11.3.13

Guilherme d’Oliveira Martins. “Não se podem fazer cortes cegos nas políticas sociais”

Por Isabel Tavares, in iOnline

O ex-ministro considera que a resolução da crise económica passa por uma melhor parceria da Europa com os EUA


O Tribunal de Contas multou 121 responsáveis num total de 301 mil euros e obrigou à reposição de 22 314 euros em 2012. As infracções mais comuns foram a realização de trabalhos a mais em empreitadas e os ajustes directos, no que diz respeito à contratação pública, e pagamentos ilegais, nomeadamente vencimentos e subsídios, no âmbito das normas do direito financeiro. O presidente do Tribunal de Contas, Guilherme d’Oliveira Martins, diz que “tem havido progressos na transparência e no rigor” e garante que os cidadãos podem estar tranquilos “que não será pago nem um tostão a mais do que é devido”. Mas ainda há falhas. Por exemplo, o governo ainda não regulamentou o visto para contratos de empresas públicas de valor superior a 5 milhões de euros e a lei já tem mais de um ano. Ex-ministro da Educação, das Finanças e da Presidência no governo de António Guterres, Guilherme d’Oliveira Martins foi fundador da Juventude Social-Democrata e secretário-geral-adjunto do PPD antes de ser deputado pelo PS e apoiante de Mário Soares. Actualmente é também presidente do Conselho de Prevenção da Corrupção, e foi por aí que começámos.

Há corrupção em Portugal?

O Conselho de Prevenção da Corrupção considera indispensável uma acção forte de prevenção, uma vez que há fortes riscos. A única maneira que temos de analisar a corrupção é por níveis de percepção e o que tem sido divulgado constitui um motivo de preocupação.

Corrupção é daquelas coisas que toda a gente diz que há mas nunca se prova. É saudável viver em clima de impunidade?

Há quem defenda que o Tribunal de Contas devia ter mais poderes. Concorda?

Em termos europeus, a crise da dívida soberana e a crise financeira vão ter uma consequência: o reforço de todos os tribunais de contas e dos seus poderes, no sentido do acompanhamento e da credibilização das contas públicas. Isto é novo e, designadamente, os défices excessivos vão passar a ser analisados com uma intervenção activa.

Foi até há dias presidente do Comité de Contacto dos Presidentes dos Tribunais de Contas da União Europeia e é até 2014 presidente da EUROSAI, organização europeia de tribunais de contas. Há grandes diferenças entre os países?

O Tribunal de Contas português é dos poucos que mantêm um poder extremamente importante, que é o da fiscalização prévia e da emissão de visto relativamente aos maiores contratos. Tem sido o primeiro a assinalar determinados fenómenos, que depois se vieram a verificar noutros países, e que em Portugal foram devidamente prevenidos.

Os vistos prévios são para contratos de que valor?

Na generalidade o visto aplica-se aos contratos acima de 350 mil euros. Um facto importante é que as empresas públicas também já estão abrangidas pelo visto, em contratos superiores a 5 milhões de euros. Apesar disso, esta lei, que tem cerca de um ano, ainda não foi regulamentada pelo governo. O Tribunal de Contas entende que esta regulamentação é importante e devia ocorrer.

Por que motivo não avança, tem ideia?

Nós fornecemos ao governo todos os elementos indispensáveis e entendemos que é urgente… É o que posso dizer.

As instituições costumam cumprir as recomendações do Tribunal de Contas?

Em termos percentuais sim, rondam os 60%. Mas 2013 vai ser um ano especialmente importante neste domínio, porque existe um compromisso do governo e da administração de assegurar a primeira recomendação que está por cumprir e que o tribunal considera prioritária, que é a aplicação do plano oficial de contabilidade pública.

Porque é que passado todo este tempo o plano oficial de contabilidade pública não está generalizado a toda a administração?

Não é justificável que ao fim de 20 anos este sistema não esteja plenamente aplicado e isto significa um passo muito importante para a racionalização e para o controlo das finanças públicas. O Tribunal de Contas já está a trabalhar intensamente para o período posterior ao fim da intervenção da troika, em primeiro lugar em cooperação com o Ministério das Finanças, com o Banco de Portugal e com o Conselho de Finanças Públicas, relativamente ao reporte a Bruxelas, para que seja absolutamente rigoroso e espelho da consolidação e da sustentabilidade orçamental. Por outro lado, estamos a acompanhar a execução do Código dos Contratos Públicos e das Parcerias Público-Privadas. E aqui, devo dizer, o Tribunal de Contas é a instituição que tem apresentado de forma mais consistente e mais rigorosa todos os elementos, numa matéria que é difícil mas que sem a sua acção não poderá ser solucionada.

