4.5.20

Circos querem apoios após “mês negro”. Autarquias ajudam famílias carenciadas

Miguel Dantas (Texto) e Paulo Pimenta (Fotografias), in Público on-line

Empresários e artistas duvidam da capacidade de sobrevivência de muitos circos. Em alguns pontos do país, são as autarquias a assegurar a alimentação de famílias com filhos menores.

Dois camelos alimentam-se tranquilamente perto de uma estrada deserta. A poucos metros, três tigres adultos dormitam no interior de uma estrutura metálica rectangular. Além dos animais, quem passe pela freguesia de Lago, no concelho de Braga, verá ainda dezenas de camiões e roulottes parados. Apesar de o ímpeto itinerante ter sido momentaneamente travado pela pandemia, o movimento no circo Cláudio é constante. No topo da pequena subida de terra onde se encontram os veículos, o proprietário do circo, Claudio Torralvo, discute com o staff a alimentação dos felinos. É dia de nova viagem ao centro de distribuição de carne mais próximo: desta vez, compram cerca de 200 quilos, apenas suficiente para uma semana de alimentação. A esta despesa fixa juntam-se custos com o feno, vitaminas e cuidados veterinários.

“Este mês foi negro. Vai ser difícil conseguir sobreviver nesta situação porque vivíamos do público. Temos a época alta do Natal e depois as outras com menos procura, mas dava para sobreviver. Com os tigres, gasto cerca de 2500 euros mensais com a alimentação. Se for a juntar os restantes animais os gastos chegam aos 3500 euros mensais”, explica Claudio Torralvo, artista de circo desde nascença e membro da quinta geração de uma das famílias circenses mais conhecidas em Portugal.

A comunidade LGBT do Uganda (re)encontrou as perseguições num campo de refugiados do Quénia
O espaço onde os veículos e os animais estão instalados foi cedido sem contrapartidas financeiras por um conhecido de Claudio. O empresário diz nunca ter vivido um período tão difícil, mas garante que a sua situação até é das melhores. “Alguns colegas meus estão a ser alimentados pelas câmaras municipais, que também fornecem alimentação aos animais. Não duvide das minhas palavras: muitos circos vão fechar. E depois quero ver o que vão fazer com os animais”, alerta.

O empresário formou este circo há praticamente 20 anos. Fê-lo com o objectivo de juntar os familiares que, tal como ele, trabalhavam em diferentes circos espalhados pela Europa. Os primeiros dez anos de actividade não podiam ter corrido melhor: a colecção impressionante de animais selvagens valia sempre casa cheia ao fim-de-semana. Além dos tigres que agora detém, chegou a exibir hipopótamos, elefantes e até tubarões: “Posso montar todas as atracções possíveis mas, depois de um ano, tornam-se repetitivas. Os números de animais, contudo, podem manter-se durante décadas. Éramos um grande sucesso, especialmente em Espanha.”

Após 2010, porém, Claudio começou a notar uma diminuição na afluência do público. Os responsáveis? Os movimentos de defesa dos animais, que agora chama à conversa: “Ainda ninguém veio ver se os animais precisam de ajuda. Onde é que andam esses defensores de animais agora?”

Ao contrário da esmagadora maioria dos artistas em Portugal, Dani Silva não nasceu no circo. Tampouco aperfeiçoou um número que lhe permitisse subir à pista e recolher os aplausos do público. O jovem de 23 anos, natural de Braga, estudou electromecânica de equipamentos industriais, mas sempre soube que queria fazer do circo a sua vida. A paixão começou em criança e uma visita do circo à cidade dos arcebispos foi o rastilho para uma nova vida. “Há três anos, o circo Flic-Flac foi à minha terra e precisava de ajuda com alguns trabalhos de manutenção”, relembra o jovem. Nesta vida itinerante acompanha-o a companheira e o filho com um ano de idade. O rendimento mensal do agregado familiar ronda os 400 euros.

Ciente das carências de algumas famílias com filhos menores, a Câmara Municipal de Viana do Castelo decidiu oferecer refeições aos artistas e colaboradores do circo mais desfavorecidos. “Estamos a dar apoio ao circo desde o dia 25 de Março, com alimentação e cabazes. Durante a semana são alimentados pela cantina das nossas escolas. Percebemos que tinham dificuldades porque, quando vieram levantar as licenças, já não podiam ser realizados este tipo de espectáculos [devido ao estado de emergência]. Estas famílias não tinham lugar para onde ir. Pedimos aos nossos serviços sociais para fazerem um acompanhamento regular para que não existam dificuldades”, adiantou ao PÚBLICO o presidente da Câmara de Viana do Castelo, José Maria Costa.

