7.5.20

Instituições alertam: pedidos de ajuda alimentar dispararam. E vão continuar a aumentar

Joana Gorjão Henriques, in Público on-line

Instituições alertam que há novos perfis de quem recorre a ajuda alimentar, alguns da classe média. Cáritas aumentou 40% as ajudas, Santa Casa também reforçou, na diocese dos vicentinos no Porto triplicaram. Banco Alimentar já apoia mais 14 mil famílias desde pandemia. “Como pais, sentimo-nos impotentes por pedir ajuda. Mas, ao menos, não passamos fome”, diz quem recorreu a banco alimentar. Isabel Jonet avisa: pedidos vão-se prolongar no tempo.

Quando percebeu que o dinheiro não ia chegar ao fim do mês, Marília lembrou-se da Cáritas. Fez uma busca na Internet e enviou uma mensagem àquela instituição, não teve coragem de agarrar no telefone. “Nunca tinha precisado, sempre trabalhei”, diz esta brasileira em Portugal desde 2003.

Nome fictício, Marília, 46 anos, foi dispensada dos dez locais onde estava empregada como trabalhadora doméstica. Está desde 20 de Março em casa, sem receber. Ninguém manteve os pagamentos: “Eu trabalhava e recebia logo a seguir, não tinha contrato”, diz. Só começou a passar recibos verdes recentemente, por isso usufruiu do período de isenção de pagamento à Segurança Social e ficou sem direito a apoios — algo que só esta quarta-feira o Governo anunciou rever com novas medidas, que abrangem quem não fez descontos.

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Tem dois filhos a seu cargo, um de 15 e outro de 20 anos, é viúva, e estava há mais de um ano a arriscar trabalhar por conta própria, depois de ter passado por fábricas, restaurantes e outras empresas em Bragança, onde vive.

Com o rendimento mensal de entre 1200 a 1500 euros conseguiu comprar “um carro velho barato”. Estava a sair-se bem, conta. Agora, sem receber, não teve saída senão pedir apoio à Cáritas. Na semana passada recebeu um cabaz com vários alimentos — massas, farinha, grão, feijão, leite, azeite, salsichas.“Ajudou muito”.

Mas recorrer a esta instituição fê-la sentir “constrangida, em baixo”: “Senti vergonha de pedir. Sempre tive o hábito de trabalhar, de arcar com as despesas. Um imigrante quando sai é para ter uma vida melhor.” É peremptória: “Não quero me habituar, quero ter a minha vida de volta, trabalhar, ir ao supermercado, encher o meu carrinho, trazer para casa as coisas com o sustento do meu suor. Vou fazer de tudo para não precisar.”

Senti vergonha de pedir. Sempre tive o hábito de trabalhar, de arcar com as despesas. Um imigrante quando sai é para ter uma vida melhor
Marília, Bragança
Aos poucos, tem expectativa de ir regressando ao trabalho. Este sábado já ia limpar uma clínica. Também voltaram a chamá-la de uma casa particular. Contou aos filhos que recorreu a ajuda: “Eles têm que estar a par de tudo. A vida não é um conto de fadas”, desabafa.

Sentimento de vergonha
Marília é uma de entre as várias “novas” pessoas que recorreram à ajuda alimentar. Desde a pandemia, que a Cáritas teve um aumento de 40% nos pedidos de ajuda. Os vicentinos da Diocese do Porto (o que corresponde a cerca de 300 paróquias) triplicaram os apoios; a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa também aumentou as respostas e já está a preparar um reforço de mais 50% na distribuição de cabazes. Nas ruas, a Comunidade Vida e Paz tem visto mais jovens do que o normal.

Segundo a presidente do Banco Alimentar, Isabel Jonet, desde o início da pandemia já chegaram à Rede de Emergência Alimentar mais de 14 mil pedidos de agregados familiares — um número que representa cerca de 59 mil pessoas, novos casos de pobreza, provocados sobretudo pelo desemprego de precários e de profissionais liberais, que apenas recebem quando trabalham, disse.

Destes novos pedidos, 74% corresponde a quem deixou de receber rendimentos do trabalho. Gerentes de pequenas empresas, pessoas que trabalham na economia informal são exemplos de quem escapou ao apoio do Estado e Isabel Jonet diz que tem feito pressão junto ao Governo para que os apoie. “Estas pessoas não precisam apenas de alimentos. Mesmo quem está em layoff precisa de apoios”, diz. A presidente do Banco Alimentar avisa: não só os pedidos vão aumentar, como se vão prolongar no tempo.

