15.2.21

Portugal prepara-se para atribuir ajuda alimentar em forma de cartões

Ana Cristina Pereira, in Público on-line

Alteração do regulamento do Fundo de Europeu de Auxílio às Pessoas Mais Carenciadas abriu possibilidade. Portugal, Roménia e França já manifestaram interesse. Ao cartão será atribuído um plafond. Verba só poderá ser usada para comprar bens de primeira necessidade

No corrupio da entrega de cabazes alimentares, já havia quem pedisse soluções mais ágeis e dignificantes. Portugal prepara um sistema de cartão electrónico recarregável para ajudar as famílias mais carenciadas a ir ao supermercado comprar bens alimentares.

Os cabazes não vão desaparecer, pelo menos de um momento para outro. Mas uma alternativa poderá ser oferecida a beneficiários do Programa Operacional de Apoio às Pessoas mais Carenciadas (POAPMC), co-financiado pelo Fundo Europeu de Auxílio às Pessoas Mais Carenciadas (FEAD).

O gabinete da ministra do Trabalho, da Solidariedade e da Segurança Social, Ana Mendes Godinho, escusa-se a adiantar qualquer data. Diz apenas que “ao cartão será atribuído um plafond, com periodicidade e regularidade de carregamento.” “Portugal tem procurado junto da Comissão Europeia esclarecer todos os detalhes para implementar este modelo de forma compatível com a segurança exigida pelas regras comunitárias”, esclarece, por escrito.

A mudança faz-se a reboque da pandemia, que por toda a União Europeia está a semear pobreza. Logo em Abril, a Comissão Europeia propôs uma alteração ao regulamento do FEAD. Entre outros aspectos, admitia a hipótese de se atribuir apoio através de vouchers/cartões electrónicos. Seria uma forma de chegar mais facilmente às pessoas no meio de uma crise sanitária, mas também um sinal de mudança de paradigma.

Portugal manifestou interesse em avançar, tal como a Roménia e a França (apenas para a região de Mayotte). Só no princípio deste ano, a Comissão Europeia adoptou o acto delegado (com indicadores, requisitos técnicos, rastreabilidade, pistas de auditoria e controlo) e ainda não o publicou. De acordo com essas orientações, o cartão será usado em exclusiva para bens de primeira necessidade.
Um alívio na logística

É uma ideia já várias vezes sugerida por organizações como a Rede Europeia Antipobreza/ EAPN-Portugal (e replicada no último relatório do Tribunal de Contas). “Achamos que devia ser uma solução, desde logo, por uma questão de soberania alimentar”, comenta Sandra Araújo, directora-executiva. “As pessoas poderão tomar decisões sobre o seu consumo.”

As vantagens sobressaem numa ronda por uma dezena de organizações mediadoras no POAPMC. Aventa-se poupança em transporte, armazenamento, conservação e distribuição de alimentos. “Esta seria a altura certa”, comenta Fernanda Martins, da Santa Casa da Misericórdia de Almada. A situação económica agrava-se à medida que o confinamento se prolonga. Mesmo que se queira continuar a aumentar o número de cabazes, a capacidade das organizações tem limites.

Há que descarregar toneladas de alimentos e que conservá-las, o que exige tempo, força física, espaço, mas também sistemas de refrigeração que consomem muita electricidade, aponta Claudina Costa, da Associação Nacional de Ajuda aos Pobres. E alguém tem de ficar horas e horas, fim-de-semana fora ou noite adentro, a introduzir os itens que chegam na plataforma informática e a atribuí-los um a um.

Não é só a sobrecarga de um programa intrincado que envolve centenas de organizações de todo o país. Claudina bem vê o embaraço no rosto de muitos dos que formam filas estigmatizantes. “É difícil, muito difícil.” Sandra Morais, da Santa Casa de Almada, não podia estar mais de acordo: “Temos imensas preocupações em que haja sigilo na prestação de apoio alimentar. Procuramos que haja desfasamento de horários, mas as pessoas acabam por se cruzar. Se a pessoa tivesse um cartão, ia a um supermercado e, de forma anónima, comprava o que lhe fazia falta.”
Mais dignidade

“Seria uma situação mais digna”, comenta, por sua vez, Natércia Pedro, coordenadora do Centro Paroquial de Bem Estar Social da Arrentela, no Seixal. “Teria de haver algum controlo, algum acompanhamento, mas sim, seria muito libertador.”

Patrícia Martins, do Centro Social da Paróquia de São Salvador de Grijó, em Vila Nova de Gaia, também sublinha a necessidade de manter algum controlo. "Nos supermercados vende-se de tudo. Tinha de se encontrar uma forma de o cartão só ser usado para comprar produtos essenciais, como alimentos e produtos de higiene.” Não seria, mesmo assim, uma solução para qualquer um. “Há muitas famílias que beneficiam deste programa que têm crianças e jovens em risco. Não fazem uma boa gestão da economia doméstica. Aí temos de acautelar os alimentos para as crianças.”

