15.2.21

Há listas de espera no programa público de combate à fome

Ana Cristina Pereira, in Público on-line

Programa Operacional de Apoio às Pessoas mais Carenciadas foi reforçado no ano passado de forma progressiva para responder à crise pandémica, mas em várias partes do país a procura já supera a oferta.

Alinham-se famílias em listas de espera para entrar no Programa Operacional de Apoio às Pessoas mais Carenciadas (POAPMC). Com a pandemia de covid-19 à solta, o Governo decidiu alargar progressivamente a oferta de cabazes de 60 mil para 120 mil beneficiários, mas o universo de pessoas elegíveis já cresceu tanto que em várias partes do país ultrapassa a oferta.

O programa, coordenado pelo Instituto de Segurança Social, é co-financiado pelo Fundo Europeu de Auxílio às Pessoas mais Carenciadas. Serve-se, porém, de centenas de entidades espalhadas por todo o país – umas a funcionar como pólos de recepção, outras como entidades mediadoras, que todos os meses recebem alimentos e os entregam às famílias.

Veja-se o exemplo da Santa Casa da Misericórdia de Almada, responsável pela distribuição de cabazes na Caparica e na Trafaria. Antes da pandemia, chegava a 278 pessoas. Com o reforço do programa, abrange 556. “Mesmo assim, não chega”, assegura a técnica responsável, Sandra Morais. “Temos 270 em lista de espera.”

No Centro Paroquial de Bem Estar Social da Arrentela, no concelho vizinho, no Seixal, os pedidos também se acumulam. Houve um incremento de 209 para 418 pessoas e, neste momento, ao que diz a coordenadora, Natércia Pedro, 164 pessoas aguardam oportunidade.

Na Associação Nacional de Ajuda aos Pobres, no Porto, o drama repete-se. “Nós entregamos cabazes a 1200 pessoas e temos mais de 300 de fora por falta de vagas ou de critérios”, diz a directora, Claudina Costa. Procuram fazer cabazes para esses, recorrendo a donativos cada vez mais escassos. “Temos alguns benfeitores, alguns amigos, algumas empresas, mas isso agora está a falhar.”

Claudina dá por ela a fazer contas impossíveis para acudir a quem lhe chega da freguesia de Paranhos e do centro histórico do Porto. “Este mês ainda não pagamos a renda”, suspira. “Para já, não tenho como.” São demasiadas famílias, de repente, sem rendimentos, a precisar de ajuda. “Entre leite e papas e renda, vou para o leite e as papas. O senhorio pode esperar mais uns dias.”

O gabinete da ministra do Trabalho, da Solidariedade e da Segurança Social, Ana Mendes Godinho, não nega este quadro. “Nos territórios e entidades em que a capacidade seja atingida está assegurada a possibilidade de se alargar a capacidade de apoio pelas vias alternativas ao POAPMC, de forma a garantir resposta a todas as situações de carência alimentar das famílias”, responde por escrito, aludindo às cantinas sociais e aos serviços de acção social, que podem atribuir apoios pontuais para despesas básicas, inclusive de alimentação.

A sociedade civil como alternativa

Numa ronda por uma dezena de organizações, percebe-se como a sociedade civil se organizou para responder a quem está à espera ou não é elegível, embora também esteja aflito, como os imigrantes em situação irregular. Voltando ao exemplo da Caparica e na Trafaria, as 50 famílias mais carenciadas que aguardam por vaga no POAPMC recebam cabazes do Banco Alimentar. As outras são apoiadas pelo Banco de Bens Doados, que funciona com donativos da Santa Casa e de outras entidades. Agora, com o confinamento, todo o trabalho de angariação está dificultado e as dificuldades vão em crescendo.

No Seixal, explica Natércia Pedro que, “apesar de aparentemente terem sido criadas muitas novas respostas”, como a Rede de Emergência Alimentar gerida pelo Banco Alimentar e as linhas abertas pelas autarquias, tudo assenta nas instituições de sempre. “Vem tudo parar aos mesmos sítios”, sublinha.

Ali, na Arrentela, têm “imensa dificuldade em responder aos pedidos”. Também recorre ao Banco Alimentar, vocacionado para combater a fome enquanto luta contra o desperdício. “Quanto mais pedidos fazemos, menos qualidade de apoio”, lamenta. “Acabamos por ter cada vez menos para dar a cada família. As pessoas, no desespero, ligam para todo o lado.”