“Estas pessoas não precisam apenas de alimentos. Mesmo quem está em layoff precisa de apoios". A presidente do Banco Alimentar avisa: não só os pedidos vão aumentar, como se vão prolongar no tempo.
Isabel Jonet, Banco Alimentar
O Expresso noticiou no sábado que o Governo vai distribuir 90 mil cabazes por agregados familiares (eram 60 mil no início do ano), ao abrigo do Programa Operacional de Apoio às Pessoas Mais Carenciadas (POAPMC), pacote europeu com 220 milhões de verbas para usar até 2023.

Nestes novos perfis está “Mónica”, também nome fictício, moradora no centro de Lisboa, 34 anos: pediu pela primeira vez ajuda ao Banco Alimentar há dois meses. Não estava a trabalhar, tem três filhos pequenos a viver consigo (de dez, dois e um ano). Recebe Rendimento Social de Inserção, que não era suficiente para as despesas (paga 400 euros por dois quartos que arrenda), por isso vivia também de biscates na limpeza e na restauração. Sempre que podia, trazia refeições para casa: “Era uma ajuda”. O pai dos filhos está na mesma situação. “Isto apanhou toda a gente de surpresa. E agora passo mais tempo em casa, come-se mais. Vi na televisão que o Banco Alimentar estava a apoiar e telefonei para ir buscar os alimentos.”

Diz que sente “vergonha”, sobretudo quando vê pessoas conhecidas nas filas; depois pensa: estão na mesma situação que ela. “Como pais sentimo-nos um pouco impotentes por pedir ajuda, devíamos ser capazes de pagar as nossas coisas. Mas ao menos não passamos fome. Se não fosse esta ajuda, muita gente estaria numa situação complicada.”

"Mónica" diz que sente “vergonha”, sobretudo quando vê pessoas conhecidas nas filas; depois pensa: estão na mesma situação que ela. “Como pais sentimo-nos um pouco impotentes por pedir ajuda, devíamos ser capazes de pagar as nossas coisas
Dois meses com um ordenado
É justamente deste sentimento que fala Manuel Carvas Guedes, presidente do Conselho Central do Porto da Sociedade de S. Vicente de Paulo: calcula que o número de famílias que apoiam passou de 9 mil para cerca de 24 mil; “muita gente que se vê coagida a pedir ajuda, que nunca pediu, nem precisou”, afirma. “É gente envergonhada que caiu numa situação de necessidade absoluta, perdeu empregos e tem que recorrer ao apoio. Alguns deles nem se querem manifestar, são os próprios vicentinos que se apercebem”, afirma. Entre novos perfis destaca trabalhadores fabris, pessoas que tinham pequenos negócios, proprietários de cafés “que estão há quase dois meses sem entrar dinheiro nenhum.”

Fernanda Amorim, 39 anos, brasileira vai recomeçar a trabalhar a partir de dia 18 de Maio como ajudante de cozinha e quase corresponde a este perfil. Moradora no centro de Lisboa, foi dispensada, não tem contrato; a patroa pagou-lhe o ordenado do mês de Março completo, apesar de ter trabalhado apenas 15 dias. Mas o ordenado de Abril não. Com o marido português desempregado e a fazer biscates, Fernanda Amorim pediu ajuda pela primeira vez. “A minha preocupação era ter duas crianças [10 anos e 16 meses]: o que ia fazer da minha vida. Fiquei agradecida, já faltavam coisas. Recebi o ordenado mas não chegou para tudo.”

Também José, de 42 anos, se encaixa na descrição de quem chega agora aos pedidos de ajuda alimentar. Morador em Lisboa, trabalha para uma empresa que faz os bares de bebidas para os aviões. Não está sem rendimentos, recebe cerca de 66% do ordenado num esquema que diz não layoff. “Como tivemos quebra de produção, a empresa sugeriu fazer férias na primeira quinzena de Abril”. Cortou-lhe o ordenado. Em Maio irá ficar outra semana de férias.

