Ana Cristina Pereira (Texto) e Paulo Pimenta (Fotos), in Público on-line
Depois das equipas de voluntários terem batido em retirada, a associação Saber Compreender aliou-se à Escola de Hotelaria e Turismo do Porto para matar a fome a quem está nos lugares mais esconsos e começou a encontrar pessoas que acabaram de sair da prisão. Só 45 das 1222 pessoas libertadas por perdão para evitar a propagação da covid-19 nas cadeias disseram que precisavam de ajuda, mas outras estão a aparecer na rua.
Algo novo intriga Filipe Gaspar nas rondas da Saber Compreender pelos sítios das drogas do Porto. “Há sempre malta que está na rua e esteve na prisão, mas não me lembro de ver tantos casos do tipo ‘saí ontem’.” Todas as semanas, lhe aparece um novo.
De casa em casa, estes enfermeiros levam cuidados e uma palavra amiga a quem mais precisa
Numa ronda, encontrou um homem, na Praça da Batalha, ainda bem nutrido, limpo, a dormir por favor em casa de uma amiga. Dias depois, tornou a vê-lo já mais abatido, a dormir na rua, perto do Teatro Nacional São João. Na semana seguinte, uma mulher, no Bairro do Viso, a chorar, a dizer que não queria voltar à velha vida. Na outra semana, um homem, também no Viso, com residência na Covilhã, incapaz de prosseguir.
O primeiro, Vítor, vai aparecendo, ronda após ronda, ora num sítio, ora noutro. Desta vez, o homem de 40 anos está na Rua Mouzinho da Silveira, perto da Rua Escura, ponto de venda de drogas do Bairro da Sé. E Filipe nota que está mais magro, mais sujo, mais baralhado. Recaiu.
Vítor não se lembra de lhe terem perguntado na prisão se tinha um sítio para pousar a cabeça, nem lhe parece que tal fizesse sentido. “Se não, o quê? As pessoas que não tinham casa não tinham direito à liberdade? Os juízes não têm culpa das pessoas não terem casa. Eles deram o perdão para as pessoas saírem e para haver mais espaço nas cadeias. Outros têm de fazer o trabalho deles. Para que serve a Segurança Social?”
Só 45 em 1222
Os 1253 reclusos que beneficiaram da saída administrativa extraordinária de 45 dias prorrogáveis tinham de ter uma casa, até porque saíam com a obrigação de lá permanecer, sob vigilância da reinserção social e das polícias. Os 1222 libertados por perdão, não. Mas não era expectável que ficassem sem abrigo.
Ao que diz o gabinete da ministra da Justiça, Francisca van Dunem, apenas 45 informaram não ter para onde ir. Nesse grupo, “seis recusaram apoio e não voltaram a estabelecer contacto com os serviços da Direcção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais [DGRSP] e nove foram para os bungalows de Monsanto, num projecto apoiado pela Associação O Companheiro, onde ainda permanecem”. Para os restantes, procurou-se articular uma resposta com a Segurança Social e outras entidades, a maior parte de algum Núcleo de Planeamento de Intervenção em Sem Abrigo (NPISA).
O coordenador da Estratégia Nacional para a Integração das Pessoas em Situação de Sem Abrigo, Henrique Joaquim, confirma que tem “estado em contacto muito frequente com a DGRSP”. Facultou acesso aos NPISA que existem de Norte a Sul. “Os NPISA foram prevenidos com o objectivo de estarem preparados e poderem acolher cidadãos que, apesar deste procedimento, ficassem em situação de sem abrigo”, afiança. “Foram reportadas algumas situações, que ainda não é possível quantificar com rigor”, sobretudo, em Lisboa e Porto.
Segundo o gabinete da van Dunem, nas prisões da área do Porto, havia sete referenciados. Dois recusaram apoio, dois ainda aguardam solução, os outros “tiveram respostas das instituições”. Admite-se que outros precisem de ajuda. “Em Lisboa, as instituições asseguraram o apoio a 40 pessoas, número muito superior ao total das que declararam não ter apoio familiar ou institucional”.
