Sofia Branco, in Jornal Público
O SEF recrutou, desde 2006, 57 mediadores socioculturais. São cada vez mais importantes, mas o seu estatuto está por regulamentar
Um tem o cabelo tão loiro que reluz. Três têm a pele tão escura que brilha. Uma menina, carrapito no ar e olhos orientais, observa-os. Partilham o cantinho das instalações mais concorridas do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) e têm muito mais em comum do que diferenças. São crianças e não gostam de esperar, de estar em sítios fechados, dos quais não podem sair porque, a qualquer momento, terão de pôr o dedo na tinta e deixar a impressão digital.Pedro Queirós devia estar com eles, para os entreter, pô-los a exercitar o jeito para o desenho e o ouvido para a leitura. Foi contratado pela Solidariedade Imigrante para trabalhar como mediador sociocultural na Direcção Regional de Lisboa do SEF, na Avenida António Augusto Aguiar, em pleno centro de Lisboa, ao abrigo de um protocolo daquela associação com a entidade que regula as entradas e saídas de pessoas em Portugal.
Mas, quando o PÚBLICO o conheceu, aquele cidadão brasileiro via-se forçado a reforçar o atendimento e os meninos brincavam sozinhos, com peças de puzzle e carrinhos. O cantinho das crianças não passa, na verdade, de um tapete no chão, daqueles fofinhos para que ninguém se magoe, colocado a um canto da sala de espera que já viveu dias de enchente bem maiores."Não é um espaço muito apropriado", reconhece Pedro, mas recordando que, quando legalizou as filhas, "nem um banquinho havia". Pedro é um dos 57 mediadores socioculturais que trabalham com o SEF, que desde 2006 recorre a estes intermediários que falam a mesma língua - não só a das palavras, mas a das experiências partilhadas - de quem chega à procura de uma vida melhor. Pedro passou "três longos anos" do outro lado, à espera, na sala - aliás, dormindo à porta, madrugada fora, esperando ser dos primeiros a ser atendido. T
rês anos depois de se ter apaixonado pelo Palácio da Pena. Beleza mais dificuldades financeiras deram em grito do Ipiranga: "Para a felicidade geral da nação, digo ao povo que fico" - assim comunicou a decisão à mulher, citando D. Pedro IV de Portugal, I do Brasil. Este Pedro esteve para desistir, até comprou passagem de volta. Toda a família que entretanto veio atrás de si - a mãe, a mulher, o irmão, as duas filhas, Clara Lua e Ana Terra - já estava legalizada. Ele não. Um dia antes de voar, a sua situação foi regularizada, foi passar o Carnaval a Olinda e voltou. Três anos é muito tempo para quem espera. Mas tempo suficiente para mudanças. "De mentalidade, aos poucos", diz Pedro, reconhecendo que "ainda está para dez anos" a altura em que já "ninguém vai identificar o português pelos traços". Pedro já diz "pois, pois", mas sem nunca perder o sotaque "para as bandas da Tieta do Agreste".
A espera já não é o que eraNo SEF, a espera já não é o que era. As filas à porta na António Augusto Aguiar já são raras. "A melhor coisa que fizeram foi o agendamento prévio", considera Pedro, avaliando que Portugal "é um país que se preocupa em melhorar o acolhimento" dos imigrantes. Hoje, um imigrante pode marcar antecipadamente o dia em que quer ser atendido e recorrer ao SMS de alerta para a proximidade da sua senha. "Há uma grande aposta no atendimento ao público", sublinha Manuel Jarmela Palos, director-geral do SEF. A Direcção Regional de Lisboa atendia, em média, 1100 pessoas por dia, agora o número baixou - está nas 400.O atendimento ao público recorre cada vez mais aos mediadores socioculturais.
Ângela Marques Dias trabalha há dois anos no centro de contacto na sede do SEF, juntamente com outras 41 pessoas, que falam sete línguas (português, inglês, francês, russo, ucraniano, romeno e crioulo) e garantem dois turnos entre as 8h00 e as 20h00.Esclarece as dúvidas como pode. "Tento colocar-me na situação deles. Lembro-me dos meus pais [cabo-verdianos], que se levantavam às 4h00 para tratar dos documentos. A minha mãe chegou a dormir à porta. Tento ser o mais humana possível. Eu podia estar na mesma situação", diz.
A vantagem de falar criouloMas as coisas melhoraram tanto que as pessoas se surpreendem, realça. "Dizemos 'está marcado para as nove' e perguntam se precisam de vir às seis", conta Ângela, que fez o curso de mediação sociocultural na associação Moinho da Juventude, na Cova da Moura, e passou no teste de recrutamento para o SEF. Fala inglês, percebe um pouco de francês e até sabe passar chamadas em russo para os colegas que dominam o idioma de Leste. Mas a mais-valia de Ângela é mesmo saber falar crioulo.
Entre 1 de Janeiro e 31 de Julho, o centro de contacto do SEF atendeu 224.043 chamadas, às quais se acrescentam muitos e-mails. "Para uns, a autorização de residência é só um cartãozinho, mas para outros é tudo. Significa acesso - à educação, à saúde, aos bancos", recorda Ângela.
Os mediadores começaram a ser recrutados para ultrapassar as "dificuldades de comunicação", servindo de intermediários entre o SEF e os cidadãos, explica Palos. O número mais do que duplicou em dois anos e "os resultados têm sido extremamente positivos", avalia. A juntar aos 57 que trabalham no SEF, há 80 no Alto Comissariado para a Imigração e Diálogo Intercultural (ACIDI), que inaugurou este recrutamento há cinco anos.Porém, a Lei 105/2001, que estabelece o estatuto legal do mediador, foi aprovada na Assembleia da República mas ainda espera regulamentação do Governo.
Contactado pelo PÚBLICO sobre uma futura regulamentação, o gabinete do ministro da Presidência não deu qualquer resposta.Em 2005, um estudo publicado pelo ACIDI recomendava a regulamentação do estatuto e a criação de uma entidade reguladora responsável pela formação e avaliação do seu trabalho. E sublinhava ainda a urgência de definir o perfil de mediador e estabelecer os critérios de selecção.