4.5.20

“As pessoas alteram os hábitos, mas com a expectativa de regressar à normalidade”

Liliana Borges, in Público online

O mundo mudou. Andar de máscara nas ruas tornou-se uma regra a cada dia que passa. Mas depois do coronavírus, quais as mudanças que se irão manter? Haverá mudanças estruturais, sim. Mas no horizonte as pessoas esperam pelo regresso da realidade pré-pandemia.

Por todo o mundo, os esforços para conter a propagação do vírus alteraram drasticamente as rotinas. Agora, aos poucos, os portugueses vão conhecendo o plano de desconfinamento para a lenta reabertura da economia, mas as novas dinâmicas sociais parecem estar para durar. Nas ruas, o uso de máscaras é cada vez mais frequente. E enquanto os especialistas avisam que as consequências da crise pandémica irão durar décadas, surgem dúvidas sobre até onde é que os hábitos se irão alterar. É isso que os investigadores do Observatório de Comunicação (OberCom) procuram perceber, num relatório que reúne as primeiras conclusões sobre os efeitos da pandemia no sistema mediático português e global.

“Tentámos compreender como é que em momentos históricos, nos quais se abalam as sociedades, há sempre uma parcela de coisas que se mantém”, explica Gustavo Cardoso, um dos coordenadores e investigadores que assina o relatório. Nos últimos meses, os sectores têm-se desdobrado em esforços para se adaptar às mudanças trazidas pelo confinamento social. Mas ainda que alguns hábitos de consumo tenham mudado, o investigador sublinha que as transformações acontecem na “expectativa de regressar à normalidade” pré-pandemia. “Haverá mudanças, mas não advêm de estarmos a ter uma rotina diferente. Virão de estarmos a viver experiências diferentes”, explica.

“A pandemia moldará a natureza do nosso futuro digital a longo prazo”, e isso é ao mesmo tempo “um desafio e uma oportunidade para reconstruir a sociedade digital”. Com a adopção do teletrabalho, do ensino à distância ou na dinâmica das relações com amigos e familiares, a tecnologia assumiu-se como o elo que sustenta estas transformações.

Hoje, há entrevistas e programas inteiramente gravados a partir de casa, os tradicionais estúdios deram lugar às estantes. O exemplo de resiliência, aponta o relatório, vai para a rádio, que depois de sobreviver à morte anunciada e eternizada pelos Buggles, continua a prestar um serviço público “excepcional”, por chegar a uma população mais vulnerável e envelhecida.

A par da reinvenção, crescem também as preocupações com a invasão de privacidade e de dados. Num ritmo de mutação acelerada é fácil cometer erros. “Se, por um lado, tentarmos salvar o que existe, por outro lado, não temos a garantia de que se não experimentarmos nada de novo agora consigamos sobreviver ao que vem depois”, contextualiza Gustavo Cardoso. Uma espécie de “desfrutemos da guerra, porque a paz será terrível”, sustenta o sociólogo.

No entanto, o grupo de investigadores avisa que desta vez os consumidores não estarão tão predispostos a perdoar os erros, como na crise de 2008. “Desta vez as pessoas não vão dar abébia à desinformação ou falta de escrutínio”, explica Gustavo Cardoso. “É uma crise que envolve morte. Se a comunicação social falhar nisso, o preço será muito mais alto”, alerta.

No caso dos jornais e revistas, a diminuição do hábito de ir à rua ditará, a longo prazo, uma alteração de rotinas quanto ao formato tradicional no papel. É expectável que “o número de tiragens de jornais passe a ser ajustado e diminuído, possivelmente numa escala sem precedentes”, antecipam. E também aqui a publicidade deverá saber reconverter-se à nova realidade.

“É preciso admitir que o WhatsApp funciona como funcionavam os cafés, no seu papel de distribuição de informação”, nota. Ou seja, a publicidade deverá assumir que as visualizações não são apenas de quem pagou o PDF. “Há muito mais pessoas a ler do que aquelas que pagaram” e isso exige uma adaptação por parte do mercado da publicidade. O sociólogo acredita que o hábito persistirá e que integrar estas leituras nas contabilizações – fazendo perguntas a quem lê e como lê – será muito importante. Até porque “para a publicidade, o que conta é o número de pessoas a quem chega o produto”.

Os investigadores acreditam também que “não interessará apenas canalizar o investimento publicitário, de uma forma geral, para os média menos afectados, como é o caso da televisão, mas também perceber, a partir das mudanças nos hábitos do consumidor e nas cadeias de distribuição mais afectadas”.

Além desta adaptação ao mercado da publicidade, é necessário tratar a informação como um bem essencial. E se há ainda outros caminhos de viabilidade económica que podem ser explorados, está será também uma oportunidade de criar medidas concretas de apoio, não só a nível nacional como europeu, através da via fiscal, da flexibilização dos custos de segurança social dos profissionais e da majoração do porte pago, exemplificam. Além dos trabalhadores freelancers, “também a imprensa regional deverá ter um acompanhamento prolongado e específico”.

Entre os desafios que chegarão no pós-crise pandémica estarão a capacidade de restituir os níveis de privacidade online que estão a ser capturados pelos efeitos colaterais da mitigação do vírus, através de apps utilizadas pelas instituições governamentais para levantamento de informações privadas sobre os cidadãos. A crise pandémica “vinca ainda mais a urgência de quadros regulatórios ágeis e actualizados que permitam promover uma arena digital diversa e igual” dizem os investigadores.