9.11.20

Como está a economia digital a reproduzir a desigualdade de género?

Ana Cristina Pereira, in Público on-line

Correm maior risco de perder o emprego com a automação e estão menos presentes no sector das tecnologias de informação e comunicação, onde se ganha melhor e muito se joga. A transição para o digital no trabalho não está a evitar a segregação profissional, nem a diminuir a disparidade salarial ou a sobrecarga com a casa e a família.

O futuro já começou: as tecnologias de informação e comunicação (TIC) estão a mudar a educação, o trabalho, a investigação e, por arrasto, a vida de todos e de cada um. O Instituto Europeu de Igualdade de Género (EIGE, na sigla inglesa) cruzou inquéritos e estudos, produziu um relatório sobre “as oportunidades, os riscos e os desafios” e mostra como este admirável mundo novo está a reproduzir velhas desigualdades.
O risco da automação

Sobe para 166 o número de municípios com plano para a igualdade


O debate sobre o futuro do trabalho tem estado muito centrado no papel crescente das tecnologias numa economia que se quer dinâmica e sustentável. E a transição digital, muitas vezes apresentada como a panaceia para aumentar a produtividade e a competitividade, tem um lado “perturbador”: levará ao desaparecimento de uns empregos e à reformulação de outros.

Não será igual em todos os países, nem em todos os sectores, mas, na União Europeia, as mulheres correm um risco ligeiramente maior de ver o seu emprego suprimido pela robótica e outros avanços tecnológicos. As previsões agora apresentadas pelo EIGE reforçam o que já antes fora anunciado pelo Fundo Monetário Internacional e pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico.

A tradicional segregação de profissões por género dita esse destino, como diz Jakub Caisl, um dos autores do relatório, em entrevista por email. “Em diferentes áreas, as mulheres representam a maior porção de trabalhadores entregues a tarefas rotineiras e repetitivas. Em termos históricos, a perda de empregos para a automação está associada a trabalho administrativo, apoio ao cliente, serviço financeiro, áreas que se tinham aberto às mulheres.”

Como evitar que isso contribua para aumentar a expressiva desigualdade entre homens e mulheres? “Em primeiro lugar, será necessário garantir a igualdade de género em relação às políticas de apoio aos trabalhadores desempregados pela digitalização; historicamente, tais políticas têm sido, de forma inadvertida, contra as mulheres, concentrando-se em sectores industriais dominados por homens, e não no sector dos serviços”, enuncia. “Em segundo lugar, será necessário envolver as mulheres na gestão desta transformação. Finalmente, serão necessários esforços para disponibilizar novas oportunidades de emprego a todos, por exemplo, quebrando estereótipos de género ocupacional e promovendo empregos sustentáveis, ​​que permitam um bom equilíbrio entre vida pessoal e profissional.”

O perito vê algumas “tendências positivas”. “Embora as mulheres enfrentem um risco um pouco maior de automação com base nos padrões de emprego actuais, há sinais de que a estrutura de emprego das mulheres está a mudar. O sucesso educacional das mulheres cresceu rapidamente e muitas lacunas de género na educação já foram eliminadas. As mulheres começaram a assumir grande parte dos novos empregos altamente qualificados que provavelmente não serão automatizados.” Mas muitas dos novos empregos com melhor salário assentam nas áreas de ciência, tecnologia, engenharia e matemática (STEM, na sigla inglesa), em particular nas tecnologias de informação e comunicação (TIC). E aí o ponto de partida de homens e mulheres está muitíssimo longe de ser igualitário.

O desafio das TIC

Não se pode dizer que haja uma diferença significativa no uso diário que cada um faz da Internet. Na população entre os 16 e os 74 anos da União Europeia, mulheres (78%) e homens (80%) até gozam de semelhante acesso — e Portugal não é excepção (64% para 67%). Ficam para trás, sim, nos grupos mais velhos e menos escolarizados. Quando o que está em jogo é o acesso ao mercado de trabalho, porém, mais do que as competências digitais básicas, como utilizar um motor de busca ou aceder a redes sociais, importam as competências avançadas, como a capacidade de resolver problemas. E aí a diferença é de 31% para 36% (em Portugal, 30% para 34%).

