4.5.20

Pouco ou nada é quanto estão a receber os “invisíveis” que fazem a música acontecer

André Borges Vieira (Texto) e Paulo Pimenta (Fotografias), in Público on-line

Num meio duramente castigado pelas medidas de confinamento como o das artes do palco, os profissionais dos bastidores estão entre os que enfrentam maiores dificuldades. Sem garantias a curto prazo, é toda uma classe paralisada e sem rendimentos, à qual o apoio extraordinário nem sempre chega.

Em Março, Célia Correia, técnica de luz cuja agenda de trabalho tem estado em branco desde o início da pandemia, como a de muitos dos seus colegas de bastidores, candidatou-se ao apoio financeiro extraordinário à redução da actividade concedido pela Segurança Social. Aguardou pela resposta com expectativa, ansiosa por saber se em Abril conseguiria, com o valor que contava receber, pagar parte da renda da casa, que em Março só ficou saldada porque recorreu a ajuda familiar. Afinal, Abril não foi diferente e no último mês a transferência para o senhorio ficou em espera. Da Segurança Social chegou o aviso de que não seria contemplada porque no ano passado tinha feito alguns trabalhos noutra condição que não a de trabalhadora independente – na altura, e por ter sido celebrado contrato de trabalho, não passou recibo verde.

Os contratos que agora lhe vedaram um apoio precioso foram celebrados apenas por três dias, e relativos a três trabalhos diferentes. Porém, foi o suficiente para não ter acesso ao auxílio financeiro que outros colegas conseguiram garantir, ainda que num montante manifestamente insuficiente para cobrir todas as despesas mensais e muito aquém da remuneração mensal habitualmente auferida – o primeiro pagamento, correspondente ao mês de Março, que chegou esta semana à conta de quem foi contemplado, fica-se pelos 295 euros, por dizer respeito apenas a 20 dias do mês. O valor máximo estipulado pelo Governo, correspondente ao mês inteiro, está fixado nos 438,81 euros para quem tem rendimentos médios declarados até 658,22 euros.

Célia Correia faz parte dos “invisíveis” para quem o Cena – Sindicato dos Trabalhadores de Espectáculos, do Audiovisual e dos Músicos (Cena-STE) reivindica uma resposta à altura da paralisação total destes tempos de pandemia. Calcular quantos são é “impossível”, mas os técnicos de apoio às artes de palco, que já viviam numa situação precária, estão muito longe de conseguir ver uma luz ao fundo do túnel, talvez mais até do que os artistas cujos espectáculos têm por missão viabilizar.

Rui Galveias, dirigente do Cena-STE, diz que em Portugal haverá cerca de 130 mil trabalhadores no sector da Cultura, sendo que no universo das artes do espectáculo rondarão os 30 mil. De acordo com o resultado do inquérito lançado em Março por este sindicato, a classe já perdeu “pelo menos” dois milhões de euros desde que o sector entrou em paragem forçada.

A 1 de Abril, o Cena-STE reuniu com o Ministério da Cultura (MC) para discutir medidas de auxílio a estes profissionais. Esta quinta-feira deveria ter havido nova reunião, que acabou adiada para 5 de Maio. Do Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social, com o qual querem também sentar-se à mesa para apresentar um rol de propostas, dizem não ter ainda conseguido qualquer resposta. “O Ministério da Cultura desconhece o sector. Dizem que as medidas são suficientes, mas não são e não chegam a muita gente”, lamenta Rui Galveias.

Miguel Dias está na fatia de profissionais contemplados pelo apoio do Estado. A 28 de Abril, entraram na conta bancária deste técnico de som 110 euros. Cerca de 70 euros vão acabar por ser devolvidos à Segurança Social, porque ainda tem de pagar a contribuição do mês anterior, mesmo já não tendo tido então qualquer rendimento. Sobram-lhe aproximadamente 40 euros para o mês inteiro e a certeza de que nos próximos meses não vai ter qualquer actividade na área em que se move. Os trabalhos para os quais era contratado habitualmente não vão acontecer – perdeu a oportunidade de trabalhar no Boom Festival, no DDD – Festival Dias da Dança, no Festival Internacional de Teatro de Expressão Ibérica (FITEI) e no Waking Life. “Mais uma vez” vai ter de pedir ajuda financeira, diz ao PÚBLICO.