Vinte anos para aplicar uma recomendação sem que ninguém seja responsabilizado?

Recordo que o avanço relativamente a esta aplicação ocorreu com maior celeridade a partir do momento em que o Tribunal de Contas anunciou, há dois anos, que aplicaria sanções às entidades incumpridoras. A administração é sempre uma máquina pesada, designadamente na resposta aos problemas. E não estou só a falar do governo, mas também das regiões autónomas e das autarquias locais, que são as entidades que estão sob nossa jurisdição.

Têm sido aplicadas muitas sanções?

Algumas, mas na maior parte dos casos não é preciso, por uma razão simples: os responsáveis sabem que a sua carreira será seriamente afectada pelo facto de não cumprirem expressamente essas recomendações. Só há sustentabilidade das finanças públicas se todos remarmos no mesmo sentido. A prestação electrónica de contas é para nós outra regra fundamental, porque permite uma muito maior celeridade na apreciação das irregularidades. Temos um programa informático que nos permite imediatamente verificar se há ou não fundamentos irregulares e se os números são coerentes.

Foi à Assembleia da República falar na lei de enquadramento orçamental. O que pretende?

Entendemos que é indispensável rever o calendário de apresentação de contas. As contas do Estado devem ser apresentadas mais cedo, prioritariamente até ao fim de Março, para poder haver parecer do Tribunal de Contas no momento em que a Assembleia da República discute o orçamento seguinte.

Portugal é agora um país mais credível?

A confiança internacional em Portugal é algo que testemunho neste momento. Portugal tem um bom nome nos mercados internacionais e tem um bom nome na União Europeia relativamente ao cumprimento dos seus compromissos. Mas essa imagem de credibilidade precisa de corresponder a uma garantia de que depois da intervenção da troika a disciplina orçamental continua e, simultaneamente, a sustentabilidade das finanças públicas. Isto representa também a garantia para os contribuintes de que os seus impostos são bem aplicados e a qualidade dos serviços, designadamente da segurança social, da educação e da saúde, não se perde.

Essa qualidade está a perder-se?

Há o risco de se perder se não houver uma grande preocupação geral de garantir uma melhor aplicação dos recursos. É muito importante combater os desperdícios. Há números recentemente divulgados que mostram que Portugal é dos países da OCDE com encargos mais baixos por doente e, simultaneamente, com melhores resultados. Não podemos perder isto e é por isso que tenho dito que nunca se podem fazer cortes cegos nas políticas sociais, é preciso pôr nos pratos da balança aquilo que se pede ao contribuinte e o benefício que este aufere.

Onde é que as auditorias revelam que se pode combater o desperdício?

O contributo do Tribunal relativamente à reforma do Estado social são as suas recomendações: flexibilizar, assegurando que o Estado não deixa de ter qualidade nos seus serviços, combater a fraude e a evasão fiscal, garantir que a contratação pública é salvaguardada, ter comparadores públicos quando se decide se há concessões ou parcerias e, simultaneamente, melhores programas de concurso e regras claras no sentido de privilegiar a ideia de concurso, sempre melhor do que o ajuste directo. Há exemplos de desperdício além dos medicamentos, por isso leiam-se os relatórios.

Mas não se trata apenas de identificar problemas, é preciso corrigi-los…

No caso da saúde, o Dr. Paulo Macedo tem sido exemplar. Acompanho todos os países europeus e posso dizer-lhe que a melhor maneira de combater os desperdícios é cumprir escrupulosamente as regras da concorrência, evitar a cartelização dos mercados e assegurar que os programas de concurso são respeitados e cumpridos, designadamente com comparadores públicos sérios.

Há uma Autoridade da Concorrência... Existem demasiados supervisores?

A regulação e a supervisão devem ser mais coordenadas entre si.

Na educação, onde se pode cortar?

Na educação, é indispensável pensar na reorganização da rede de modo que haja uma distribuição mais equitativa dos recursos para evitar as grandes disparidades de região para região. A experiência portuguesa dos contratos de associação é globalmente positiva. Mas a educação tem um problema diferente do da saúde, é que enquanto o efeito demográfico sobre a educação é uma redução de alunos na idade escolar, na saúde é o aumento da esperança média de vida e o envelhecimento da população, que leva a que haja mais encargos.

