4.5.20

Porto: destruíram-lhes as hortas comunitárias, deixando-os “ainda mais pobres”

Mariana Correia Pinto (texto ) e Nelson Garrido (fotografia), in Público on-line

Junto ao Bairro de Francos, 24 famílias tinham, há vários anos, as suas hortas num terreno privado. Sem aviso atempado, o proprietário destruiu tudo – e acabou com o sustento de gente já em grande dificuldade. Famílias contrataram advogado, mas na autarquia já entrou um pedido de construção para o terreno.

A última “máquina de destruição” saiu do terreno há uma semana, mas Manuel Augusto ainda vai ali todos os dias. Das hortas comunitárias, sobram agora despojos. E do pedaço de terra de onde tirava alimentos para levar à mesa de casa, no bairro da Associação de Moradores da Zona de Francos, nada sobrou. Manuel Augusto tinha naquele pedaço de terra no Porto o seu refúgio e alegria – e agora, boné verde posto, olha o cenário de ruína e não mascara a tristeza. “Entretinha-me aqui. E agora como vai ser?” O homem de 78 anos é apenas um dos 24 moradores daquela zona que, há muitos anos, cultivavam aquele terreno. São quase todos habitantes do bairro camarário de Francos, quase todos gente com contas magras e dificuldades largas – e as hortas eram, para muitos, um meio de subsistência.

O aviso veio “uma ou duas semanas” antes de tudo ser destruído. “Disseram a um senhor que estava aqui: ‘Têm poucos dias para sair’. E mais nada. A gente nem acreditou”, conta João Pedro, morador no Bairro de Francos, mesmo ali ao lado. Um dia, no entanto, aconteceu. A retroescavadora entrou no espaço, junto à linha de metro, e levou tudo à frente. Os pequenos barracos existentes, apoio para quem ali cultivava, foram demolidos. Galinhas e ninhadas de coelhos foram mortos. Estragaram-se alfaces, couves, batata, cebola, abóbora, feijão, tomate. “Havia aqui de tudo”, diz João Pedro, enquanto encolhe os ombros e lamenta a atitude “incompreensível” do proprietário. Espreitar o local no Google Maps, em vista de satélite, parece uma viagem no tempo: as hortas geometricamente cultivadas e os pequenos barracos desapareceram e deram lugar a um quadro de destruição e abandono.

Quem ali tinha uma horta não reclama para si o direito ao terreno. Mas pedia uma outra forma de agir: “Com mais tempo e humanidade.” Fernando Torres é o “obreiro” da contestação a ganhar forma. Tinha a sua horta há uns oito anos e pede licença para fazer uma introdução ao tema: “A minha indignação é o que isto mostra: os poderosos, com dinheiro, podem tudo.” Nunca houve um acordo escrito entre quem mantinha o campo limpo e o proprietário do terreno, mas para o morador da zona é impossível que o dono negue desconhecimento da existência das hortas. Tanto que, de dois em dois anos, a parte do terreno não ocupada era limpa – enquanto a zona tratada ficava nas mãos de quem a usava.

Fernando Torres contratou um advogado. Mas dos 24 “agricultores”, apenas dez puderam juntar-se a ele para pagar honorários: “Os pobres mais pobres não podem. Reina a lei do mais forte.” Pedem para ser ressarcidos pelo trabalho, pelos gastos nas sementes e pela colheita perdida – mas o acordo não aconteceu. Prescindiram agora do difícil cálculo do valor do trabalho e aguardam novidades.

No primeiro dia do fim das hortas, há duas semanas, Fernando Torres estava lá. Chamou a polícia para impedir a acção, mas, perante a resposta do proprietário, temeu arriscar: ter-lhe-á dito que tinha assinado um contrato-promessa de venda e que, se o perdesse por impedirem a limpeza do terreno, teriam de o ressarcir depois. “Foi uma venda de ocasião. Tivemos receio de contestar”, admite, contando que chegaram mesmo a ponderar fazer um cordão à volta do espaço. O pedido deles era simples: “Tinham avisado em Dezembro e estava tudo bem”, resume João Pedro. “Mas nesta altura do ano, já o cultivo e o trabalho foram feitos. Isto não se faz...”