Dani Silva é um dos que recebe os apoios municipais. “Trazem-nos aqui a comida”, descreve, enquanto nos guia até à sua caravana. Num pequeno espaço faz toda a sua vida: sala de estar e cozinha estão paredes-meias com o quarto onde a cama é partilhada com a esposa e o bebé. Fora da caravana ergueu uma pequena tenda para fazer um espaço exterior onde pode brincar com o filho. “Não me sinto sufocado aqui. Gosto do circo e não me arrependo de ter saído [de casa]. Posso dizer que me tratam melhor do que muita gente da minha família”, afirma, de sorriso nos lábios.

Após abandonar o espaço onde vive, o bracarense mostra energicamente o complexo jogo de Tetris que permitiu acomodar no menor espaço possível as 40 viaturas do circo Flic-Flac e do circo Cristal que, desde o Natal, estão a fazer uma digressão conjunta. No centro do terreno da marina de Viana do Castelo onde estão instaladas as famílias, ergue-se uma lona azul que serve de espaço de treino para os artistas. De um lado está uma cama elástica, uma bicicleta elíptica e brinquedos de criança espalhados pelo chão. No lado oposto da estrutura está uma mesa com um baralho de cartas, desgastado pelos inúmeros jogos de sueca disputados nos últimos dois meses de inactividade.

“Como os artistas ganham todos por espectáculo, há algumas famílias com dificuldades”, admite Amílcar Carvalho, proprietário do Flic-Flac. Ao contrário do circo Cláudio, os espectáculos instalados em Viana do Castelo não usam animais. Contudo, apesar de não terem essa despesa com alimentação e cuidados veterinários, Amílcar prevê que a electricidade, água e o imposto único de circulação das viaturas causarão um rombo grande quando for levantado o estado de emergência: “Estamos a sobreviver com o dinheiro que poupamos. Tivemos sorte de, nas semanas antes da pandemia, termos feito boas casas. Mas, a este ritmo, aguentamos o circo mais um mês.”

Circos vão pedir subsídios
Era com orgulho que, nos últimos anos, os proprietários assumiam que os circos conseguiam sobreviver sem apoios do Estado. Porém, a situação agravou-se exponencialmente e está já a ser construída uma entidade com o objectivo de pedir ao Ministério da Cultura apoios para os circos tradicionais. A Associação Portuguesa de Empresas e Artistas de Circo (APEAC) está neste momento a ser montada e Carlos Carvalho, director do Circolândia e um dos fundadores do grupo, diz ao PÚBLICO que o objectivo passa por “colocar o circo onde ele deveria estar”.

“Os circos não têm direito aos subsídios na área da Cultura. É o único país do mundo onde isto acontece. É um facto também que nunca houve muita união entre o pessoal do circo, mas esta pandemia uniu as pessoas. Estamos a ser alvo de injustiças há muitos anos e claro que em tempo de crise [a situação] agrava-se muito mais”, explica Carlos Carvalho. O impulsionador e porta-voz provisório da APEAC diz que há uma “grande adesão” dos circos a este movimento.

Apesar dos contactos feitos pelo PÚBLICO, o Ministério da Cultura não prestou qualquer esclarecimento sobre as questões relacionadas com as actividades e reivindicações dos empresários de circo.

Apesar de apoiar totalmente a ideia, Claudio Torralvo não esconde algum pessimismo quanto ao objectivo de pedir subsídios ao Ministério da Cultura, mas diz que a necessidade é tanta que até estaria disposto a abdicar dos animais, caso fosse assegurada a subsistência da actividade: “Aceitaria, com muito custo, porque muitas terras estão a proibir a utilização de animais no espectáculo. Mas repare numa coisa: o público de circo gosta de animais. E para serem expostos têm de ser bem tratados, não acha?”

LER MAIS
Covid-19: circo parado na Figueira da Foz vive da solidariedade dos cidadãos
Acrobata português participa em festival de circo na China
Também Amílcar Carvalho, do Flic-Flac, considera que será difícil captar os apoios do Estado, afirmando que tão importante quanto os apoios do Governo seria que os custos das licenças aplicadas pelos municípios fossem suavizados.

Carlos Carvalho é sensível à apreensão dos colegas, mas acredita que a APEAC terá capacidade de fazer a diferença: “As pessoas estão um bocado resignadas, porque [a falta de apoios] acontece há muitos e muitos anos. Mas temos fé que este movimento vá mudar alguma coisa.”