Os prazos para aplicação das recomendações são cumpridos?

Conforme. Mas antes de 2006 e de todos os juízes terem competências sancionatórias, uma recomendação podia demorar dois anos a ser cumprida e às vezes nem ser plenamente cumprida. Essa mesma recomendação é aplicada hoje, em média, em cerca de 15 dias e 99% das sanções que aplicamos não oferecem qualquer dúvida.

Há uma décalage entre a data dos relatórios e a actualidade. Isso tira relevância às auditorias?

Por isso introduzimos uma medida que é fundamental e tem sido escrupulosamente cumprida: quando iniciamos uma auditoria na primeira metade do ano ela tem de incidir no ano menos dois. Quando iniciamos uma auditoria na segunda metade do ano ela incide no ano menos um. Estamos sempre a tratar os últimos exercícios fechados e é por tudo isto que precisamos de ter contas mais céleres e aprovadas mais cedo.

Falou nas PPP. O Tribunal de Contas disse que havia anexos aos contratos que não foram apresentados. O assunto caiu no esquecimento?

Não caiu no esquecimento nada. Digo o que disse no parlamento - e não mais porque não posso fazê-lo: relativamente a qualquer contrato que é visado pelo tribunal, só os elementos com base nos quais o tribunal emitiu o visto são válidos e só podem ser feitos pagamentos correspondentes àquilo que foi visado.

E quantos há que não foram visados?

Aplicamos sanções. Todos os dias aplicamos sanções a entidades que não se submetem a visto. Mas hoje até um bom gestor tem a preocupação de submeter tudo ao tribunal, mesmo quando tem dúvidas. Mas diga-se isto de uma vez: quem fizer pagamentos além daquilo que foi visado entra em incumprimento grave e isso designa-se “pagamento indevido”. O cidadão pode estar descansado, porque quem pagar além do que foi visado será sancionado. E pode ir até à reposição.

Disse que devem ser os portugueses e o governo a definir as suas políticas. Isso é compatível com o país estar dependente de ajuda externa?

Fiquei muito desgostoso com a pobreza do documento do Fundo Monetário Internacional, que tem muitas fragilidades, e foi a propósito disso que citei o grande Albert Eichmann, que chama a atenção para o cuidado com os “economistas visitantes”. Primeiro, cabe ao governo português, às instituições portuguesas, encontrar respostas relativamente à nossa situação. Mas sozinhos não poderemos solucionar os problemas com que nos debatemos.

De quem ou do que precisamos?

O governo económico da União Europeia é essencial. A união política é mais necessária do que nunca e defendo que, assim como existe um alto comissário para a vice-presidência do Conselho Europeu para as questões da política externa e da segurança comum, deve haver também um alto representante para as questões da economia e das finanças. É absolutamente fundamental. Mas temos de ser nós a encontrar o nosso próprio caminho, até porque a União Europeia é uma união de estados e povos livres e soberanos, não há uma nação europeia.

Há questões que não se resolvem isoladamente...

Só seremos bons alunos se melhorarmos em justiça e em coesão social. É evidente que temas como a segurança ou o ambiente não podem ser resolvidos isoladamente por cada um dos países. Como a questão do investimento reprodutivo e do emprego. Precisamos da coesão económica e social que os tratados referem, a partir de uma nova lógica. Os fundos comunitários, por exemplo, nomeadamente o fundo de coesão, têm de ser aplicados a partir de uma lógica europeia. Hoje temos à consideração as redes de alta prestação - já não é de alta velocidade -, e precisamos de projectos europeus criadores de emprego, que reforcem a solidariedade europeia e permitam que a Europa não seja irrelevante.

Neste momento a Europa é irrelevante?

Corre o risco de ser irrelevante. A resposta à crise numa lógica fragmentária e proteccionista de cada um dos membros da União levará à mediocridade e à irrelevância. Felizmente, no discurso de tomada de posse do presidente Obama vi com muito agrado a referência ao reforço de uma parceria com a Europa. A crise financeira deverá também ser resolvida com mais governo económico da União e uma melhor parceria com os Estados Unidos da América.

O ministro Vítor Gaspar é tido como um profissional competente e credível. No entanto, tem falhado todas as previsões e tomou medidas que se têm revelado desastrosas. Em que ficamos?

