15.2.21

Em Camarate a escola dá almoço aos alunos e cabazes aos pais. Na Praça de Espanha está a nascer uma mercearia social

Joana Gorjão Henriques, in Público on-line

No agrupamento de Camarate a escola não apoia apenas os alunos: “Temos famílias que receberam 170 euros para o mês todo, com três filhos.” Em Lisboa, a Associação Passa Sabi, está a montar uma mercearia que funcionará com um sistema de pontos, destinada a quem mais precisa. Faz parte de uma rede de várias associações que nasceu na Grande Lisboa para dar resposta à crise.

Os edifícios têm paredes a descascar de tinta, pavilhões em madeira por onde passa frio e calor, chão ao qual faltam azulejos. Com 40 anos, o agrupamento de Escolas de Camarate D. Nuno Álvares Pereira está a precisar de obras de remodelação, algo que a directora Marilisa Cambraia sublinha quando faz uma visita guiada.

Aponta para uns bancos de jardim mandados colocar há pouco tempo e que estão tortos por causa das raízes das árvores que atravessam o cimento. Este é um agrupamento do Programa Territórios Educativos de Intervenção Prioritária (TEIP). O lema, segundo diz, é “não deixar ninguém de fora”. Se habitualmente gerem situações de carência económica, em fase de pandemia os problemas agudizaram-se. Foi assim no anterior confinamento e está a ser assim agora.

Cerca de 40% dos 1700 alunos da escola beneficiam dos apoios sociais. Em confinamento a escola continua a fornecer refeições diárias a quase 200 alunos abrangidos pela acção social. E já ajudaram 48 famílias com cabazes semanais desde o início do confinamento. Recebem apoio de várias fontes: outros pais que doam bens, a loja social, o centro paroquial e duas pastelarias. “Muitos pais perderam o emprego”, comenta a directora.

Foi o caso de Cláudia Afonso, moradora na Quinta do Mocho, em Camarate. Era ajudante de cozinha e neste momento diz estar “sem dinheiro”. Mãe a cuidar da filha sozinha, tem recorrido à escola da filha de 12 anos como apoio. Esta semana deram-lhe um cabaz com vários alimentos: trouxe legumes, pão, frutas, umas gomas. Vai esticando o que há para multiplicar por várias refeições.

“Muitos pais descobriram que os patrões não fizeram os descontos para a Segurança Social — já temos seis casos — ou seja, não vão ter direito a subsídio de desemprego”, comenta Aida Gonçalves, assistente social. “Muitas mães trabalham em casas particulares e os patrões como estão em casa dispensaram-nas. Este mês está a ser muito complicado porque o layoff ainda não foi pago pelo Estado — só receberam a parte do patrão — e os pais estão aflitos”, acrescenta. Trata-se de famílias numerosas, com oito ou mais elementos a partilhar um espaço exíguo em telescola e teletrabalho, em casas com condições precárias, descreve.

A assistente social nota que “está a crescer o número de famílias” que vai buscar cabazes, “famílias que nunca foram dependentes de nada”: “Isso é o que nos preocupa porque são mais difíceis de perceber porque escondem. 90% dos cabazes que estamos a dar são a famílias que nunca dependeram de nada e muitas que estão a trabalhar. Temos famílias que receberam 170 euros para o mês todo, com três filhos; as rendas em Camarate andam pelos 350 euros/400 euros…” Frisa: “Não estamos a falar de quem recebe o rendimento social de inserção, esses não perderam o rendimento. Estamos a falar de classe média/baixa, que não vive em habitação social nem têm qualquer tipo de subsídio.”
Muitas mães trabalham em casas particulares e os patrões como estão em casa dispensaram-nas. Este mês está a ser muito complicado porque o layoff ainda não foi pago pelo Estado — só receberam a parte do patrão — e os pais estão aflitosAida Gonçalves, assistente social no agrupamento de Escolas de Camarate

Descreve a distribuição de cabazes feita no dia anterior, quarta-feira: “Foram poucas as famílias que não choraram. Esta logística é complicada, mas sabemos que para os pais é importante estes cinco ou dez minutos connosco. Podíamos encaminhar para outras infraestruturas, mas queremos manter este apoio.”
Num bairro do Rego pontos vão substituir dinheiro

Em pleno centro de Lisboa, perto da Praça de Espanha, num bairro de habitação social com 384 fogos, no Rego, a Associação Passa Sabi, financiada pelo programa Bip/Zip (bairros e zonas de intervenção prioritária de Lisboa), também tem dado apoio a mais de 30 crianças e aos seus pais.

Neste momento estão a montar uma mercearia social com um sistema de pontos em vez de dinheiro, para o qual receberam o apoio de duas cadeias de supermercados. A sede da associação ficará numa das lojas do rés-do-chão, partilhando vizinhança com os moradores. Eugénio Silva, presidente da Passa Sabi, explica como foi feita a triagem das necessidades: “Tivemos o trabalho de ir perceber quem realmente precisa, fomos bater na porta de 384 casas, a subir e a descer as escadas. É importante porque queremos chegar a quem realmente precisa. Se me derem um quilo de batata, eu vou aceitar. Isto cria aproveitamento e nós queremos fazer um trabalho justo”, refere.
Tivemos o trabalho de ir perceber quem realmente precisa, fomos bater na porta de 384 casas, a subir e a descer as escadas. É importante porque queremos chegar a quem realmente precisa.Eugénio Silva, presidente da Associação Passa Sabi

Pelas contas, dão resposta neste momento a cerca de 50 famílias, praticamente as mesmas do anterior confinamento. A associação, criada e composta por membros do bairro, acredita que a mercearia vai permitir manter o apoio necessário mas de uma forma “não assistencialista, que autonomiza as pessoas, e as ajuda na gestão doméstica”: “Porque a pessoa sabe que, tendo x pontos”, se levar só ovos depois não tem pontos para o resto.

