Pedro Crisóstomo, in Público on-line
Há 483 mil pessoas sem emprego há mais de um ano. Para muitos, já não é uma condição transitória. A maioria está na meia-idade. Entre os jovens, o desemprego de longa duração dispara. Até quando é uma questão de tempo?
Quando Ana Sofia deixou os bancos da universidade, tinha estudado “o conceito”. As causas e os impactos “do fenómeno”. Não imaginava, oito anos mais tarde, estar de regresso às salas de aula para “voltar a tentar”. Mas logo que viveu uma segunda experiência de desemprego, não hesitou. Decidiu tentar. Passaram três anos. Tempo de uma segunda licenciatura, prestes a terminar. Três anos sem encontrar trabalho.
Ana Sofia Gomes, socióloga, 35 anos, está desempregada desde 2009. É uma das 483.900 pessoas que compõem a população desempregada de longa duração, que está à procura de emprego há, pelo menos, 12 meses – hoje mais de metade dos desempregados em Portugal. Para muitos, estar fora do mercado de trabalho deixou de ser uma condição transitória num país onde as perspectivas económicas são baixas e a criação de postos de trabalho pode estar comprometida sem crescimento económico sustentado.
Pessoas com mais de 35 anos e pessoas com qualificações mais baixas formam a maioria dos desempregados de longa duração, mas é entre os jovens e a população com mais anos de escolaridade que o fenómeno está a disparar.
O número de pessoas desempregadas há mais de um ano aumentou 35,8% no terceiro trimestre de 2012 (face ao mesmo período do ano anterior). Dos 870.900 desempregados, 55,6% estavam à procura de emprego há 12 meses ou mais (8,8% da população activa).
Uma incursão nas estatísticas mais recentes do Instituto Nacional de Estatística (INE), que divulga dados de três em três meses, mostra que o desemprego de longa duração se acentuou de forma ainda mais expressiva entre os jovens até aos 24 anos e entre quem concluiu o secundário ou o ensino superior. Na população entre os 15 e os 24 anos, o desemprego de longa duração disparou 60,4%; no grupo dos 25-34 anos, subiu 47,7%; e nos que têm entre 35 a 44 anos o aumento foi de 29,5%.
Ana Sofia faz parte desta última franja de 115.400 desempregados, a mesma que engrossou com o nome de João Gomes, quando este gestor de empresas, de 36 anos, ficou desempregado no Verão de 2011. Os dois são exemplos do aumento galopante do desemprego de longa duração entre pessoas qualificadas. E de uma geração para quem o fenómeno “se normalizou” com a crise.
Isso mesmo diz o sociólogo Pedro Araújo, do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra (CES/UC), não se referindo a casos concretos, mas à visão do desemprego que encontra hoje na sociedade portuguesa. Ao haver “todo um ambiente criado para que se normalize o desemprego”, este passou a ser “uma realidade com a qual as pessoas já estão habituadas a conviver”. “Sabemos que, mais tarde ou mais cedo, vamos passar por uma experiência de desemprego”, pensamento que diz ser dominante.
Havia no terceiro trimestre mais 181 mil desempregados do que um ano antes. Cerca de 468 mil eram homens, 402 mil eram mulheres.
A taxa de desemprego disparou para 15,8%. Os números mais recentes do Eurostat, calculados com uma metodologia diferente (reunindo dados do INE e dos desempregados inscritos nos centros de emprego do IEFP), apontam já para uma taxa de 16,3% em Outubro. E ao olhar para estes 870.900 desempregados é preciso ter em conta que ficam de fora as pessoas consideradas como inactivas (as que não fazem diligências para encontrar emprego, por exemplo).
Este “é um fenómeno muito complexo e quando se olha para os números, ele é apresentado de forma linear, quando é uma realidade muito heterogénea”, avisa Pedro Araújo, que integra no CES/UC o Núcleo de Estudos sobre Políticas Sociais, Trabalho e Desigualdades.
“Quanto mais o medo do desemprego for crescendo, mais assusta dos dois lados – assusta quem está no desemprego e assusta quem está numa situação profissional [vulnerável]”
Pedro Araújo, sociólogo e investigador do CES/UC
A forma como se vive o desemprego é inevitavelmente individual. Tem a ver com o contexto profissional anterior, a situação familiar, a idade, a trajectória, as qualificações. Mas há tendências comuns: a partilha de um sentimento de que a pessoa se tornou inútil ou de que não há soluções para o problema, diz. E “a forma como a pessoa vai vivendo com o desemprego também se vai modificando – quanto mais prolongado for o tempo do desemprego, mais estratégias as pessoas encontram para lidar com ele, muitas vezes a despeito de [se] encontrar um novo emprego”.
Emprego-desemprego
A história de Ana Sofia Gomes conta com duas experiências de desemprego em oito anos de vida profissional. Por vezes perde-se na teia de datas. O seu percurso é, como tantos outros, assim: emprego-desemprego-emprego-desemprego. Terminou a licenciatura em Sociologia na Universidade do Minho em 2000. No ano seguinte, começou a trabalhar na Câmara do Porto, cidade onde vive, e depois continuou ligada à autarquia através de um projecto de intervenção social.
Fica desempregada pela primeira vez em 2007. Oito meses. Regressa ao mercado de trabalho já em 2008 numa IPSS. E ao fim de um ano volta a ficar sem emprego. Resolve de imediato voltar a estudar: Serviço Social.
Há mais de dois anos que não recebe subsídio de desemprego – vive com o apoio dos pais e é com as poupanças que paga as propinas.
Passou por uma fase em que familiares e amigos sentiam que “voltar a uma licenciatura era retroceder”. Mas, a poucos meses de terminar o segundo curso, conta que as experiências de estágio curricular lhe permitiram “aumentar a rede de contactos institucionais”.
