1.4.12

Uma luta diária para exorcizar o apelo suicidário nos velhos de Odemira

Por Carlos Dias, in Público on-line

Umaa unidade móvel de saúde acompanha regularmentre centenas de idosos que vivem isolados nos montes do maior concelho do país. A luta contra o suicídio passa pela luta contra a solidão.

Uma Unidade Móvel de Saúde percorre os montes isolados para mitigar o sofrimento físico e psicológico e quebrar a solidão de quem não vê vivalma semanas a fio. É uma persistente sensação de abandono aquela que se interioriza quando se percorre o coração do concelho de Odemira. "Nestes montes solitários/Onde a desgraça me tem/Brado, ninguém me responde/Olho, não vejo ninguém." Nesta quadra popular está expresso o drama de mais de mil idosos que vivem sós e isolados, a braços com as dores da alma e do corpo, minados por doenças crónicas, resignados à sua sorte, até que vão ao encontro da solução final na pernada de um chaparro, na "poção mágica" do 605 Forte ou no fundo de um poço.

Nazário Viana, comandante dos Bombeiros Voluntários de Odemira faz o registo dos que se suicidam desde 1990. A expriência diz-lhe que "é a cópia que leva as pessoas a dar cabo da vida." As suas contas revelam que "são as mulheres que mais tentam, mas o homem não falha, mata-se mesmo" .

Saber o que estará por trás das elevadas taxas de suicídio que ocorrem no concelho de Odemira é o que tentam especialista e investigadores há décadas. Será apenas fruto do desespero? Resultado de uma vida de pobreza? Sinal do abandono em que os idosos ali vivem? Ou consequência de uma herança genética?

O director do Programa Nacional para a Saúde Mental, Álvaro Carvalho, e o responsável do Observatório Nacional para o Suicídio, Ricardo Gusmão, ambos psiquiatras, estão entre esses especialistas. A convite do deputado Mário Simões (PSD), que integra um grupo de trabalho do seu partido relacionado com o combate ao suicídio, acompanharam uma Unidade Móvel de Saúde (UMS) que desde Janeiro de 2010 apoia no interior do concelho.

A tarefa obriga-os a uma dura provação: percorrer quase uma centena de quilómetros por uma estrada em terra batida que serpenteia pela serra de Monchique. Por mais que se ande, avistam-se as mesmas curvas e as mesmas colinas cobertas de estevas e sobreiros retorcidos. "Nem parece Março", comenta-se no "todo o terreno" que transporta os psiquiatras. Nazário Viana, condutor da viatura, adverte que ali "é tudo muito longe".

Os solavancos colocam à prova a perícia dos condutores. E a centenas de metrosde distância a unidade móvel é imediatamente reconhecida por aqueles a quem vai prestar apoio devido às suas cores vivas. "Tivemos que a pintar assim para a diferenciar de outras viaturas que por vezes aparecem com pessoas que querem burlar e roubar" quem vive nas habitações perdidas pelo acidentado relevo, explica Conceição Quintas, coordenadora da UMS. Os primeiros moradores a receber a visita são dois irmãos de 74 e 70 anos, que vivem sozinhos no Monte da L., numa casa isolada, sobranceira a um vale.

O mais novo, Manuel E., dirige-se bem humorado à equipa médica, desta vez acompanhada pelos dois psiquiatras e eplso PÚBLICO, enquanto remenda um velho cinto de couro. O único contacto que os dois irmãos mantêm com o exterior, faz-se por telemóvel. Mas obriga-os a subir a um cerro íngreme. Só aí dispõem de rede numa área com poucos metros quadrados. "Se desviamos um palmo já não temos", informa o irmão mais velho Olímpio E.. Modo de identificar o lugar que os liga ao mundo: colocaram lá um sofá velho. "É ali mesmo", diz, apontando para três centenas de metros adiante. "Não dá para estar de pé. É só sentado que gente tem rede".

O idoso mostra exames médicos, entre eles três TAC à cabeça. Mas o diagnóstico não revela qualquer anomalia. Contudo ele queixa-se. "Dói-me a cabeça desde que fui operado à coma (glaucoma)", há cerca de14 anos. Álvaro de Carvalho, tenta confortá-lo, mas o homem insiste: "Tenho cá uma coisa dentro da cabeça que não me deixa dormir, nem comer. Tomo comprimidos mas dói sempre." O psiquiatra associa a dificuldade em dormir, à falta de apetite e às dores de cabeça. "Podemos estar perante um estado depressivo". Diz-lhe que não vale a pena estar triste. A resposta sai pronta: "Tenho a alegria de uma pessoa que não a tem." Os dois irmãos vivem ali há 54 anos e são acompanhados pela UMS há apenas um mês.O veículo ruma ao monte da F., a cerca de seis quilómetros. Do interior da casa sai um homem com 94 anos, mão entrapada, agarrado a um cajado, vergado pela idade e pela doença. Tem um melanoma numa das mãos e é acometido de frequentes estados depressivos.O filho de 54 anos, luta com a dependência do álcool. Deixou de trabalhar para tomar conta do pai. Está preocupado, porque acabou a medicação e tem medo de uma recaída. Conceição Quintas, descansa-o. Até há seis meses atrás vivia no monte um outro irmão que se enforcou numa oliveira.