Não é o mesmo em todas as fases da vida, nem em todos os níveis de escolaridade. Os jovens, que já nasceram com computador, telemóvel e Internet, têm mais competências. E nessa faixa etária, 16-24, mal se consegue distinguir raparigas (59%) de rapazes (60%). A diferença alarga-se com a idade. E é muito visível no nível de educação formal médio: 64% das mulheres e 74% dos homens têm competências acima do básico (56% para 71% em Portugal).

Os mais optimistas dirão que os jovens estão no bom caminho e que o resto se resolve com a chamada formação ao longo da vida. Não é isso que se depreende do relatório do EIGE. As mulheres (18%) revelam-se menos disponíveis do que os homens (22%) para fazer formação (16% para 22% em Portugal).

Como lembrou a nova directora do EIGE, Carlien Scheele, na conferência de imprensa online de apresentação do relatório, no dia 29 de Outubro, as tarefas relacionadas com a casa e a família deixam milhões de mulheres completa ou parcialmente fora do mercado de trabalho e ainda mais milhões sem tempo livre para melhorar as suas competências.

Não é só a falta de tempo. A pesquisa do EIGE sobre as oportunidades e os riscos da era digital na juventude mostra que os rapazes “expressam consistentemente maior autoconfiança em relação ao uso de tecnologias digitais”. “Os rapazes tendem a sobrestimar o seu desempenho e competências, enquanto as raparigas subestimam ambos”.

O persistente preconceito

“É um problema que começa na educação esta permanente e persistente estereotipia de género na forma como são vistas as aptidões e as competências de homens e mulheres”, comenta a secretária de Estado para a Cidadania e a Igualdade de Género, Rosa Monteiro. Em Portugal, apenas 0,2% aspiram a trabalhar nas TIC, uma das médias mais baixas da UE.

O desafio, como disse ao telefone aquela governante, “é comum”. Entre os finalistas de TIC de 2018, a diferença era de 20 raparigas para 80 rapazes (19 para 81 em Portugal). Entre os especialistas a trabalhar na área, a proporção era de 18 mulheres para 82 homens (16 para 84 em Portugal).

No ano passado, todos os Estados-membros se comprometeram a impulsionar a participação das mulheres nas áreas mais qualificadas do sector (WiD). Já este ano, foi lançada a Estratégia Europeia para a Igualdade de Género 2020-2025, que assume a integração da perspectiva de género na transição digital como essencial para alcançar a meta da igualdade. “Muito poucas trabalham na indústria e as que trabalham enfrentam muito preconceito”, sintetizou Helena Dalli, a comissária europeia para a Igualdade, na mesma conferência de imprensa online.

FotoRosa Monteiro lançou no final de Outubro a 4.ª edição do programa Engenheiras por Um Dia, destinado a atrair raparigas para as Engenharias em geral e para as TIC em particular MIGUEL MANSO

As mulheres até deram um contributo sólido à inovação tecnológica como programadoras e cientistas da computação. Só que o seu papel é muitas vezes invisibilizado. Um domínio masculino tão forte, lê-se no relatório, “cria uma falsa e infundada impressão de inferioridade das mulheres”.

“Está ao nível do sector militar”, corrobora Ana Sofia Fernandes, presidente da Plataforma Portuguesa dos Direitos das Mulheres e vice-presidente do Lobby Europeu das Mulheres. Alguns estudos indicam essa cultura organizacional masculina, a ausência de modelos/exemplos que sirvam de inspiração, a falta de práticas de conciliação. Outros destacam o assédio sexual, que pode desencorajar as mulheres de entrar no sector ou incentivar a sua saída.

