4.5.20

Sem trabalho nos campos, imigrantes abandonados à sua sorte no Alentejo

Carlos Dias, in Público on-line

Em Beja proliferam as habitações onde residem cidadãos estrangeiros no desemprego, com problemas de subsistência e sem as mínimas condições de higiene e habitabilidade.

Na última campanha de recolha de azeitona que decorreu entre Outubro e meados de Fevereiro o número de trabalhadores estrangeiros envolvidos nos trabalhos terá superado os 30 mil. Eram, sobretudo, oriundos do subcontinente indiano (Nepal, Índia, Paquistão, Bangladesh) e da África subsariana (Senegal, Gâmbia, Gana, Guiné-Conacri e Guiné-Bissau). Os trabalhos decorreram até à entrada em vigor do estado de emergência sem que a pandemia causasse danos irreparáveis ao sector. No entanto, a jusante, os efeitos estão a fazer-se sentir. Nos anos anteriores, quando termina o trabalho nos olivais, milhares de imigrantes procuram novas tarefas na agricultura noutras zonas do país ou em Espanha. Mas ao contrário do passado, as medidas impostas para garantir o confinamento de pessoas e o isolamento social causaram o abrandamento na actividade agrícola e um aumento da mão-de-obra desocupada. Que agora se vêem desamparados.

Foi o que aconteceu a Muhammad Khalid, cidadão paquistanês, com quem o PÚBLICO falou à saída de uma superfície comercial onde tinha ido comprado “alguma coisa” para se alimentar. Tanto ele como o amigo que o acompanhava estão há “três meses sem trabalhar” e em risco de carência alimentar que só é suprida com o dinheiro que os familiares enviam do Paquistão. Trabalhou no olival uma média de 5 horas por dia e “ganhava 3,25 euros à hora”, refere, criticando a ausência de informação relativa ao seu processo de legalização. Mesmo assim diz que vai ficar pelo Alentejo na esperança de poder vir a conseguir um trabalho, uma esperança comum aos seus cinco companheiros com quem partilha uma pequena habitação à saída de Beja. E mantém a expectativa que o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) entre em contacto com ele.

A falta de ocupação estende-se a uma comunidade de 24 cidadãos indianos que está alojada em Baleizão, no concelho de Beja, em condições muito precárias. Distribuem-se por quatro quartos num casebre com precárias condições de habitabilidade. Não estão a trabalhar desde que terminou a campanha da azeitona. Mas quando mantinham a actividade ganhavam 3,75 euros à hora em dias de trabalho incompletos.

Entrega de alimentos em Baleizão
Vieram sozinhos há 11 meses para Portugal e “até agora não apareceu ninguém para ajudar ou esclarecer sobre o que quer que fosse”, garantiu ao PÚBLICO Saab Sing, que se apresenta como porta-voz do grupo, esclarecendo que todos têm atestado de residência e de trabalho mas falta o agendamento para atendimento no SEF.

Há três semanas que não vão ao supermercado porque não têm transporte. “Compramos o que podemos numa mercearia de Baleizão”, observou o cidadão indiano. O boss, o indivíduo que os transportava para o local de trabalho, abandonou-os há três meses. Cada um dos que vive na casa suporta um encargo de 140 euros com a renda, importância que era entregue ao contratador mas que deixaram de poder cumprir por não terem trabalho. Por isso, já receberam a indicação de que têm de abandonar a residência até ao final de Abril, algo que entretanto foi suspenso pela lei n.º 1-A/2020, que interdita despejos e flexibiliza o pagamento das rendas.

