12.2.21

Amordaçados pela vergonha, há cada vez mais "novos pobres"

Fábio Monteiro, in RR

Todas as semanas, chegam novas pessoas abalroadas pela crise pandémica às ruas. Muitos ainda resistiram durante os primeiros meses, mas agora ficaram sem nada. Envergonhados, procuram ajuda, “não fazem a menor ideia como o sistema funciona” e não querem viver de “caridadezinha”, conta Natália Abrunhosa, coordenadora do Centro de Apoio ao Sem Abrigo (CASA) no Porto. Rede Europeia Anti-Pobreza admite “crescimento exponencial" da pobreza. De artistas a empregadas de limpeza e até advogados, todos caíram ou estão prestes a cair num fosso de exclusão social.

A pobreza é para 21,6% dos portugueses o mesmo que um fosso sem rede é para um equilibrista: um risco com o qual são obrigados a conviver. Ao percorrer a corda bamba, o artista sabe que uma rajada de vento mais forte pode desequilibrá-lo, porventura fazê-lo cair; e apesar da componente performativa, onde o medo pode ser disfarçado, escapar à queda nunca deixa de ser a primeira prioridade que tem em mente.

Um em cada cinco portugueses vive com esta pressão; debaixo dos pés, têm o fosso da pobreza e da exclusão social, segundo dados do Eurostat relativos a 2019, divulgados em outubro do ano passado. E se este número causa vertigens, é de sublinhar que não contabiliza ainda os efeitos do furacão chamado pandemia.

O cenário agora será muito mais crítico; há muitos “novos pobres” em Portugal que ainda não aparecem nas estatísticas. De acordo com um relatório da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE) divulgado esta semana, por causa da Covid-19 mais de 100 milhões de pessoas foram empurradas para uma situação de extrema pobreza em 2020 e 270 milhões de pessoas passam fome.

Carla, 44 anos, é divorciada e tem um filho adolescente. Perdeu o equilíbrio, tombou, está apenas agarrada por uma mão à corda. E o vórtice da pobreza não lhe é estranho. Foi apenas há alguns anos que conseguiu escapar-lhe. “Já tinha tudo certinho, contas, trabalho, etc. Foi horrível ter de ficar fechada e tudo isso… é reviver memórias antigas.” Até março de 2020, tinha dois empregos. Era ajudante numa instituição de solidariedade social e, para complementar, ainda fazia horas numa empresa de limpezas. Agora, sobrou-lhe apenas o primeiro; depende de ajudas da família para pagar a renda de casa, teve de procurar ajuda psicológica.

Numa situação igualmente sensível está também Filipe. O homem de 37 anos é solteiro e trabalhador independente. Tem formação em teatro e trabalha, em regime de part-time, numa escola profissional. A Covid-19 fê-lo tropeçar. “No início de março, tinha uma série de projetos na área artística e também na formação e tudo parou. Financeiramente houve um grande buraco, criei uma expectativa de receber ‘X’ dinheiro e tudo desaparece.” Durante o verão do ano passado, não teve qualquer rendimento. Sobrevive com meio salário das aulas.

Cidália, de 46 anos, já só tem dois dedos a segurá-la à corda. Era empregada de limpeza, maioritariamente em escritórios. Com o teletrabalho a tornar-se moda e necessidade, perdeu muitos dos seus clientes. O marido, que trabalhava como cozinheiro, também veio para casa. O único rendimento que sobrou à família, por momentos, foi o do filho mais velho. Foi necessário negociar com o senhorio a renda de casa. “Toda a bolsa de poupanças, que estávamos a conseguir ter, foi-se e ainda temos uma caução relativamente à renda para repor”.

Filipa, 28 anos, é solteira e tem dois filhos – um com dois anos e outro com 10 meses. Trabalhava como empregada de balcão numa pastelaria. Estava de licença de maternidade quando os primeiros casos do novo coronavírus foram diagnosticados no país.

Em junho, a jovem mãe contava regressar ao trabalho, mas isso já não aconteceu. “Quando contactei a entidade empregadora, fui informada que ele não tinha dinheiro para me pagar e tinha lá uma pessoa a trabalhar com ele, mas só a fazer as horas de maior afluência e que para me pagar a mim o tempo inteiro não tinha capacidade para me pagar o ordenado. E então houve supressão do posto de trabalho por carência económica.” A única razão pela qual não caiu é o subsídio de desemprego que recebe da Segurança Social.