Ter mais mulheres no sector pode fazer toda a diferença em matéria de igualdade. São empregos bem pagos que oferecem alguma flexibilidade para organizar o tempo de trabalho: “83% das mulheres e 80% dos homens nas TIC acham muito fácil ou razoavelmente fácil arranjar uma ou duas horas durante o horário de trabalho para cuidar de assuntos pessoais ou familiares”.

Ao mesmo tempo, a disparidade salarial entre homens e mulheres, apesar de ser uma das mais baixas, resiste. É, esclarece Jakub Caisl, uma consequência das diferenças de género na jornada média de trabalho, nas posições que ocupam no sector de TIC e na remuneração que auferem por hora. Quer isto dizer que, como noutros sectores, a carreira deles progride mais ou mais depressa.

As consequências de tal ausência são mais amplas do que pode parecer. A falta de mulheres nas STEM, em particular nas TIC, explica Jakub Caisl, pode fazer com que preconceitos de género sejam incorporados nos novos serviços e produtos digitais. Dá o exemplo das diferenças de género no enjoo face à exposição à realidade virtual: “Um estudo recente demonstrou que a distância interpupilar contribui para o enjoo entre as mulheres, porque os headsets de realidade virtual não foram projectados para a fisiologia feminina.”

“É importante que as raparigas e as mulheres sejam não só utilizadoras, mas também criadoras”, concorda Ana Sofia Fernandes. “Os algoritmos são criados por pessoas. Se essas pessoas são todas do sexo masculino, é a sua concepção da realidade que, consciente ou inconscientemente, vai ser transmitida através dos algoritmos.”

Não é só uma questão de igualdade. A inclusão de mulheres é necessária para responder à procura de especialistas em TIC e tornar a UE mais competitiva. O EIGE estima que atrair mais mulheres para os sectores das STEM e das TIC levaria a um crescimento económico na UE com mais empregos (um aumento de até 1,2 milhões até 2050) e um maior PIB a longo prazo (até 820 biliões de euros em 2050).

Jakub Caisl cita números do Eurostat reveladores do que se passa no mercado de trabalho: “Entre 2008 e 2018, o crescimento do emprego de especialistas em TIC foi mais de 12 vezes superior ao crescimento médio do emprego na UE.” Só não foi maior pelo desencontro entre a alta procura e a oferta relativamente baixa de especialistas no mercado de trabalho da União Europeia. “A maioria dos Estados-membros da UE refere dificuldades em encontrar um número suficiente de profissionais da ciência, engenharia e TIC.”

Como evitar a continuação da prática de segregação profissional? Como atrair mais mulheres para estas áreas? “Ajuda se escolas puserem este tópico na sua agenda, se tiverem isto em conta no que fazem”, responde Carlien Scheele. A ligação às empresas também lhe parece fundamental para combater os preconceitos. Mas nada disso chega, avisa. Importa, também, fazer mudanças dentro das empresas do sector, torná-las mais amigáveis.

Em Portugal, Rosa Monteiro acaba de lançar a 4.ª edição do programa Engenheiras por Um Dia, destinado a atrair raparigas para as Engenharias em geral e para as TIC em particular. E convidou uma gestora de topo, Luísa Ribeiro Lopes, para coordenar o Eixo da Inclusão da Iniciativa Nacional Competências Digitais, uma das três do Plano de Recuperação e Resiliência, atribuindo-lhe a tarefa de assegurar que nas várias dimensões são definidas metas e acções concretas que contribuam para a inclusão das mulheres no digital. Já nessa lógica, houve uma campanha específica para angariar mulheres para o Upskill, um programa nacional que une o Instituto de Emprego e Formação Profissional, o Conselho Coordenador dos Institutos Superiores Politécnicos e a Associação Portuguesa para o Desenvolvimento das Comunicações num esforço para requalificar profissionais desempregados ou numa situação de subemprego em áreas como programação ou gestão de plataformas tecnológicas. Neste primeira edição, as mulheres representam 40% dos participantes.