Nas últimas semanas, ao serviço de acção social têm chegado dois tipos de recém-saídos da prisão: os que não tinham para onde ir e nada disseram no estabelecimento prisional, como Vítor, e os que pensavam que tinham para onde ir e, afinal, não tinham, como um homem que vivera numa instituição antes de ser detido e estava convencido de que podia lá voltar. Teve de esperar por uma vaga no Centro de Acolhimento de Emergência Covid-19, no antigo Hospital Joaquim Urbano, uma estrutura da Câmara do Porto, coordenada pela Ordem de Malta.
O levantamento feito no ano passado dava conta de 140 pessoas sem tecto, muitas como que presas às ruas do Porto. No final de Março, houve uma operação de resgate que se estendeu por vários dias. Entraram mais de 30 pessoas no Centro de Acolhimento de Emergência Covid-19. Iniciaram uma quarentena de 14 dias. Alguns dos que entraram, quiseram sair no dia seguinte ou volvido um par de dias. Os que aguentaram os 14 dias foram sendo distribuídos por outras estruturas, que se pressupõem livres do vírus SARS-CoV-02. Entretanto, outros vão sendo sensibilizados. No final de Abril, nova operação de resgate.
À partida, quem acabou de sair da cadeia não faz parte das prioridades. Entra conforme vai havendo lugar. Até lá, a Acção Social pode pagar um quarto. E é isso que Vítor diz que deseja. Foi sinalizado pela Saber Compreender à Segurança Social, mas ainda não foi lá. Nem apareceu no Joaquim Urbano, como combinara com um dos voluntários da associação. A vontade também se trabalha. E o propósito da Saber Compreender é precisamente dar uma palavrinha, estabelecer uma relação de confiança, incentivando a sair da rua, articulando com os serviços, encaminhando para o sítio certo, insistindo, se for caso disso.
Aliança com Escola de Hotelaria
A pandemia de covid-19 fez recuar os voluntários que prestam apoio alimentar na cidade, reduzindo as 22 equipas a quatro. O grupo, que também tinha recuado, procurou regressar levando mais do que os materiais de higiene e as merendas que normalmente lhe servem de pretexto para meter conversa. “Estivemos a pensar em conjunto”, diz Cristian Georgescu, que trabalha na Associação de Albergues Nocturnos do Porto e faz voluntariado na Saber Compreender, a que também preside. Lançaram uma campanha para adquirir máscaras, viseiras, luvas, álcool gel e embalagens descartáveis. E Filipe Gaspar, que é actor e ensina Artes na Escola de Hotelaria e Turismo do Porto, desfiou o seu director, Paulo Vaz.
Portugal seguiu tendência internacional na libertação de presos
Portugal seguiu tendência internacional na libertação de presos
“Queríamos ajudar e percebemos que podíamos. Podíamos orientar matéria-prima que estava prevista para alunos e colaboradores”, explicou Vaz. “O que fizemos foi reorientar o consumidor final das refeições e solicitar o apoio de colaboradores internos.” Formaram-se duas equipas de quatro elementos que se revezam para fazer 250 refeições a cada terça e quinta-feira – 100 para distribuir na “Porta Solidária”, na paróquia de Nossa Senhora da Conceição, e 150 para a Saber Compreender distribuir pelos sítios mais esconsos da cidade. “É um misto de sentimentos”, confessa a chefe Isabel Soares. “Acho que qualquer coisa que façamos é muito, mas é muito pouco.”
A equipa entra pelas traseiras da escola. Desta vez, Cristian Georgescu, Filipe Gaspar, Alexandra Fiães, Rui Salvador e Isaque Palmas vão na carrinha emprestada pela companhia Teatro Art’Imagem. Todos protegidos com viseira, máscara, corta-vento, colete reflector, luvas e boa disposição.
O mapa das drogas
É como se pegassem no mapa das drogas do Porto. Começam no Cerco, na zona Oriental da cidade. Param na rotunda, perto de uma casa devoluta usada para consumir. “O que é que eu queria?”, lança um homem numa cadeira de rodas. “Dar um caneco, cair, abrir a cabeça, atirar a culpa à branca e deixar de fumar. É a única coisa que eu preciso de largar. Larguei o pó, larguei a meta. Isto nem branca é. É branca, não é coca!”
