João Ramos de Almeida, in Jornal Público
Sem controlo, a adaptabilidade pode ser forma de repressão laboral, assegura o especialista em Direito do Trabalho
João Correia foi vogal da comissão que elaborou o Livro Branco das Relações Laborais, o documento que serviu de base à proposta de lei de alteração do Código de Trabalho em vigor. Este especialista considera positiva a proposta, mas tem algumas reticências, designadamente quanto à capacidade do Estado para aplicar a lei. Quais são as medidas mais importantes da actual proposta?
Em primeiro lugar, uma modificação radical das relações entre a lei geral e a contratação colectiva. Em segundo lugar, um novo papel para a contratação colectiva. O legislador diz aos parceiros sociais que são obrigados a negociar. Mas o Estado também não diz que cada um faz o que quer. Diz que são obrigados numa faixa de interesses a acordar nas soluções concretas. Quer no plano da contratação colectiva em geral, quer na própria empresa. Finalmente, aquilo que me agrada mais - o combate à precariedade. Sem nenhuma obsessão política, há um verdadeiro combate à precariedade. Pouco se tem falado da norma da presunção do contrato de trabalho. Parece que não tem nenhum significado. A passagem dos contratos a prazo de seis para três anos é importante, é um sinal. Mas não é por aí. Seis anos de contrato a prazo são, de facto, um exagero. Três anos ainda têm, para mim, algum sinal de exagero. Mas é um sinal político. Onde verdadeiramente se combate a precariedade é, sim, na tributação, mas na presunção do contrato de trabalho e no modo como estão escolhidos os ingredientes que conferem "laboralidade" à relação. Por outro lado, o novo processo de impugnação de despedimento. O empregador tem de provar a justa causa de despedimento e ao sabê-lo tem de tomar as devidas cautelas quando despede um trabalhador. A ratificação judicial da sua opção de despedir um trabalhador é um sinal político muito forte de que o despedimento com justa causa não é um motivo de repressão injustificada.
Mas é tudo bom?
Não. Estas novidades pressupõem um tribunal a funcionar como deve ser. O que não está a acontecer. E em Lisboa até se agravou, com o Governo a cortar cinco dos 15 juízos...
E de que maneira... E exige que a Inspecção de Trabalho seja actuante e esteja em cima dos acontecimentos.
O que não tem sido um facto?
Também não tem sido um facto. Para provar que está de boa-fé, o Estado tem de se portar bem na parte que deixou para telhado. É verdade que as fundações são boas, que o rés-do-chão é muito bom, mas o telhado não presta.
O que acontece se os tribunais e a inspecção não funcionarem?
Estas especiais alterações, como por exemplo alguma adaptabilidade funcional, adaptabilidade geográfica, tudo o que são adaptabilidades, podem ser óptimos mecanismos de repressão e de abuso se não houver o critério rigoroso da sua aplicação e da sua vigilância. Tem de haver, quer do lado dos empregadores, quer da Inspecção do Trabalho, seriedade. E a administração pública e os tribunais têm de perceber que estas normas têm de ser especialmente vigiadas. Para ser eficaz, a presunção de contrato pressupõe uma inspecção actuante...
Não só a inspecção, mas também os sindicatos. Já tive muitas acções dessas. Na proposta, presume-se que há contrato de trabalho quando um ou vários dos ingredientes do contrato de trabalho se verificam. Local de trabalho, a retribuição certa e regular, a hierarquia, a organização da empresa. É isso que os tribunais têm decidido.
Mas a anterior formulação era ineficaz?
Praticamente ineficaz. Era o juiz quem dizia o que era o contrato de trabalho. Não era a lei. A jurisprudência é que criou a presunção.
Porque redigiram uma lei ineficaz?
Sei lá. Quando olhei para a norma do Código de 2003, ri-me. Nunca ganhei ou perdi uma acção à pala daquela norma. É um placebo. Coincide com a definição do contrato. Não é uma presunção.
No Parlamento, o inspector-geral do Trabalho defendeu, à luz do caso francês, a criminalização do uso dos "falsos recibos verdes". Concorda? Como lhe posso dizer?