Eu sempre disse que o professor Vítor Gaspar é uma pessoa extremamente competente no plano técnico. Naturalmente, o que é neste momento indispensável acrescentar é que estamos todos perante um desafio que é encontrar a afinação que permita compatibilizar a disciplina necessária com a justiça distributiva indispensável.

Entre os dados que surpreenderam o governo estão os números do desemprego. É possível reformar o Estado sem acentuar ainda mais este factor?

É uma realidade com que nos defrontamos e a que temos de responder. É a nossa primeira prioridade.

Vê disciplina do lado da despesa ou só do lado da receita?

É um problema da ciência económica, articular, compatibilizar, finalidades que são dilemáticas. Ninguém tem a solução dentro do bolso, ninguém tem a solução sozinho. Essa é a razão pela qual o senhor Draghi tem feito mais pela superação da crise que qualquer outra instituição na União Europeia e é indispensável que todos afinem pelo mesmo diapasão.

Como vê a situação em que se encontra a Itália?

A situação italiana gera grande preocupação, obrigando ao reforço da solidariedade europeia, do governo económico e da união política.

O presidente do governo espanhol, Mariano Rajoy, disse que Espanha precisa e agradece ajuda, mas são eles que decidem o que precisam fazer. Portugal é subserviente?

Não, Portugal não é subserviente e tem dado provas… Portugal é uma nação antiga. Temos uma longa experiência que é sempre útil nestes momentos. Este é o ano orçamental mais difícil desde 1974 e isso obriga a uma grande exigência, uma grande mobilização e a um ponto crucial: é indispensável que a concertação social funcione e que haja consensos duráveis no parlamento, que ultrapassem as maiorias parlamentares. É uma questão de sobrevivência.

Gostaria de voltar a exercer um cargo no governo?

Não está no meu programa. Fui ministro das Finanças com 49 anos, depois de 20 anos como professor de Finanças Públicas, e neste momento o regresso ao activismo político não está nos meus planos.

Como vê o desempenho da ministra da Justiça?

A ministra da Justiça está numa área que não é directamente relacionada com o nosso tribunal, que é um tribunal financeiro. As questões da justiça são naturalmente sempre muito complexas, sobre elas não me quero pronunciar, até porque o tribunal se pronuncia e audita as questões da Justiça. Devo apenas dizer que a melhor administração da justiça é fundamental e a senhora ministra da Justiça é uma pessoa com experiência e naturalmente que esse facto não pode deixar de ser saliente.

O governo PS introduziu no Diário da República uma explicação daquilo que a lei pretende dizer. As leis não deviam ser claras e objectivas?

Não gosto de muitas leis e entendo que as leis têm de ser poucas, simples e claras.

E é o que temos?

Não.

O que é que se pode fazer nesta matéria para que não haja esta proliferação de leis, decretos e directivas?

Numa palavra só: simplificar. Para mim, há dois pontos sagrados: transparência na administração e simplicidade na legislação.

Tem sido criticado um excessivo outsourcing na contratação de serviços jurídicos por parte do Estado em detrimento da utilização dos seus serviços internos. Deve ser assim, o Estado não tem serviços jurídicos competentes?

As recomendações do Tribunal de Contas são claras. Devem privilegiar-se os meios disponíveis da administração.

Os juízes são maltratados em Portugal?

Não.

Recebeu com agrado o nome de Joana Marques Vidal para a Procuradoria-Geral da República?

Recebi, uma vez que a conheço muito bem, era procuradora-geral-adjunta aqui no meu tribunal e, obviamente, vemos com gosto o facto de alguém que trabalhava aqui, que conhece muito bem a jurisdição financeira, ser elevado ao primeiro lugar no Ministério Público.

Como olha para a saída de Cândida Almeida da direcção do Departamento Central de Investigação e Acção Penal (DCIAP) e o inquérito disciplinar que lhe foi instaurado?

Olho em silêncio. Seria incorrecto da minha parte dizer o que quer que seja.

Nos últimos dias assistimos a buscas a bancos, suspeitos de cartelização. Mas já houve outras acusações, que, quase invariavelmente, não dão em nada. Os cidadãos podem acreditar na justiça portuguesa?

Temos de fazer tudo para que as pessoas acreditem mais na justiça portuguesa. Isso consegue-se através da cooperação entre todas as instituições, da celeridade da investigação e da demonstração de que não há impunidade.

E não há, impunidade?

A instituição a que presido tem feito tudo para que haja consequências sempre que elas devem ser aplicadas.