António Palminha, proprietário da casa onde residiam os 24 imigrantes, adiantou entretanto ao PÚBLICO que os imigrantes abandonaram o espaço no dia 28 de Abril, tendo sido levados para S. Teotónio, em Odemira, pelo indivíduo que os tinha abandonado. “Ele ficou a dever-me mais de 1500 euros de rendas, água e luz”, referiu o dono da habitação, adiantando que cobrava 600 euros pelo aluguer da casa e que o contrato foi celebrado por um ano e para 14 ocupantes. Acabou por albergar 24 pessoas que pagavam 140 euros mensais cada um. Feitas as contas, o boss cobrava às pessoas contratadas 3.360 euros. Deste montante, entregava 600 euros ao proprietário pelo aluguer do espaço e, presume-se, ficaria com os restantes 2.760 euros. Agora serão dois empresários espanhóis os próximos arrendatários da casa de António Palminha para alojar duas dezenas de imigrantes que vão tratar de uma cultura de alhos.

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Num edifício ao lado vivem outros 13 cidadãos indianos com os mesmos problemas e dificuldades de subsistência. Num dos últimos fins-de-semana, membros do Movimento Alentejo e Vivo (MAV) e da Associação Ambiental dos Amigos das Fortes (AAAF), organizações que têm tomado posição contra a proliferação de olival intensivo e a poluição atmosférica provocada pela emissão de fumos e cheiros lançados pelas fábricas de bagaço de azeitona, conhecedores da situação em que encontravam, fizeram a entrega de alimentos. “Sabemos o que se passa com os imigrantes que são vítimas de um modelo agrícola que os explora e depois os abandona”, justificou ao PÚBLICO um dos elementos do MAV.

Concentrações em Beja
Os casos relatados acontecem fora das portas de Beja mas a acumulação de muitas pessoas em espaços exíguos é mais numerosa na cidade. O testemunho que Isaurindo Oliveira, presidente da Caritas Diocesana de Beja, deixou ao PÚBLICO, é revelador desta situação: “Aqui em Beja, é quase porta sim porta não que observamos concentrações de imigrantes.” Até nas proximidades do edifício da Caritas há uma casa onde vivem amontoadas 20 pessoas. “Toda a gente sabe disto mas todos se revelam impotentes para superar o problema”, observa o responsável, reconhecendo que não é possível saber quantos imigrantes estão em situação de carência. Arrisca apenas uma interpretação genérica: “São milhares”.

O presidente da Caritas de Beja é engenheiro agrónomo de formação e sabe o que passa nos campos. “Os imigrantes circulam entre Portugal e Espanha, normalmente entre Janeiro e fins de Março, princípios de Abril”, à procura de trabalho. Nas actuais condições e por força das regras impostas pelo estado de emergência, as pessoas “entram em falência financeira”, assinala, destacando a dimensão das dificuldades que a organização enfrenta. “O que estamos a fazer aos imigrantes e a outras pessoas carentes de apoio, sobretudo alimentar, acaba por ser uma gota de água no oceano”, observa Isaurindo Oliveira acrescentando uma crítica: “Trabalhamos com empresas agrícolas para a realização de acordos que ponham cobro às mais gritantes situações de exploração e chegar mais perto dos imigrantes mas não se conseguimos nada.”

Sem trabalho à vista
O director executivo da Associação dos Olivicultores do Sul (Olivum), Gonçalo Almeida Simões, expressou ao PÚBLICO a sua satisfação pelo facto de a pandemia não ter afectado a colheita da azeitona. Neste momento, o sector “está em fase de velocidade de cruzeiro” e nas empresas associadas na Olivum “não há casos de layoff”, garante o dirigente da associação.

Agora, acentua Gonçalo Simões, decorre a fase de “poda das oliveiras e tratamentos fitossanitários”, tarefas que “dão trabalho a tractoristas e a técnicos”, mas acredita que irá haver um “reforço” de mão-de-obra imigrante na próxima campanha que terá início no próximo mês de Outubro.

No entanto, a ocupação dos imigrantes desempregados no período temporal que medeia até Outubro é ainda uma incógnita. A apanha de frutos vermelhos em Odemira (framboesa, mirtilos e amoras), que irá decorrer entre Maio e Outubro, poderá ser uma alternativa mas algo terá que mudar nas medidas de confinamento e isolamento social para permitir a concentração de inúmeros trabalhadores, cerca de 12 por hectare, nas estufas do litoral. Acresce que o sector, no final de Março, assumiu dificuldades de tesouraria e de colocação do produto no mercado europeu.