Aqui vai nascer um prédio...
O PÚBLICO não conseguiu apurar a quem pertence o espaço próximo do Estádio do Bessa. Mas, por esclarecimento da Câmara do Porto, soube que “a maioria dos terrenos são privados” – existindo uma pequena parcela municipal. “Eventualmente qualquer horta ali existente terá surgido com acordo do proprietário, mas desconhece-se”, responde a autarquia, a propósito da existência de hortas que poderiam exigir uma intervenção diferente. De acordo com o plano director municipal (PDM), acrescenta, os cultivos localizavam-se em “Solos Urbanizados – Área de Edificação Isolada com Prevalência de Habitação Colectiva”. Por outras palavras: “É possível a edificação” naquele terreno.

E tudo indica que será isso a acontecer. “Para o terreno privado, localizado entre a rotunda e a linha de metro, encontra-se em curso um PIP, que prevê a sua urbanização, em cumprimento com o preconizado no PDM”, informa o executivo de Rui Moreira, acrescentando ainda que “no âmbito do PDM, está prevista a continuidade do troço viário já iniciado, que ligará a Rotunda do Bessa à Rua de Frederico Ozanam, bem como a uma outra via prevista, paralela à linha do metro”.

Para o “obreiro” da luta dos moradores de Francos, Fernando Torres, a acção do proprietário deveria ser considerada “atentado público”. Avaliará com o advogado a possibilidade de saírem disto com alguma almofada que faça frente às perdas. Mas, se tal não for possível, quer, ao menos, que o assunto fique registado: “Isto, na verdade, já nem é pelo dinheiro. É pela honra e dignidade. Até os bichos mataram…”

João Pedro põe o dedo na ferida maior: “Esta situação seria sempre difícil, mas no estado em que estamos agora estas hortas eram mais importantes do que nunca”, atira. Com a pandemia de covid-19, conta, as dificuldades no bairro camarário cavaram ainda mais fundo. Muitos perderam o emprego, entraram em layoff, viram ordenados reduzidos. Ficar sem a horta, deixa várias famílias “ainda mais pobres”.

“Era aqui que muita gente vinha buscar comida para pôr na mesa ou para vender”, afirma João Pedro. Confirma, de imediato, Andreia Almeida: “Levava para casa e sou vendedora ambulante, para fazer um extra. Tirava daqui o que vendia nas feiras.” A conta não é exacta, mas João Pedro arrisca com garantia de reduzida margem de erro: “São 24 pessoas a cultivar, mas o alimento chega a umas cem pessoas dessas famílias.” E ainda sobrava para cobrir necessidades de outros, acrescenta o vizinho José Barbosa enquanto ouve a conversa. Morador em Francos e reformado, lavrava ali a sua horta há 11 anos, e “até canários” tinha no seu pequeno barraco. “Levava alimento para casa, dava aos filhos e a outros”, conta, sem tirar os olhos do terreno. “Entretinha-me aqui...”, finaliza, sem esconder a emoção.

Na tristeza de José Barbosa reside uma outra questão. Quem o diz é João Pedro, um dos mais novos do grupo: “Isto é um desgosto enorme para muita gente. Pode escrever: muitos estão deprimidos por causa disto.” A “dona Lurdinhas”, anciã das hortas, com 89 anos, é um desses casos, exemplifica. “Tinha aqui o espaço dela há uns 40 anos.” Contam os vizinhos que, tal como Manuel Augusto, também ela se recusa ainda a aceitar este desfecho. Vai para o terreno quase todos os dias e senta-se no meio dos despojos, como se deles ainda pudesse brotar o que se destruiu.