Isto porque “há muitas necessidades, mas também há muito assistencialismo inconsciente”, comenta Joana Mouta, coordenadora. “Tivemos várias instituições a dar comida que acham que só porque as pessoas vivem num bairro social estão a passar fome. Isto é grave porque não se faz uma triagem, não se faz um levantamento da necessidade efectiva das pessoas. Quem ficou realmente afectado foi quem ficou desempregado e em layoff, e foi a essas pessoas que tivemos a dar resposta”, continua.

De resto, nem todas as pessoas que apoiam são do bairro, “há pessoas que vêm da Moita”. Se “Lisboa está sobrecarregada” de organizações que dão resposta, “basta ir para Sintra e Amadora” que o cenário de carência é maior, sublinha Joana Mouta. A Passa Sabi juntou-se à Campanha Alimentar e de Apoio Imediato com outras associações de Lisboa e Vale do Tejo e estão a angariar fundos e donativos — a campanha inclui as associações Cavaleiros de São Brás, MirAtiva e Desportiva na Amadora, Associação Nasce e Renasce (Alta de Lisboa), Nós Conseguimos (Vale da Amoreira), M. Carregado M. Empreendedor e Inclusivo (Carregado), The One Zion (Pendão em Movimento, em Queluz).
“Há pessoas que vêm da Moita”, diz Joana Mouta, coordenadora. Se “Lisboa está sobrecarregada” de organizações que dão resposta, “basta ir para Sintra e Amadora” que o cenário de carência é maior, sublinha. A Passa Sabi juntou-se à Campanha Alimentar e de Apoio Imediato com outras associações
Tablets e voluntários contra o insucesso

A outra vertente em que a Passa Sabi trabalha é no apoio ao estudo. No anterior confinamento perceberam que havia alunos sem Internet, sem computador ou qualquer dispositivo para se ligarem à telescola e daí nasceu o projecto Conexão Virtual. Na altura, tiveram um donativo de 18 tablets para emprestar aos alunos. Montaram um sistema de apoio ao estudo através de voluntariado. “Começámos com isto porque percebemos que os miúdos estavam com muitas negativas”, diz Joana Mouta. “Havia miúdos com seis ou sete negativas num universo de nove disciplinas, isto é muito grave. Estes miúdos estão com dois anos comprometidos de aprendizagem.”

Do outro lado do ecrã de um dos tablets pousado na mesa da associação aparece Raissa Fernandes, a partir do seu quarto em Chelas. Tem um computador que lhe foi entregue pela escola. Com 11 anos, e com familiares no bairro do Rego, está no 6.º ano e tem apoio de Ariana Moreira no estudo de várias disciplinas, menos Matemática. “Ela explica de muitas maneiras e melhor” do que os professores, diz, tímida, com poucas palavras. “Não percebia nada do que a stôra dizia, e com a Ariana percebo.”

Ariana Moreira, 21 anos, técnica na Passa Sabi e voluntária, explica que aposta muito nos glossários com lista de palavras que as crianças não percebem, mas também nos resumos, e que vai perguntando frequentemente se estão a entender. “Na escola não dá para fazer isto porque é muita gente.” Usa o Zoom e escreve num documento que depois partilha na tela, “vou ensinando a estudar”. O objectivo é que eles “se tornem independentes”. “Isto é muito importante porque é o meu bairro e quero que ele se desenvolva”, comenta. “Fui privilegiada, a minha mãe sempre esteve em cima de mim, tive oportunidades de estudo, e nem toda a gente aqui teve essas oportunidades. Também é importante eles verem que, sendo do bairro, os posso ajudar.”

Quando a Passa Sabi fez um anúncio a pedir voluntários receberam para cima de 100 respostas, mais do que os alunos que estavam a apoiar; não conseguiram encaminhá-las para todos os estudantes. Estão neste momento a ajudar a associação Cavaleiros de São Brás a replicar o modelo.
Isto é muito importante porque é o meu bairro e quero que ele se desenvolvaAriana Moreira, técnica e voluntária na Associação Passa Sabi

Estudante na Marquesa de Alorna, Alicia era outra das meninas que aparece no tablet de Ariana porque tem explicações ao mesmo tempo que Raissa, só que a partir da casa que fica no Rego. Confessa que a Ariana explica as coisas de “uma forma que entra na cabeça e já não sai”.

A mãe, Dora Silva, manteve o emprego como trabalhadora doméstica, três horas diárias, e o pai também tem trabalho, não precisa de ajuda alimentar. Sobre a escola à distância da filha comenta: “Parece que não aprende muito.” Alicia confessa: “Estamos todos em casa, a maioria não percebe a aula. Depois a Internet começa a falhar…” Sente “muitas saudades” de ir à escola, dos colegas e de os professores irem à secretária explicar “a olhar para nós”: “Se fosse preciso iam lá à mesa e diziam: ‘Estás errado.’ Agora não.”