A nova presidente da Cáritas Portuguesa, Rita Valadas, também julga que não será uma resposta para todos. “Imagine-se pessoas com alguma idade que até têm dificuldade em gerir isso. Se calhar, estão habituadas a receber cabazes e a planear a sua vida com base nisso”, exemplifica. Para uns fará mais sentido uma cantina, para outros um cabaz, para outros um cartão.

Ninguém ouviu os beneficiários a reclamar essa mudança, mas todos já ouviram desabafos sobre o actual sistema. Há a distância, o peso, a falta de transporte, o suposto excesso de vegetais, a suposta escassez de carne e peixe. “A pessoa tem de vir buscar os alimentos, tem de vir alguém com ela porque não consegue levar tudo sozinha”, torna Natércia Pedro. E outras ficam de fora de um apoio que a tiraria de uma situação de privação material simplesmente por não terem um frigorífico com um congelador em casa.

“Acho que tem de ser bem estudado”, declara Isabel Jonet, presidente da Federação Portuguesa dos Bancos Alimentares Contra a Fome. Tem estudado exemplos noutros países, no âmbito da Rede Dar e Receber, iniciativa da Entreajuda e da Cáritas Portuguesa. E há logo uma série de questões que se formam na sua cabeça. “A quem seriam atribuídos? Onde poderiam ser usados? Nas instituições ou no comércio a retalho? Quais os produtos que poderiam ser comprados? Seria possível comprar bebidas alcoólicas? Poderiam comprar outros bens essenciais, como produtos de higiene?” E fica sempre a pensar que tem de haver um acompanhamento, pelo menos durante um período. Estas famílias que a pandemia deixou sem rendimentos podem estar habituadas a gerir o orçamento familiar, ser capazes de fazer as suas compras, mas outras carecem de orientação.

Incentivar a autonomia

O programa prevê que a ajuda material seja complementada com acompanhamento técnico. “A utilização do cartão electrónico tem como objectivo reduzir a estigmatização muitas vezes associada às famílias carenciadas, através da implementação de um modelo de consumo e de acesso a bens alimentares em igualdade de circunstâncias com famílias não carenciadas”, refere o gabinete da ministra. Mas não só. Também “incentivar a autonomia, a autodeterminação e o desenvolvimento de competências sociais, através da possibilidade das famílias carenciadas poderem gerir o orçamento que lhes é atribuído, planear as suas refeições e seleccionar os alimentos de acordo com a sua preferência”.

É uma grande mudança do modelo lançado em 2017, seguindo as directrizes da Bruxelas: cabazes com um conjunto de produtos em variedade e quantidade suficiente para assegurar 50% das necessidades energéticas e nutricionais dos indivíduos, dando possibilidade de usar o rendimento disponível para outras despesas correntes, como renda, água, luz, gás. E este já era uma mudança de paradigma em relação à ajuda que havia antes, que era pontual e muito condicionada pelos excedentes da produção alimentar.

Experiência da Cáritas

Tem havido algumas experiências pontuais de ajuda alimentar em cartões electrónicos ou vales. A Cáritas Portuguesa tem-na.

Desde o início da pandemia de covid-19, aquela organização tem distribuído vales de alimentação. E a nova presidente, Rita Valadas, só tem elogios a fazer a esta modalidade.

“Estes vales alimentares foram distribuídos por muitas empresas como substituto do subsídio de alimentação”, salienta. “Não agridem. É como receber um cheque. É bom para as pessoas. Elas acabam por participar na solução.”

A reacção que lhe tem chegado não podia ser melhor. “É bastante mais serena a articulação com uma pessoa em situação de vulnerabilidade quando se lhe oferece isto.”

Reflectindo sobre o que tem travado o avanço de medidas desta natureza no sector social, Rita Valadas identifica vários obstáculos. “Há muitas pessoas que preferem dar em géneros. Têm aquela dúvida: para o que vai?” Nota, aí, uma desconfiança em quem é pobre, mas também uma matriz cultural.

Há séculos e séculos de experiência. “Levar o arroz, o feijão, o leite, o azeite está na cabeça das pessoas como forma de participar na estratégia de combate à pobreza. Era assim que se fazia a caridade. Havia em Lisboa pessoas que todos os dias facilitavam pão e café ao pequeno-almoço a alguém. As pessoas acreditam que é uma forma que acrescenta.”

Passar a dar dinheiro é todo um novo paradigma. "Este ano, foram cerca de dez mil as pessoas abrangidas por vouchers, isto ao nível das 20 dioceses", clarifica. "Nós centralizamos este programa, que se chama ‘Inverter a curva da pobreza’." Uma nova campanha está para ser lançada, entre 28 de Fevereiro e 5 de Março, a propósito dos 65 anos da Cáritas.