Apetece-me dizer que "sim" porque o seu uso gera violação da concorrência ao nível das empresas, disputa entre os trabalhadores, desprotecção da Segurança Social, isto é, um conjunto de violações numa só contratação. Mas também me apetece dizer que "não" porque não me parece que seja de uma censurabilidade de tal forma violenta que mereça a criminalização. Agride-me mais e à minha grelha de valores que um empregador às tantas horas feche a empresa e se ponha a andar, como se passou lá no Norte, com cento e tal trabalhadores têxteis, que num certo dia chegaram e estava tudo fechado. Acontece com frequência. Nem despedimento colectivo, nem extinção do posto de trabalho, nem pré-aviso, nem comunicação à Segurança Social, à administração de Emprego, aos trabalhadores, às famílias. Seria mais fácil criminalizar estas condutas do que o falso contrato de prestação de serviços. Uma boa presunção, uma boa Inspecção de Trabalho e andarem em cima...
A coima é dissuasora?
A coima não é suficientemente dissuasora. Mas a presunção mais a coima mais a punição tributária são os desincentivos adequados nesta fase para este fenómeno dos 20 por cento de "recibos verdes" que temos. São 700 ou 900 mil "recibos verdes" e têm de ser combatidos.
Sou contra adesão individual às convenções
Por imposição de última hora, a proposta de lei prevê que os trabalhadores possam aderir individualmente a convenções colectivas. O Código do Trabalho de 2003 já o consagrava, mas apenas no período transitório. A ser aprovada, ficará na lei. As alterações ao código - para João Correia - não incentivam a "dessindicalização". Excepto num caso. "Sou contra a adesão individual, salvo se houver mecanismos de representatividade" sindical. Na sua opinião, só se deveria aderir à convenção do sindicato mais representativo. "Se se permitir a adesão individual a qualquer sindicato, está aí uma subversão da própria contratação colectiva". A sua relutância é a de que "sindicatos amarelos, paralelos", promovidos por associações patronais, podem frustrar a negociação colectiva. Basta pôr os trabalhadores a assiná-la. Para o evitar, "as associações sindicais devem aferir a sua representatividade".
Mas aí as duas centrais sindicais parecem ter algum receio de o fazer. João Correia acha que esta questão entronca num outro fenómeno que não ocorre em Espanha ou Itália. "É que o Partido Socialista espanhol tem uma base social de apoio. Tem sindicatos, tem confederações e cobram a factura. Aqui, o nosso Partido Socialista não tem. E devia ter". A UGT, na sua opinião, não cumpre essa função. "A UGT espanhola é, de facto, reivindicativa. Não brinca em serviço" e o mesmo se passa com a CGL italiana, afirma. A UGT, liderada por João Proença, não cobra ao Governo, ao contrário da homóloga espanhola, diz João Correia .
Banco de horas
O risco é ser a "maior fraude do mundo"
"Se não for controlado, o banco de horas pode ser a maior fraude do mundo", defende João Correia. O trabalhador labora 12 horas num dia, 14 noutro e espera descansar o resto da semana e isso pode ser frustrado. O controlo é igualmente essencial porque com o banco de horas o "preço" do trabalho extraordinário reduzir-se-á, considera. Só que há muitos "buracos" e, "se não os taparem, mesmo estas soluções são defraudadas". Que "buracos"? O Código do Processo de Trabalho, os mecanismos de resolução dos conflitos e os tribunais de trabalho inadequados. "Em Lisboa, o Governo extinguiu cinco juízos. As pendências aumentaram de forma gravíssima. (...) A Inspecção do Trabalho não tem meios. Não tem veículos, não tem inspectores, não tem auxiliares, não tem peritos. Se não tem, cada um faz o que quer", denuncia. E depois há "factores de imobilidade" mais fortes que a lei. "Como posso criar mobilidades mesmo funcionais e geográficas, sair de Braga para Faro e depois não tenho casa, não tenho escola? Tudo é difícil em Portugal. E nós somos tão bons a ir para França ou para a Alemanha...".