Por Alexandra Campos, in Público on-line
As mulheres têm um tratamento diferente do que é proporcionado aos homens quando entram nos hospitais públicos portugueses com um enfarte agudo de miocárdio. Há disparidades, em função do género, no tratamento desta que é uma das principais causas de morte no país: internados em idêntica situação de gravidade, os homens recebem com maior frequência do que as mulheres tratamentos intensivos, como bypass coronários, concluiu um investigador. Esta discriminação acaba por se reflectir na taxa de mortalidade.
César Carneiro, que conduziu esta investigação no âmbito do seu doutoramento na Faculdade de Economia da Universidade do Porto, constatou que a idade funciona também como factor de discriminação nos hospitais do Serviço Nacional de Saúde (SNS), uma vez que os doentes mais idosos com enfarte agudo de miocárdio não recebem tantos tratamentos intensivos como os mais jovens. "A existência de disparidades no tipo de tratamento com base na idade poderá ser menos questionável, mais razoável [do que a que se verifica entre o sexo masculino e feminino]. Agora, não se entende por que é que um homem e uma mulher têm tratamentos diferentes", comenta.
Depois de analisar mais de 89 mil registos de episódios de internamento por enfarte agudo de miocárdio nos hospitais públicos entre 2000 e 2008, César Carneiro concluiu que estas disparidades são significativas: mais de metade das mulheres (52%) tiveram um tratamento inadequado (undertreated) face à gravidade do enfarte, enquanto isso apenas aconteceu com 37% dos homens.
Os dados permitem ainda chegar a outra conclusão preocupante: no grupo de mulheres com um tratamento inadequado, a probabilidade de morrer acabou por ser duas vezes superior (23% contra 11%) à que se verifica nas que não receberam um tratamento intensivo por não terem indicação para tal ("as correctamente não tratadas", como lhes chama o investigador).
Quanto à probabilidade de as doentes morrerem quando foram submetidas ao "tratamento standard" aplicado aos homens, esta foi de 4% contra 18%, no caso de não terem recebido este tipo de terapêutica mas apenas respostas mais simples, como aspirinas e repouso em casa.
Que factores explicam, afinal, as diferenças de tratamento entre homens e mulheres? "Penso que [este fenómeno] poderá ter a ver com algum efeito de discriminação estatística, da percepção de que os homens têm mais problemas cardiovasculares que as mulheres", responde César Carneiro. "Todos pensamos, à partida, que as doenças cardiovasculares são um drama muito maior entre os homens; num contexto de incerteza, o médico usa informação estatística prévia", acrescenta.
Também o facto de os cardiologistas serem maioritariamente homens poderá, eventualmente, ter alguma influência. As disparidades podem ainda estar relacionadas com problemas comunicacionais. "Aparentemente, os homens e as mulheres têm maneiras diferentes de sentir ou de explicar os seus sintomas [aos médicos]", explica César Carneiro.
Mas a discriminação pode também ser induzida por factores externos aos médicos. O investigador diz, aliás, que quis pôr o dedo "noutra ferida", ao analisar se havia diferenças sensíveis no tratamento dos doentes internados em hospitais EPE e em unidades não empresarializadas. Concluiu que nos hospitais EPE "a amplitude das disparidades nos tratamentos do enfarte agudo de miocárdio é maior".
A escolha do enfarte agudo do miocárdio para analisar a discriminação em função da idade ou do género não aconteceu por acaso, uma vez que esta é das patologias mais estudadas e citadas na literatura internacional. César Carneiro inspirou-se na investigação norte-americana, que começou por avaliar a discriminação racial no tratamento de várias doenças (a taxa de mortalidade por patologias cardiovasculares era maior nos negros, porque estes recebiam precisamente tipos de tratamento menos intensivos) e, mais tarde, avançou para a análise das disparidades em função da idade e do sexo.