Por António Ribeiro Ferreira, in iOnline
Rússia quer o gás natural cipriota. Mas a Turquia, que controla metade da ilha, está disposta a tudo para travar Nicósia e Moscovo
No sábado de madrugada, quando os ministros das Finanças do Eurogrupo discutiam arduamente os valores das taxas que iriam cobrar aos depositantes cipriotas para atingirem 5,8 mil milhões de euros de um resgate que não ultrapassava os 10 mil milhões, ninguém se terá lembrado que Chipre não é apenas uma pequena ilha perdida no Mediterrâneo com 800 mil habitantes e uma economia que vale 0,2% do PIB da zona euro? Os financeiros e os economistas que conduzem a União Europeia e a zona euro não terão tido tempo para estudar história, geografia ou um pouco de ciência política? E não estavam informados dos interesses económicos e estratégicos que têm Nicósia como epicentro? Tudo indica que não. A discussão centrava-se no castigo aos depositantes, particularmente os russos, que teriam cerca de 24 mil milhões de euros nos bancos cipriotas à beira da falência. E se os alemães diziam mata, com taxas de 18,5%, o FMI dizia esfola, com taxas impensáveis, que poderiam chegar aos 40%.
O presidente Anastasiades mediou a discussão e conseguiu impor um tecto de 9,9% e mais tarde alterou a proposta com a isenção para os depositantes com menos de 20 mil euros nos bancos. Tudo em vão. O parlamento cipriota rejeitou tudo sem um voto a favor e o ministro das Finanças, acompanhado pelo seu colega da Energia, partiu para Moscovo para renegociar a maturidade e a redução dos juros de um empréstimo de 2,5 mil milhões de euros concedido pela Rússia em 2011. E, claro, algo mais. Um mais que se chama gás natural e as enormes reservas que Chipre dispõe na sua plataforma continental.
200 MIL milhões de metros cúbicos Os especialistas da companhia norte-americana Noble anunciaram no final de 2011 a descoberta de 200 mil milhões de metros cúbicos da gás na plataforma continental, que valem qualquer coisa como 80 mil milhões de euros, algo muito interessante para os russos e para a Gazprom, o gigante do gás natural de Moscovo. Na quarta-feira saíram notícias que davam como certa uma oferta aliciante da Gazprom ao governo cipriota. Basicamente, os russos assumiam o valor do resgate necessário para os cipriotas resolverem os problemas financeiros da sua banca em troca dos direitos de exploração do gás natural. A companhia russa limitou-se a fazer um seco desmentido na altura em que os ministros cipriotas já iam a caminho de Moscovo, visita que irritou Angela Merkel, que telefonou ao presidente Anastasiades a lembrar-lhe que Chipre só podia negociar com o Eurogrupo. Mas, lembra o espanhol “El Mundo”, a Gazprom apresentou recentemente uma das melhores propostas na privatização da DEPA, empresa pública de gás da vizinha Grécia, irmã de sangue do Chipre grego.
40% das necessidades de gás da UE A quantidade de gás descoberta em Chipre representa 40% das necessidades anuais da União Europeia, que actualmente está completamente dependente do gás russo. Mas, como recorda o diário espanhol, ainda há muitas dúvidas quanto ao gás cipriota. A exploração só começará em 2015 e a sua produção e comercialização nunca serão possíveis antes de 2018.
A ameaça turca Mas há mais problemas. Um, grave, é a recusa da Turquia de exploração das reservas de gás natural porque não reconhece a soberania cipriota na zona continental. Tudo fruto da divisão da ilha entre cipriotas turcos e gregos na sequência do golpe de Estado de 1974 na ilha, que provocou num grave conflito armado entre Ancara e Atenas. A situação mantém-se desde então e nem a adesão de Chipre em 2004 à União Europeia e o facto de a Grécia e a Turquia integrarem a NATO foi ultrapassada na região. A recusa levou Ancara a ameaçar Nicósia em 2011 com o envio de navios de guerra se o governo cipriota iniciasse a exploração de gás na sua plataforma continental.
Ainda por cima, Nicósia está a estabelecer acordos com vários países vizinhos do Mediterrâneo, nomeadamente com Israel, para a partilha dos recursos naturais da referida plataforma. Segundo Nicósia, devem ser concretizados acordos semelhantes com o Egipto e o Líbano.
O velho Médio Oriente O caldo pode entornar-se muito rapidamente se a Rússia dá mesmo a mão a Nicósia e assume um papel de parceiro privilegiado da ilha. E isto porque Moscovo, apesar das relações de muitos anos com Chipre, olha para a Síria como seu aliado preferencial, ou quase único, no Médio Oriente. Com o regime de Damasco envolvido há dois anos numa guerra civil em que os turcos são os principais apoiantes dos rebeldes e Moscovo se mantém de pedra e cal ao lado de Damasco, a entrada em força dos russos no gás natural cipriota e mesmo no sistema financeiro da ilha são ameaças reais para a já de si frágil paz podre do Médio Oriente.
É por isso também que as reuniões de hoje e amanhã em Moscovo entre a Comissão Europeia e o governo russo ganham uma maior importância. A União Europeia, já irrelevante em matérias de política externa, nomeadamente no Médio Oriente, pode, com a crise cipriota, revelar mais uma vez a sua incapacidade de ser um grande parceiro mundial.