Acodem aquela pessoa e outras, inclusive a uma mulher com duas crianças, e logo seguem para a antiga Escola Preparatória do Cerco, onde um homem pernoita e muitos outros fazem o seu consumo. “Está tudo igual a antes disto acontecer”, afirma um jovem. “Pensava que ia haver mais dificuldade em arranjar produto por causa da covid. Eu não noto diferenças. Continua a chegar a todo o lado.”
A equipa atravessa a cidade, em direcção ao Bairro de Francos, já na zona Ocidental. “As ajudas estão a ser escassas”, comenta um consumidor que se dedica a arrumar carros, agradecido pela comida que lhe entregam, bem embalada, ainda quente, com talheres e guardanapo. “As pessoas já tinham medo que a gente se aproximasse e agora muito mais medo têm, porque nós somos da rua.”
Cristian, Alexandra, Rui e Isaque desdobram-se para saudar, servir e confortar quem chega – consumidores com frágeis esquemas de sobrevivência, mas também pessoas apanhadas pelo desemprego, como um homem com dois filhos pequenos que se aproxima timidamente, a mostrar a crise económica que já desponta na crise de saúde pública, deixando inúmeras famílias num aflição para pagar as contas.
Filipe alonga-se ao telefone com a linha de Emergência Social (144) em busca de uma solução para um homem emigrado, que diz ter vindo passar férias a Portugal e ter sido apanhado pelas circunstâncias. Impedido de viajar, ficou na rua. Recaiu. “Não consumo muito mas, devido ao passado, rapidamente fico outra vez viciado. Não quero. Não quero outra vez cair nisto. Preciso de um sítio para ficar até poder viajar.”
Às carrinhas de metadona em Lisboa começam a chegar presos recém-libertados
Às carrinhas de metadona em Lisboa começam a chegar presos recém-libertados
O grupo avança para o Viso. Na estação de metro, no início das escadas, um degrau abaixo de um casal que prepara uma dose, está um homem que parece morto. No fundo, outros homens sentados ou de pé, entretidos no ritual do consumo. Dali, a equipa segue para a Ponte de Grijó. Debaixo dela, descendo por um carreiro, outro frio e fétido sítio das drogas, um quadro de tendas, invólucros de seringas e excrementos.
– Olá! Vimos trazer uma refeiçãozinha quente. Uma massinha, uma sopinha, uma banana. Alguém é servido? – pergunta Rui Salvador, educador de pares que trabalha no Giro Gaia, equipa de rua da Agência Piaget para o Desenvolvimento, e faz voluntariado na Saber Compreender.
– Por mim não quero, obrigadinha – responde um homem.
– Hoje vou jantar a casa. Vá ali ao senhor Ernesto.
Libertação de presos obriga a voltar aos tribunais mais de mil funcionários
Libertação de presos obriga a voltar aos tribunais mais de mil funcionários
– Senhor Ernesto, quer comer?
– Vocês vão ali abaixo, não vão? Eu já vos apanho lá.
Ali abaixo é o Bairro da Pasteleira, um vê-se-te-avias deste que o Aleixo foi abaixo. Há quem faça vida na mata, numa espécie de vala. E, mais abaixo, já no Bairro Pinheiro Torres, não cessa o rodopio. Chegam a pé, de bicicleta, de mota, de carro. Há sempre gente a vender, a capear, isto é, a chamar clientela para o seu traficante, a comprar. A comida é bem-vinda. A fila torta. As conversas poucas. Qualquer coisa pode gerar suspeita.
Está difícil angariar dinheiro, diz este consumidor, que costuma arrumar carros. PAULO PIMENTA
A Saber Compreender ainda passa pelos escombros do Aleixo, pela Ponte da Arrábida, onde outro “cliente” espera, um homem que dorme na berma, e pelo Campo Alegre, onde outro montou uma barraca, até parar junto ao fontanário da Rua Mouzinho da Silveira, onde várias pessoas ergueram tendas. E Vítor não tarda a reaparecer.
Não é que não tenha família, Vítor. “Eu tenho família, mas… tantos anos que estive preso... Se calhar, se batesse à porta, não sei se... Há familiares que não quero estar a... Falei com um ou outro. Ainda me deram um dinheirito para os primeiros dias. ‘Arranja uma pensãozita, vai à Segurança Social’. Não fiquei em casa deles. Estou a sair de uma cadeia… Também é melhor para mim arranjar um sítio. Estive tanto tempo fora.”