A Lusomorango, a Madrefruta e a Associação dos Horticultores, Fruticultores e Floricultores de Odemira e Aljezur (AHSA) pediram ao Governo a aplicação de medidas excepcionais para sector dadas as restrições impostas para fazer face à covid-19. A dimensão da crise já suscitou um apelo “veemente” para que sejam retirados do mercado produtos perecíveis, medida que deveria ser acompanhada da “regulação da oferta” de frutos vermelhos, para evitar paragens das empresas agrícolas.

Condicionadas pela quebra drástica nas vendas de frutos vermelhos no mercado europeu, as empresas de Odemira querem que seja colocado um travão à mão-de-obra estrangeira. Defendem a aplicação de um “regime especial” para os imigrantes que já possuam contrato de trabalho e a operacionalização de uma medida que “estimule os recém-desempregados portugueses de outros sectores ou em regime de “layoff” a trabalharem na agricultura, particularmente, no subsector das frutas e legumes.” Não há, em Portugal, para além dos trabalhos nas estufas, outro tipo de cultura intensiva que ocupe mão-de-obra de forma massiva. A alternativa seria Espanha, país que neste momento está confrontado com dificuldades muito maiores na gestão do sistema produtivo no sector agrícola.

Perante uma realidade marcada por um eventual excesso de mão-de-obra imigrante, a questão que se coloca agora diz respeito à saúde pública, acrescida do risco de instabilidade social. Não só no que às suas condições habitacionais diz respeito, mas também no que respeita à mobilidade de dezenas de milhares de pessoas.

12 mil só no Alentejo
Dados provisórios facultados ao PÚBLICO pelo SEF referem que, em 2019, o número de residentes no distrito de Beja foi de 12.715 imigrantes, mais 2.444 que em 2018. Falta contabilizar a mão-de-obra que não está documentada.

O SEF esclarece que o processo de regularização dos imigrantes se inicia através de uma manifestação de interesse. Trata-se de um processo de regularização da permanência do cidadão estrangeiro em Portugal, através de um pedido de autorização de residência submetido através de uma plataforma online. Para satisfazer as exigências impostas pela legislação em vigor, o cidadão estrangeiro deve possuir um contrato de trabalho ou promessa de contrato de trabalho. Deve provar ter entrado legalmente em território nacional e ter regularizado a sua situação perante a segurança social há pelo menos 12 meses. Tem ainda de apresentar informação necessária para verificação da inscrição na administração fiscal e da sua situação contributiva na segurança social de forma regular.

Alojamento em Baleizão
É precisamente nestas exigências que reside o obstáculo maior à sua legalização. A satisfação dos critérios impostos tem esbarrado na agenda de atendimento do SEF e na impunidade que prevalece na acção dos prestadores de serviços, que fazem o engajamento dos imigrantes. “É um mecanismo que está entregue ao mercado mais selvagem”, realça Alberto Matos, dirigente da Associação Solidariedade Imigrante (Solim) em Beja. Num comentário às declarações da secretária de Estado para a Integração e as Migrações de Cláudia Pereira ao PÚBLICO sobre a deslocação de parte dos imigrantes do turismo algarvio para os trabalhos agrícolas, Alberto Matos, duvida do sucesso da medida proposta. “Não está nas mãos do Governo a eficácia de uma tal solução”. E explica porquê: o critério da contratualização dos trabalhadores “está nas mãos das empresas prestadoras de serviços e sempre pelo preço mais baixo”.

