peste. Há um homem que está preocupado com a moda, o que é que ia acontecer à moda. E porquê? Porque se usavam perucas e as perucas faziam-se com os cabelos de pessoas infetadas, os cadáveres. Mas a moda não mudou – mesmo arriscando a vida. E continuaram a usar perucas, mesmo sabendo que isso poderia significar o retorno da pandemia e a morte. A vida tem sempre tendência para retornar a uma espécie de normalidade."