Um pouco mais, “cerca de 200 euros”, conseguiu João Quintela. Até 7 de Março, quando teve o seu último trabalho, o técnico de luz de Conan Osiris, Miramar, Da Chick e, ocasionalmente, do Lux-Frágil e do Musicbox, entre outros espaços nocturnos, auferia mensalmente entre 900 a mil euros. Natural de Gaia, radicado em Lisboa há cinco anos, serve-se agora das “reservas” para aguentar a renda e a alimentação. “Nós, os trabalhadores independentes, estamos habituados a poupar algum a pensar em tempos piores que possam vir”, nota. Porém, nada o faria imaginar algo tão drástico. Foi assimilando a realidade à medida que as cerca de 30 datas de trabalho que tinha na agenda foram sendo desmarcadas. “De Março a Agosto foi tudo cancelado”, atira.

Com a agenda em branco ficou também Rita Sousa, técnica de audiovisuais. Perdeu temporariamente os principais clientes – Casa da Música e Fundação de Serralves – e todos os outros. Para compensar, a Segurança Social transferiu-lhe este mês 292,96 euros. Não se conforma com o montante transferido, mas sublinha conhecer colegas que não conseguiram qualquer tipo de apoio, “ou porque não passaram mais de 50% dos recibos à mesma entidade ou porque fizeram um ou dois trabalhos com contratos de um dia”, como Célia Correia.

Eduardo Maltez, técnico de som de Capicua e ocasionalmente de Mão Morta ou Bezegol, é um dos que não beneficiam de qualquer apoio, porque além do trabalho como freelancer, que representa grande parte do seu rendimento, tem ao mesmo tempo um contrato de trabalho – está vinculado a uma promotora, ainda que esteja agora em layoff. Com um “corte substancial” nos ganhos, enfrenta as mesmas dificuldades que outros colegas. Ainda assim, “neste cenário”, considera estar numa posição “um pouco melhor”. A longo prazo, porém, teme ficar na mesma situação.

À procura de soluções
Ao contrário dos músicos, que vão podendo a partir de casa fazer concertos transmitidos em streaming, ainda que na maior parte dos casos sem qualquer remuneração associada, os profissionais de bastidores dificilmente encontrarão lugar num mundo sem palcos. Eduardo Maltez e João Quintela adiantam que estão a ser estudadas com alguns artistas formas de os técnicos serem envolvidos nos novos circuitos digitais das artes do palco, para que não se vejam irremediavelmente fora da corrida – como dizem ter acontecido no caso do TV Fest, iniciativa do MC que acabou por não ir para a frente, ou noutras semelhantes. No caso do TV Fest, recorde-se, ficava ao critério dos artistas repartirem o cachet que lhes estava garantido com os seus técnicos.

“Uma ideia infeliz” é como João Brandão, responsável pelos Arda Studios, rotula o festival que ficou pelo caminho. Defende uma solução que envolva todas as partes, de forma a que a comunidade mais “invisível” da música, mas que está na “primeira linha” da indústria, tenha as mesmas possibilidades que aqueles que sobem ao palco – o que considera não ter sido acautelado no TV Fest que saiu da cartola da tutela.

Com um projecto em que investiu cerca de 1,5 milhões de euros nas mãos, João Brandão perdeu todos os trabalhos que estavam marcados desde o ano passado. Foi obrigado a colocar alguns funcionários em layoff e não sabe se daqui a uns meses vai também ele estar nessa situação. “Há projectos adiados indefinidamente e não sabemos quando serão reactivados”, conta.

Quanto aos apoios disponíveis, argumenta que são insuficientes, sobretudo para quem vive atrás das luzes do palco. “Não somos o rosto visível da indústria, mas somos quem faz a indústria andar para a frente”, afirma, para concluir que os apoios, se já são escassos para os músicos, mais dificilmente chegam a “quem faz som, ao manager, ao promotor e por aí fora”.

Ainda que o cenário não seja animador, o responsável pelo estúdio portuense reserva algum optimismo para os tempos de retoma. Ainda que antecipe haver menos dinheiro para os músicos poderem gravar álbuns, acredita que não vão deixar de o fazer. “Nos últimos cinco anos, depois da outra crise económica, viveu-se um período mais optimista, com as bandas a saírem da garagem para gravarem com qualidade, ao nível do que se faz noutros países. Não podemos regredir 15 anos. Para uma banda chegar ao palco, o trabalho de estúdio continua a ser importante”, afirma.

Menos optimista está Vítor Moura, à frente de uma empresa de aluguer de backline que presta todos os serviços necessários para fazer um concerto acontecer, do transporte de materiais ao stage management, dos roadies à montagem de palcos. Até ao final de Fevereiro tinha mais de dez festivais agendados. “Foi tudo cancelado e a facturação passou a zero”, diz. Fez o pedido para entrar em layoff e enquanto aguarda pelo despacho vai encaixotando todo o material. “Estou a preparar-me para o deixar guardado durante um ou dois anos. Enquanto isso vou ter de deixar o meu sonho em espera.” Como outros técnicos com quem falámos, equaciona mudar de ramo de actividade.