Joana é advogada, trabalhadora independente. Tinha avenças com alguns clientes. Sempre que ia de férias, viajava para fora de país; vivia desafogadamente. “Tinha boas roupas, boa vida, bom carro.” Logo após o primeiro confinamento, entre março e maio do ano passado, foi vender roupas para arranjar algum dinheiro. Com o passar dos meses, a situação só se agravou. Não fosse a ajuda da família, estava no fosso.

O silêncio dos novos pobres

Joana (nome fictício) é amiga de Natália Abrunhosa, coordenadora do Centro de Apoio ao Sem Abrigo (CASA) no Porto. Foi ela que contou à Renascença a história da advogada. Pessoas como a Joana “não vão ter connosco [CASA], na sua grande maioria, mas algumas vão. Esta grande maioria vai tentando pedir ajuda à família”, diz. Aliás, Natália só soube da situação “desesperada” de Joana por uma amiga em comum. Porquê? “Vergonha”.

Natália é voluntária no CASA desde 2012, mas os últimos dez meses não têm qualquer comparação possível, garante. “Foi um ano absolutamente assustador.” O número de refeições servidas por semana triplicou: passou de 200 para 600. Houve uma explosão de “novos pobres”, novos rostos a pedir ajuda alimentar – e não só - que continuam a surgir semana após semana.

Os ditos “novos pobres” aparecem desorientados. Procuram ajuda e “não fazem a menor ideia como o sistema funciona”. “São pessoas novas, pessoas que até agora se foram aguentando, mas que agora, nesta segunda fase do confinamento, ficaram sem nada. Voltaram a fechar mais estabelecimentos, voltaram a despedir mais pessoas”, conta Natália.

Para ilustrar do que fala, a voluntária conta uma história: há alguns meses, foi contactada via telemóvel por “um senhor muito bem vestido”, que na fotografia aparecia de “fato e gravata”. O homem, na casa dos 40 anos, morava no centro do Porto e era comissionista para uma operadora de telecomunicações, fazia a chamada venda porta à porta. “Com a questão da pandemia, naturalmente, ninguém abre a porta a ninguém, e não é uma prioridade estar ali a falar com uma pessoa que não se conhece de lado nenhum.” E assim ficou sem emprego – tal como milhares de portugueses.

Enquanto “foi tendo uma almofadinha financeira”, o homem foi-se inscrever no Centro de Emprego, pediu ajuda na Junta de Freguesia. Mas a ajuda não chegou no imediato. “É preciso analisar, é preciso verificar a veracidade das coisas que o senhor diz. Conclusão: ele ficou, durante algum tempo, sem ter absolutamente nada em casa para comer. Foi comendo o que tinha, foi-se orientado, mas chegou a um ponto em que não tinha nada. Tinha tudo vazio.” Só aí pediu ajuda ao CASA.

O homem na história de Natália não é alguém que quer “viver da caridadezinha”, “ele quer ser independente como sempre foi”. “É uma pessoa que tinha a sua vida organizada e, de repente, nem sabe sequer se vai ter que entregar a casa onde mora. Isto é a realidade de muitos, muitos, muitos portugueses neste momento”, nota Natália.
"Crescimento exponencial"

Os sinais para futuro não são bons. A crise pandémica que começou por ter uma natureza sanitária, mas neste momento é também uma “profunda crise económica e social”, sublinha Sandra Araújo, diretora executiva da EAPN – Rede Europeia Anti-Pobreza em Portugal.

A taxa de desemprego no último trimestre de 2020 estava nos 7,1%, enquanto no período homólogo em 2019 era de 6,7%. Em dezembro do ano passado, mais de 402 mil portugueses estavam inscritos no IEFP, um aumento de quase 30% face ao mesmo mês em 2019.

Segundo os “Números da Pandemia”, um conjunto de indicadores estatísticos compilados pela Pordata, o “sentimento económico” em Portugal das empresas caiu de forma acentuada: da 5.ª posição em 2019 para o 20.º lugar no ano passado. Este índice, que varia entre 0 e 120, atingiu em maio de 2020 o pior registo de sempre (66,2), sendo que a anterior pior marca havia sido 76,2 em abril de 2009. Para já, estes números apontam pelo menos uma coisa: vai demorar tempo até haver uma nova onda criação de postos de trabalho.