O plano de “emergência” que defende o alojamento dos trabalhadores em contentores também mereceu um reparo de Alberto Matos. “Como é que imigrantes do Algarve aceitam viver em barracos e contentores sem condições de habitabilidade?” E lembra que o “famoso plano de alojamento temporário nas estufas do Perímetro de Rega do Mira”, anunciado pelo Ministro das Infra-estruturas e da Habitação, Pedro Nuno Santos, na Comissão de Economia, Inovação, Obras Públicas e Habitação, Assembleia da República, em 19 Fevereiro 2020, “ainda não está implantado”. Com efeito, “nem o projecto se impôs nem as autarquias se comprometiam com a instalação de centenas de fossas sépticas para receber as águas residuais produzidas nos aglomerados de contentores”, que resultariam em milhares de unidades de alojamento.

“Todas as empresas de contratação de trabalho temporário deveriam ser fiscalizadas e averiguadas”, defende o imigrante indiano que tem formação académica em contabilidade e gestão de empresas e trabalha na agricultura intensiva.
Outra questão reside no número de imigrantes que estará no distrito de Beja após ter terminado a campanha da azeitona. O dirigente da Solim acredita que houve “um aumento do seu número na campanha de 2019/2020 até porque há mais área de olival plantada e mais olival para plantar.” Há ainda um outro elemento a considerar: “cerca de 90% dos trabalhadores imigrantes estão nas mãos de prestadores de serviços.”

Corrupção e ameaças
Gurpeet Singh, cidadão indiano que neste momento não trabalha por força do estado de emergência que obrigou a empresa que o contratou a enviá-lo para casa, descreveu ao PÚBLICO as vicissitudes porque passou desde que chegou a Portugal há 13 meses. No início “foi muito difícil”, reconhece, apontando a causa das dificuldades que sentiu. Havia muita corrupção praticada por elementos do seu próprio país.

Em Portugal, constata, “é muito fácil abrir uma empresa que depois vai contratar o maior número de pessoas para as tornar mais dependentes e manipuláveis com base em ameaças de perda do posto de trabalho” pelo facto de haver muita mão-de-obra. “Todas as empresas de contratação de trabalho temporário deveriam ser fiscalizadas e averiguadas”, defende o imigrante indiano que tem formação académica em contabilidade e gestão de empresas e trabalha na agricultura intensiva.

O medo a seu favor
Desta forma, “quantos mais trabalhadores houver, mais fácil se torna a gestão da repressão interna”, sublinha Alberto Matos, dando conta de como as relações de trabalho “bateram no fundo”. “Já não se trabalha as 8 horas. Os imigrantes são alugados por uma empresa de prestadores de serviços à hora e nalguns casos são pagos em função do peso da azeitona que apanham”. São raras as empresas donas da terra que têm mão-de-obra estável, para além dos tractoristas e técnicos. Esta é a situação actual. No entanto, o dirigente da Solim admite que a pandemia possa vir a contribuir para uma maior racionalidade nas condições de trabalho e no modo de contratualização dos trabalhadores que executam tarefas nas culturas intensivas. “A vinda de pessoas, não se sabe de onde, suscita o receio de contágio com a covid-19, o que pode vir a obrigar os empresários agrícolas a optar por uma maior estabilidade na mão-de-obra.” Mesmo assim, depressa se irá saber de que modo a proposta do Governo de fazer deslocar para agricultura imigrantes desempregados no turismo algarvio “dará para todos.”

O cenário dos próximos tempos nos campos do Alentejo é uma incógnita. O SEF reconhece que o avolumar de problemas resultantes do afluxo de cidadãos estrangeiros ao nosso país e as dificuldades em garantir o seu controlo realça a importância dos Contratos Locais de Segurança (CLS). Podem ser decisivos “na prevenção de anormais ocorrências de instabilidade, insegurança, trabalho irregular ou não declarado”.

O PÚBLICO solicitou informações à Unidade Local de Saúde do Baixo Alentejo (ULSBA) e à Administração Regional de Saúde (ARS) Alentejo, sobre o tipo de apoio que estava a ser prestado aos núcleos imigrantes no rastreio à covid-19, sobretudo aos que se acumulam em espaços exíguos e sem condições de habitabilidade, mas não obteve resposta.