Susana Peralta, opinião, in Público on-line
Oferecer – sem mais – os computadores a estas famílias não paga nem uma pequena parte da conta que saldam em nome de todos nós. Ganhem vergonha.
O PÚBLICO apresentou-nos o Samuel, que vive com a mãe, Ana Paula, a dois passos da Avenida da Liberdade, onde o metro quadrado mais caro do país custa mais de 5500 euros. O Samuel tem oito anos e está no segundo ano. Sabe ler “mais ou menos” porque o encerramento das escolas do ano passado o apanhou sem internet nem computador.
Samuel tem perturbação de hiperatividade e défice de atenção (PHDA) e não é por acaso. Por exemplo, o artigo “Cumulative social disadvantage and risk of attention deficit hyperactivity disorder: Results from a nationwide cohort study”, de abril de 2020, utiliza informação sobre 633 mil crianças dinamarquesas e mostra que 3,7% sofrem de PHDA. Entre as famílias com problemas de desemprego ou de baixa escolaridade, a percentagem sobe para entre 5,8 e 7,2%; entre as pobres, para 6%. Nas famílias que acumulam os três problemas, há 8,6% de crianças com PHDA. Outro estudo, desta feita com base em dados suecos, mostra que as crianças de famílias monoparentais têm uma probabilidade 54% superior de ter PHDA.
As coisas melhoraram ligeiramente para o Samuel e para a Ana Paula, que este ano tiveram direito a um computador e internet. Mas a casa húmida e pequena, a mesa de trabalho improvisada num canto da cozinha, o défice de atenção do Samuel e as baixas qualificações da Ana Paula continuam lá e não se resolvem com um computador.
Também pelo PÚBLICO conheci a história de Joana Grilo, 27 anos, operadora de call center das 10h às 19h, com 40 minutos de pausa. Está em teletrabalho sozinha em casa com os dois filhos, de três e oito anos. Eu percebo de onde vem a ideia de que o teletrabalho é compatível com o cuidado de crianças pequenas: de pessoas com empregos diferenciados e flexíveis e disponibilidade financeira para pagar apoio doméstico. Tudo o que a Joana não é. Só que a Joana não tem escolha, porque os apoios do Governo excluem-na. Como vai ser quando o filho mais velho pedir para imprimir a ficha, ajuda com a matemática, fazer a ligação do Zoom? E quem vai vigiar o de três anos para evitar acidentes domésticos? Andamos a brincar com a vida das pessoas.
Parece-me evidente que não podemos ter os hospitais à beira do colapso e os trabalhadores da saúde em exaustão física e psicológica, e por isso era preciso confinar. Mas um confinamento prolongado tem custos colossais. Uns são mais fáceis de ressarcir, como os prejuízos das lojas e restaurantes, embora o Governo não o faça cabalmente. Mas outros são impossíveis, como o custo para a saúde mental da Joana e da Ana Paula e respetivas famílias, e para o progresso escolar dos seus filhos. A não ser, claro, que o Governo pague o salário da Joana para ela se poder dedicar aos filhos e abra uma exceção para o Samuel e o acolha numa escola.
Isto não é só um assunto de saúde pública. Aos especialistas de saúde pública compete oferecer cenários para a evolução da pandemia. Aos economistas para as consequências económicas. Aos psicólogos para a pandemia de saúde mental que para aí anda. E não só. Ouvi há tempos uma antropóloga da London School of Economics, que faz parte do conselho de especialistas do governo britânico, para ajudar a refletir na organização dos rituais fúnebres. Em tempo de pandemia, a dignidade no momento de despedida dos seus mortos é um dos fatores a pesar, entre tantos outros. Ao governo compete pesar os vários elementos, decidir, e assumir consequências.
Na prática, quando António Costa quer manter o confinamento durante dois meses, está a dizer que está disposto a tudo para salvar vidas. Mas podemos medir o valor de uma vida? As decisões dos sistemas de saúde recorrem aos anos de vida ajustados pela qualidade, ou QALY na sigla inglesa, comparando o preço do tratamento com os QALY que ele permite obter. No Reino Unido, um QALY vale entre 20 e 30 mil libras. Em França, entre 50 e 300 mil euros, na Irlanda, 45, e nos Países Baixos 41 mil euros. Na Nova Zelândia, são 13 mil dólares. O documento “Orientações Metodológicas para Estudos de Avaliação Económica de Tecnologias da Saúde”, disponível no site do Infarmed, diz que o valor do QALY em Portugal é entre 10 e 100 mil euros – um intervalo suficientemente alargado para nos impedir uma discussão adulta sobre estes temas, à qual outros países não se esquivam.
A pandemia é um momento de enorme incerteza no qual não podemos aplicar estas formas de decidir diretamente. De qualquer forma, em si, estar disposto a tudo para salvar vidas não tem nada de mal. Já sair de mansinho e deixar a conta para a Joana, a Ana Paula e os seus filhos é que me parece ilegítimo. Mais ilegítimo é quando opinadores, especialistas e políticos que condicionam ou tomam estas decisões vivem na parte boa da Avenida da Liberdade e outros sítios que tais. Os tais onde o metro quadrado custa um preço exorbitante. Portanto, nem sequer conseguem imaginar a conta que estão a deixar para a Joana e para Ana Paula.
Ora: a conta é monstruosa. Ana Paula, confrontada com o termo de responsabilidade que tem de assinar para Samuel usufruir do computador, reage assim: “Se a gente mal tem dinheiro para sobreviver, e se ele me estraga o computador, como é que vou ter dinheiro para pagar?” Está-se mesmo a ver que isto é para evitar que outras mães, que não esta (claro está!), finjam que perdem o computador para não o devolver, ou vão vendê-lo para pagar contas. Caramba, mesmo que haja meia dúzia assim, temos o direito de infligir mais esta angústia a todas as outras? Oferecer – sem mais – os computadores a estas famílias não paga nem uma pequena parte da conta que saldam em nome de todos nós. Ganhem vergonha.
A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico
Professora de Economia na Nova SBE