Apesar de não conhecer o último relatório da OCDE, Sandra diz que todos os estudos que tem lido, tal como os dados que vão sendo compilados pela EAPN, traçam um cenário negro. “É de facto espectável que haja um crescimento exponencial nesta área da pobreza, da exclusão social.” As organizações que estão no terreno – como é o CASA - não trazem boas novas. “Tem havido um aumento enorme de pessoas em situação de sem-abrigo.”

No final do ano passado, a Rede Europeia Anti-Pobreza compilou em livro uma série de testemunhos de portugueses a passar dificuldades, nos quais se incluem as histórias de Carla, Filipa, Filipe e Cidália.

Uma mordaça chamada vergonha

No Ocidente, na Europa, talvez associemos mais a fome a África, às imagens do abutre e da criança subnutrida, do que àquela com que nos cruzamos muitas vezes na rua. Ou ao vizinho do prédio, o rosto que vemos diariamente, mas cujas dificuldades são imaginárias. Onze meses passados desde o começo da pandemia em Portugal, talvez se perceba melhor o sucesso de iniciativas como a Caixa Solidária.

Em março do ano passado, Nuno Botelho foi logo confrontado com a existência dos “novos pobres”. O fotojornalista, que mora em Carcavelos, estava como milhares de portugueses em casa e queria fazer algo para ajudar quem estivesse a passar dificuldades. Ainda hesitou, mas optou por agir localmente: pôs uma caixa na rua com bens alimentares e anunciou a localização nas redes sociais – uma ação que acabou por “viralizar” e dar corpo à Caixa Solidária. As regras eram simples: quem precisasse podia ir levar; quem tivesse a mais, quisesse oferecer, podia deixar.

“No início até estava um bocado coiso. Estava a pensar pôr a caixa fora daqui, porque é um bairro residencial de moradias. Pensei que não ia ter muito sucesso, que ninguém ia pegar naquilo. Enganei-me redondamente”, conta.

O fotojornalista – que já esteve 15 anos a recibos verdes – percebeu assim “a quantidade pessoas que não estão referenciadas”. E que novos ou velhos pobres, ambos estão amordaçados pela vergonha. “Pobreza envergonhada, as pessoas têm medo de pedir ajuda. Há muita gente a recibos verdes que veio para casa. A malta do cinema, dos espetáculos, do som, da luz. Foram os primeiros a ir para casa com zero”, diz.

O facto de o processo da Caixa Solidária acontecer de forma anónima, sem rostos à mistura, não passou despercebido a Nuno Botelho. Ele pôs-se no lugar dessa pessoa. Por isso, na Caixa Solidária, qualquer um pode ir buscar bens sem ter de dizer a ninguém: sou pobre. “Até porque é 24 horas por dia.”

O por fazer

A Rede Europeia Anti-Pobreza trabalha com um conceito alargado de pobreza. É uma “condição humana” que tem uma “dimensão económica”, mas que tem também outras extensões importantes, nota a diretora Sandra Araújo. O que é o caso da participação cívica. “As pessoas que estão nestas situações de grande vulnerabilidade ficam, muitas vezes, incapacitadas, não têm espaço de participação, não participam enquanto cidadãos na vida social e cívica”, nota.

Falar de pobreza não é simples. O tema surge sempre em contextos de situações limite - alguém que já está a passar fome ou já é sem-abrigo -, não nos estádios intermédios em que a qualidade de vida se vai degradando. Lino Maia, presidente da Confederação Nacional das Instituições de Solidariedade (CNIS), diz que a pobreza é uma questão que “nunca foi abordada seriamente em Portugal”.

“Repentinamente em Portugal, sem ter havido uma mudança, passou-se de povo de pobres a um povo de ricos, como é considerada a União Europeia. Mas Portugal não fez essa passagem. Nós continuamos a ser um país onde de facto há muita pobreza”, explica.

Para encarar o problema, é preciso “um programa assumido”, “um desígnio nacional” que considere “além das desigualdades sociais também as desigualdades territoriais”, e que discuta a questão da “remuneração insuficiente”. “Nós temos muita gente em Portugal cujo rendimento do trabalho não é suficiente para as despesas”, avisa.

Até lá, muitos portugueses continuarão a ter o fosso da pobreza sempre debaixo dos pés.