A coordenadora da UMS explica as razões porque "a maioria" recusa a ida par um lar dos idosos. Querem ficar no local onde nasceram ou vivem há muito. Olhando em redor acrescenta: "Com uma vivência destas", preferem a solidão do monte à que suportariam entre as paredes de um lar. Mas os dados que o Centro de Saúde de Odemira tem recolhido indicam que o isolamento é um "factor de risco acrescido para as elevadas taxas de suicídio e doenças mentais" no concelho.

O último idoso que recebeu a visita dos dois psiquiatras, Manuel B., 79 anos, vive num monte junto à linha que delimita o Alentejo do Algarve. Tem um melanoma que já lhe desfigurou o rosto. Obrigado a viver na penumbra, mesmo assim recebe os visitantes no exterior, com um chapéu de abas muito largas na cabeça. "Atão senhor Manel como vai isso hoje?", pergunta a enfermeira Mónica Raimundo, que faz a muda de pensos, mede a tensão e verifica a medicação. O idoso, com os olhos húmidos de comoção, faz uma breve descrição do seu estado: " Isto vai andando, mas o mal está alastrando e vai-me apanhando as vistas".

Gostava de viver mais próximo da vila, apesar de ser dos poucos que têm energia eléctrica, telefone e televisão no monte. Mas vive sozinho. Conceição Quintas nota que quando viram pela primeira vez Manuel B.. ele "estava triste e abatido".

Uma constante observada entre os idosos isolados, realça a coordenadora da UMS, é "a ausência de capacidade reivindicativa, habituados que foram a ter pouco". A primeira surpresa surge "quando se lhes dizque têm os direitos de toda a gente", mas "recusam-se a pedinchar, não querem vistos como coitadinhos, têm a sua dignidade".

A situação nesta região não pode dispensar o apoio psiquiátrico, considera Álvaro de Carvalho. No entanto, afirma, "um enfermeiro e psicólogos especializados podem fazer a diferença". No distrito de Beja não há um único psiquiatra para 160 mil habitantes. No entanto, critica Álvaro de Carvalho, "em Coimbra há o dobro dos psiquiatras e o triplo das camas de internamento de Lisboa e do Porto". A Organização Mundial de Saúde recomenada um psiquiatra para cada 25 mil habitantes.

O efeito "pedigree" do isolamento

"O isolamento funciona para o pedigree genético", disse ao PÚBLICO Ricardo Gusmão, responsável do Observatório Nacional para o Suicídio. O psiquiatra respondia assim a uma pergunta sobre se havia alguma explicação para a prevalência entre os idosos visitados pela UMS dos estados depressivos e de determinados tumores.

Ricardo Gusmão admitiu estar-se perante um fenómeno associado a um território tradicionalmente despovoado, relacionando-o com aquilo a que chamou "pedigree genético". O estudo deste problema requer o acesso a dados mais precisos, mas o Instituto Nacional de Estatística "não os disponibiliza", adiantou o médico, com o argumento de que se trata de "dados pessoais", cuja protecção tem de ser garantida."Não é possível termos taxas de suicídio em função da naturalidade" de quem o consumou, exemplificou Ricardo Gusmão, salientando que a disponibilidade desse tipo de dados permitiria um maior rigor na análise de um grave problema de saúde pública e na definição das medidas a tomar.

Os números conhecidos de uma realidade dramática

Desde Janeiro de 2010, quando a Unidade Médica de Saúde de Odemira começou a trabalhar no projecto A Vida Vale, numa tentativa para reduzir as taxas de suicídio, os técnicos de saúde visitaram 1153 idosos, dos quais apenas 156 não estão a viver em montes isolados.

O balanço feito revela que 997 destes idosos têm mais de 65 anos e, destes, 779 têm entre 65 e 80 anos e 218 mais de 81 anos. Do sexo masculino, estão referenciados 506 indivíduos e 491 são mulheres. Ao todo, 663 são casados, 97 são solteiros, 227 viúvos e 10 divorciados. No conjunto das pessoas visitadas, 254 não têm telefone e 141 não sabem utilizá-lo.

A situação complicou-se para a equipa da UMS depois de ter verificado que 239 idosos vivem sozinhos e 658 têm apenas a companhia do esposo ou esposa. Por outro lado, 385 não têm quem cuide deles, sabendo-se que 293 são polimedicados.

No que diz respeito às condições de habitabilidade, 740 não têm acesso a água canalizada e 58 vão buscar a energia eléctrica a painéis fotovoltaicos de fraca intensidade. Mesmo assim, 40 vivem sem luz eléctrica, 248 não dispõem de instalações sanitárias e 64 têm-as no exterior.