15.9.14

“O que tem valido ao SNS é a mãe, a Constituição, sem a qual já não existia”

Romana Borja-Santos, in Público on-line

Apresentado muitas vezes como "o pai do Serviço Nacional de Saúde", António Arnaut afirma que, ao contrário de muitos políticos, é utente do SNS, tirando senha e aguardando cirurgias em lista de espera. Revolucionário e poeta, concede: "O SNS foi o melhor poema que escrevi."

Na secretária antiga com o tampo forrado a pele grená repousam livros. Muitos. De Herberto Helder a obras sobre os templários e sobre a maçonaria, passando por alguns dos mais de 30 livros que António Arnaut escreveu – muitos de poesia. Mas, garante, o melhor poema que fez foi o do Serviço Nacional de Saúde (SNS). António Arnaut, 78 anos, foi autor do despacho de 1978 que abriu portas para a criação do SNS, um ano depois. É considerado o “pai” deste “grande sucesso da democracia portuguesa”. No seu escritório em Coimbra, numa entrevista ao PÚBLICO, faz um balanço dos 35 anos do serviço público. Fala rodeado de quadros com as capas dos seus livros, de um que junta as três grandes figuras que admira (Jesus Cristo, Che Guevara e Gandhi) e do documento da criação do Partido Socialista, do qual foi fundador: “Somos uma multiplicidade de contradições que dão uma corrente única”, justifica.

O SNS chegou aos 35 anos. Que balanço faz deste percurso?
Apesar de muitas insuficiências do SNS, o balanço é largamente positivo. Os resultados alcançados fazem do SNS o grande sucesso da democracia portuguesa. Esta afirmação não é poética nem metafórica. Se compararmos os nossos indicadores sanitários de 1979/80 com os actuais, vemos um salto qualitativo do fundo da tabela para os primeiros lugares do ranking mundial da saúde. Só na mortalidade infantil passámos de 40 mortos por 1000 nascimentos para menos de três. Antes do SNS havia 0,4 consultas por pessoa e agora há 4,5. É indiscutível que o SNS é a grande conquista social do 25 de Abril. Mas nos últimos anos, acentuando-se nos últimos três, assistimos a uma certa degradação ou debilitação do SNS com aumento das listas de espera, um certo racionamento de recursos, meios auxiliares de diagnóstico e medicamentos, falta de coisas essenciais, ao mesmo tempo que houve um crescimento do sector privado. Mesmo tendo consciência destas deficiências graves, temos de as considerar um epifenómeno. O SNS não é isso, é a dedicação dos seus profissionais e a capacidade de responder às necessidades das pessoas e o conforto que representa para todos com respeito pela dignidade de cada um.

É muitas vezes referido como pai do SNS. Como vê a relação do seu ‘filho’ com o sector privado?
Vamos à questão do pai. Sinto-me orgulhoso, a lei que criou o SNS é da minha responsabilidade. Claro que foi num governo chefiado por Mário Soares, mas foi por uma certa teimosia minha que houve a lei. Mas o SNS está a ser feito todos os dias pelos seus profissionais dedicados. Eu só dei o primeiro passo. Se o SNS tem progenitores, então verdadeiramente o que tem valido ao SNS é a mãe, a Constituição da República Portuguesa. Se não fosse a Constituição já não existia SNS. Quando fiz o SNS fi-lo precisamente em função do imperativo constitucional, ético e moral. Em Fevereiro de 1979 dei-me cinco meses para fazer a Lei de Bases do SNS e ao fim de um mês estava pronta. Tinha consciência de que tinha pouco tempo e de que havia grupos de pressão e de interesses instalados. Tive de enfrentar toda a direita parlamentar e algumas incompreensões dentro do meu próprio partido. A coisa singrou porque havia um grande apoio popular. Criou-se um tal entusiasmo que não se podia travar. O milagre do SNS não está apenas nos seus resultados, que são notáveis, mas está também em ter convertido os incréus e os que lhe eram hostis. Nenhuma pessoa bem formada pode deixar de apoiar uma reforma tão importante para a dignidade das pessoas e para a coesão social. O SNS acabou com a saúde enquanto privilégio de quem a podia pagar. Eu próprio tenho várias doenças e é graças ao SNS que estou aqui. Nos últimos sete anos fui operado três vezes e provavelmente seria difícil eu pagar, claro que fui pagando ao longo dos anos. O que tem de belo o SNS é o princípio da solidariedade em acção. Os que podem pagam para os que precisam e quando estamos doentes não precisamos de pagar. Mas tiro sempre a minha senha e sou atendido na minha vez. Aliás, esperei dez meses para ser operado às cataratas e não aceitei ir ao privado. A maior parte dos políticos não são utentes do SNS, mas eu sou.

E os privados ameaçam fazer regressar a saúde como privilégio?
Temos assistido a um fortalecimento e uma expansão do sector privado ou sector mercantil. No sector privado há muito boa gente, honesta, que pratica a medicina. Mas também há casos de verdadeira exploração. Nos últimos dias recebi telefonemas de clínicas privadas para ir fazer um rastreio a dizer que é de graça mesmo dizendo que não preciso. Há agressividade e há grupos económicos privados com publicidade enganosa. Há um espaço para o sector privado, mas nestes três anos o SNS perdeu 3000 camas e o sector privado tem mais 1500 ou 2000 camas. É uma expansão do sector privado e uma contracção do sector público, e isso dói. O sector privado não pode é viver à custa do sector público e metade das suas receitas são pagas pelo SNS através de convenções e dos subsistemas. Às vezes as listas de espera no público prolongam-se para além do tempo correcto justamente para aliciamento do sector privado. E todos os governos têm culpa no cartório.