Por criar a página no Facebook “Estou desempregado(a). e agora?” chegou-lhe o convite para entrar no projecto desempregados.net, uma rede social online de procura de emprego e onde empregadores anunciam propostas. É também com a dinamização da página do Facebook, seguida por mais de 3500 pessoas, que Ana Sofia se ocupa e se vai sentido mais activa. Ali coloca referências de ofertas de emprego, formações profissionais, notícias, temas relacionados com o emprego e o desemprego. Um hobby que a ajuda a estar “atenta ao que se passa”. E uma rede que, pelas experiências e os contactos, acaba por ser “um grande indicador do país”.
O economista Francisco Madelino, ex-presidente do Instituto do Emprego e Formação Profissional (IEFP), fala de duas grandes tendências no desemprego em Portugal, não apenas o de longa duração. Uma “realidade nova com características conjunturais” ligada ao “aumento significativo de jovens que saem das universidades mais qualificados” e que “não estão a encontrar oportunidades” no país. Outra, estrutural, de desemprego que “não recuperará”, nos serviços alimentados pelo crédito ou associados à construção.
Nos últimos 20 anos, acrescenta Francisco Madelino, sabia-se que “milhares de pessoas [desempregadas] que não tinham qualificações acabariam por conseguir trabalhos intensivos”. Hoje essa tendência caiu por terra, considera. As pessoas perdem as suas referências, com a agravante de que na meia-idade “começam a perceber gradualmente que não têm hipótese de regressar ao mercado de trabalho”, acrescenta o sociólogo Pedro Araújo. Ao mesmo tempo, “o desemprego cria corpos submissos”, no sentido em que “as pessoas se vêem forçadas a aceitar tudo o que lhes derem”. “Quanto mais o medo do desemprego for crescendo, mais assusta dos dois lados – assusta quem está no desemprego e assusta quem está numa situação profissional [vulnerável], porque a qualquer momento pode perder o emprego”.
“Há pessoas com 30-35 anos que (...) vão adiando a sua integração no mercado de trabalho através de licenciaturas, seguidas de mestrados, seguidas de doutoramentos”
Francisco Madelino, ex-presidente do IEFP
Madelino refere outro ponto negativo: “Imaginar que há pessoas com 30-35 anos que nunca tiveram experiência profissional, porque vão adiando a sua integração no mercado de trabalho através de licenciaturas, seguidas de mestrados, seguidas de doutoramentos”.
Neste quadro, que garantias dá hoje um diploma? Gilles Lipovetsky, filósofo e sociólogo francês, aborda a questão numa série de conversas com Bertrand Richard que resultaram em livro em 2006 (A Sociedade da Decepção, editado em 2012 em Portugal). É verdade que os diplomados têm “muito mais oportunidades de se inserir na vida profissional do que aqueles que não têm qualificação”, mas baixou essa correspondência entre o diploma e o nível de emprego.
No período de prosperidade económica dos chamados “Trinta Gloriosos”, a seguir à II Guerra Mundial, havia a percepção da escola como “projecto igualitário e de promoção social”, diz o sociólogo, na mesma obra, à luz do caso francês. Mas de criadora de esperança, a escola passou a ser uma “casa de decepção”. Isso explica que “no fundo da escala social”, alguns jovens se questionem “por que razão fazer longos estudos se estes não permitem obter empregos de acordo com as suas esperanças e quando já se está condenado ao desemprego e aos salários de miséria”, sustenta.
Absorção dos mais qualificados
No caso de Portugal, Francisco Madelino acredita que, com uma taxa de crescimento da economia de 1%, o desemprego de jovens licenciados começará a ser absorvido. A questão é quando. E o problema “é começar a entrar nos segmentos menos qualificados”.
João Gomes é um quadro qualificado. Tem 36 anos. Está sem emprego desde o Verão de 2011. Trabalhava desde 1999, ainda não terminara o curso de gestão na Universidade Católica, em Lisboa. Começou na banca, passou pela consultoria, chegou a uma posição de chefia numa empresa da área das telecomunicações. Ao fim de mais de um ano fora do mercado de trabalho, pensa em emigrar ou criar o seu próprio negócio. Se o projecto não avançar, a porta de saída pode estar na Europa ou na América Latina. Ou encontrar lá uma rampa de lançamento para o projecto. Equaciona por isso emigrar, mas torce o nariz quando ouve falar “de forma ligeira” da questão da emigração. “Quando uma pessoa sai, sai a pessoa toda, não sai só profissionalmente”. No seu caso, admite que a sua situação é “algo peculiar”, mas preocupa-o a saída de quadros qualificados, “especialmente os jovens”, e a necessidade de criação de Pequenas e Médias Empresas para ajudar a manter os cérebros no país.
O sociólogo Pedro Araújo reconhece que há experiências positivas de criação do próprio emprego, mas contrapõe: “Nem toda a gente tem estofo para ser patrão, nem criar a sua própria empresa”.
Do contacto que tem com outros desempregados, Ana Sofia Gomes nota que muitos não sabem o que fazer e onde se dirigir para conseguir formação profissional. Conta da sua experiência: “É ao fim de um-dois anos que começamos a pensar: ‘Não tenho objectivos’, ‘não tenho que fazer’”. Por isso decidiu traçar os seus próprios objectivos. Quando voltou a estudar, dos colegas sentiu “muita admiração pela coragem: voltar a uma estaca zero, voltar dez anos atrás...”. Diz ter hoje “uma reflexão mais crítica sobre o fenómeno do desemprego”. Em Março, espera terminar este segundo curso. À espreita de uma segunda oportunidade.