"Infelizmente, o pior está para vir”, diz Rita Valadas, presidente da Cáritas Portuguesa

Não é igual ser apoiado pelo POAPMC ou pelos programas. Os cabazes do POAPMC devem assegurar 50% das necessidades energéticas e nutricionais mensais dos beneficiários. Têm massa, arroz, cereais, enlatados (grão-de-bico, feijão, tomate, saladinha, atum), azeite, creme vegetal, congelados (mistura de vegetais, brócolos e espinafres congelados, frango, pescada), leite e queijo (este último em falha por causa de um concurso). Já os cabazes do Banco Alimentar dependem das doações feitas em cada momento.

Helena Loureiro, presidente da Associação de Intervenção Comunitária Gondomar Social, que faz chegar o POAPMC a 729 pessoas e tem 115 em espera, acredita que, por ali, está tudo sob controlo. “Estas famílias não ficam sem apoio”, assevera. “Estamos organizados em sede de rede social. As situações que vão surgindo têm respostas pontuais até chegar uma resposta continuada.”

Resposta semelhante ouve-se na União de Freguesias de Custóias, Leça do Balio e Guifões, em Matosinhos. Naquele território, a quota definida ainda nem está esgotada. O programa integra 1483 indivíduos, mas pode chegar aos 1600. Neste momento, 25 aguardam aprovação da Segurança Social. “Temos isso preparado. Se a técnica entende que é preciso comprar um cabaz de emergência, eu digo compre-se”, garante o autarca, Pedro Gonçalves.

Não se pense que é sempre a somar beneficiários. Quando maior a lista de espera, maior a pressão para ir actualizando a composição e o rendimento de cada agregado, tirar quem já não precisa, meter quem precisa. “Há pessoas a entrar e a sair quase todos os meses”, torna Sandra Morais. Ninguém pode falhar a recolha do cabaz sem justificação. Se tiver de ir ao médico, por exemplo, tem de avisar. Pode levantar o cabaz mais tarde. Se estiver retido em casa por doença ou para olhar pelas crianças, levam-lho. Se tem problemas de memória, ligam-lhe a lembrar. Se não aparecer porque está a chover, “deixa de ter direito, o cabaz passa para outra pessoa”.

Às filas do apoio alimentar chegam pessoas sem contrato, com contratos temporários, trabalhadores independentes, microempresários, de repente, sem trabalho e sem rendimento. Mas também a trabalhadores em layoff, com cortes salariais e crianças a cargo

"Regressados à pobreza"

O sociólogo Fernando Diogo recusa o termo “novos pobres”. “É uma importação de França com reduzida aplicação em Portugal.” Embora os haja, não provocam o grosso desta avalancha. “São regressados à pobreza. Estiveram na pobreza, conseguiram encontrar um trabalho que os tirou da pobreza, mas ficaram numa situação vulnerável. São vulneráveis empobrecidos.” Precários, pouco qualificados, com salários baixos, sem hipótese de poupar, na corda bamba. “A pobreza em Portugal é estrutural. Há uma forte probabilidade de um indivíduo ser pobre várias vezes ao longo da vida.”

Às filas do apoio alimentar chegam pessoas sem contrato, com contratos temporários, trabalhadores independentes, microempresários, de repente, sem trabalho e sem rendimento. Mas também a trabalhadores em layoff, com cortes salariais e crianças a cargo. “Infelizmente, o pior está para vir”, diz Rita Valadas, presidente da Cáritas Portuguesa.

Nem quer pensar no que seria se não tivessem sido criados apoios extra para os trabalhadores independentes, prolongado o subsídio social de desemprego, multiplicados os apoios às empresas (através de isenções de contribuições para a Segurança Social e financiamento do layoff). “No dia em que as empresas, fragilizadas, quiserem recuperar a sua vida, não sei quantas vão subsistir.”

Patrícia Martins, do Centro Social da Paróquia de São Salvador de Grijó, em Vila Nova de Gaia, onde também há algumas pessoas em lista de espera para o POAPMC, nota muita vergonha entre novos beneficiários. Para quem nunca precisou ou já não precisava de qualquer apoio do Estado, recolher cabazes é o último degrau. O estigma não tem de ver só com culpabilização, também com a ideia de que a protecção social não é um direito. “Há grupos que se unem para formar um cabaz e ajudar alguém”, observa. “Essas pessoas, se calhar, podem ter um papel de trazer as pessoas ao apoio que já existe no país. Se calhar, essas famílias precisam, por exemplo, de apoio para pagar a renda ou a luz. E esses grupos não conseguem ajudar nisso porque já ajudam na comida.”