O progresso está a ser monitorizado em todos os Estados-membros. Só que integração da igualdade de género na era digital é mais abrangente. E os políticos têm dito muito pouco, por exemplo, sobre as novas oportunidades de trabalho nas plataformas digitais.
As novas plataformas

Um breve retrato sobre as plataformas de trabalho feito pelo EIGE: há serviços que exigem presença física no local, mas a maioria é desempenhada online. Alguns serviços são bem pagos, mas a maior parte não. O baixo rendimento pode não ser problemático para quem usa a plataforma como um extra, mas “há uma parcela não-desprezível da população adulta da UE (cerca de 2%) que tem o trabalho de plataforma como principal actividade”. Um em cada três trabalhadores é do género feminino.

A falsa igualdade no acesso ao ensino superior em 2020


Há todo um debate sobre até que ponto as plataformas capacitam ou exploram quem trabalha através delas. Parte desse debate está a acontecer em vários países no seio dos tribunais de Trabalho. Por um lado, ouve-se um discurso sobre autonomia na escolha do horário e do local de trabalho, o que, em teoria, facilita a conciliação entre vida profissional e pessoal. Por outro, queixas sobre certos serviços adoptam práticas que limitam a autonomia. E “uma parte substancial dos trabalhadores tem pouco ou nenhum acesso a protecção social”.

De fora do debate público em torno desta nova forma de organização parece ficar a dimensão de género. Na sua substância, salienta Jakub Caisl, o trabalho realizado através de plataformas digitais reproduz a velha segregação profissional por sexos: os homens predominam nos trabalhos relacionados com desenvolvimento de software e transporte, por exemplo, e as mulheres nos trabalhos de tradução e serviços domésticos, por exemplo. E a falta de acesso à protecção social associada ao parto e à parentalidade “tem uma dimensão de género particularmente forte”.

Os vários estudos apontam para disparidades salariais que variam entre 4% e 20%. Um quadro misto emergiu de um estudo feito pela Organização Internacional de Trabalho em cinco plataformas em 2017: as mulheres tinham uma taxa de remuneração por hora mais alta numa plataforma (Microworkers) e quase igual noutra (Clickworker), mas menos 5% a 18% noutras três plataformas (AMT, Crowdflower, Prolific).

O que explica esta disparidade? Para além da segregação profissional por sexo e da desequilibrada partilha de trabalho doméstico, o perito refere características específicas do trabalho das plataformas. Ocorre-lhe o exemplo de um estudo que analisa mais de um milhão de motoristas da Uber nos EUA e se depara com uma disparidade salarial de 7%. Essa “pode ser atribuída a três factores: experiência na plataforma (os homens tendem a trabalhar para a Uber mais tempo e de forma mais intensa), preferências sobre locais de trabalho (relacionada com a área de residência dos motoristas e, em menor medida, com segurança), e preferências por velocidade (os homens tendem a conduzir mais depressa)”.

A pressão da pandemia

A pandemia de covid-19 acelerou a mudança, forçando o recurso ao teletrabalho sempre que possível. “Parte da nossa vida transferiu-se para o online”, como disse Helena Dalli. As TIC emergiram como “uma forma de salvação”. De repente, revelaram a única possibilidade de muitas pessoas se manterem ligadas umas às outras e de continuarem a aprender e/ou a trabalhar. Para Carlien Scheele, a pandemia veio aumentar a pressão sobre as mulheres, sobrecarregando-as com ainda mais tarefas relacionadas com a casa e a prestação de cuidados. E é “evidente que o teletrabalho não pode ser visto como uma solução de longo prazo”.

Antes da pandemia, já havia mais mulheres do que homens a fazer teletrabalho para melhor conciliar a vida profissional com a vida familiar. Diversos estudos citados no relatório indicam que a flexibilidade acaba por expandir a esfera de trabalho. Os funcionários tendem a trabalhar ainda mais horas. E as mulheres, que usam o teletrabalho como estratégia para encaixar as tarefas domésticas e a prestação de cuidados, correm maior risco de acabar por ficar esgotadas.