Esta foi a primeira vez que ele próprio pediu ajuda a uma instituição, embora antes já o tivesse feito para entregar comida à mãe dos filhos: “As contas começam a apertar, há rendas, créditos de automóvel, água e luz. O salário não chega”
"José", Lisboa
Esta foi a primeira vez que ele próprio pediu ajuda a uma instituição, embora antes já o tivesse feito para entregar comida à mãe dos filhos: “As contas começam a apertar, há rendas, créditos de automóvel, água e luz. O salário não chega”, explica. “Sempre trabalhei, fui independente. São tempos difíceis, toda a ajuda é bem-vinda. Mas acredito que é uma situação temporária.”

Instituições previnem-se
Não é o que prevê Eugénio Fonseca, presidente da Cáritas, que está “muito preocupado”. A Cáritas criou, aliás, um fundo de 130 mil euros para este período: 100 mil euros para ajuda alimentar e 30 mil para outras necessidades.

É difícil dar um número exacto, mas a estimativa é de que estão a duplicar os apoios: “No ano passado atendemos 100 mil pessoas em 20 cáritas diocesanas; achamos que no final de Maio estaremos com 130 a 140 mil e há indicadores de que estes números vão crescer muito”, adianta. Prevê que as contas que está a fazer — de 130 a 140 mil beneficiários — estejam “aquém da realidade” porque apenas contempla dados das Cáritas diocesanas. A realidade portuguesa pode ter uma expressão muito maior, refere: “Temos que pensar na taxa de afluência ao lay off , no grande número de pessoas que se candidatou aos apoios do IHRU, na taxa de desemprego que vai subir, nas pessoas que trabalham a recibos verdes e irão ter que procurar novos meios de trabalho, nos imigrantes irregulares que trabalham em condições bastante difíceis…”.

Eugénio Fonseca, presidente da Cáritas, está “muito preocupado”. A Cáritas criou um fundo de 130 mil euros para este período: 100 mil euros para ajuda alimentar e 30 mil para outras necessidades.
A Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, onde os pedidos estão a aumentar e não se limitam ao apoio alimentar, relata um cenário parecido. Além dos habituais utentes, há agora “pessoas ligadas a áreas da economia informal ou profissionais liberais que, de um momento para o outro, ficaram sem qualquer tipo de subsistência”, referem.

Também aqui houve aumento foi substancial: em Fevereiro, eram fornecidas 478 refeições, neste momento são cerca de 800. Além disso, a Santa Casa passou a entregar mais 3500 refeições ao fim-de-semana a sem-abrigo e a distribuir 3500 cabazes mensais ao abrigo do Programa Operacional de Apoio às Pessoas Mais Carenciadas — está, aliás, a preparar um aumento de 50 por cento deste item, com os parceiros, o Instituto de Segurança Social e a Cruz Vermelha. Ao todo, a SCML fornece usualmente 14 500 refeições por dia.

Um plano de emergência
Fora das grandes instituições há os circuitos mais pequenos, como a Refood ou a Comunidade Vida e Paz. Hunter Halder, criador da Refood, explica que a base do seu modelo eram os restaurantes, que fecharam, por isso estão a revê-lo para abrangerem “toda a cadeia alimentar”, da agricultura aos supermercados.

Servem 6800 beneficiários em todo o país, cerca de 3 mil em Lisboa. “Seria uma ilusão achar que não vão aumentar os pedidos” de ajuda, afirma.

A partir dos emails que recebe percebe que quem os contacta não tem o perfil de beneficiário tradicional, e calcula que comecem a aparecer profissionais com o perfil idêntico ao que existia durante a crise de 2011, arquitectos ou engenheiros, por exemplo.

Também a Comunidade Vida e Paz, que tem como objectivo estimular os sem-abrigo a sair da rua, sentiu um aumento das situações de carência alimentar. Aliás, esta organização passou a focar-se mais na distribuição de comida, conta Renata Alves, a directora. Às tradicionais ceias, compostas por duas sandes e leite ou iogurte, acrescentam-se agora refeições quentes, com o apoio dos Salesianos. Perceberam que as “pessoas apresentavam uma grande necessidade a nível alimentar” e sentiram-se “na obrigação de ter uma ceia mais rica”, explica.

“No início da pandemia tivemos que aumentar as ceias para o dobro (de cerca de 400 para 800), muito porque outras instituições ficaram sem voluntários. Quando voltaram à rua, fomos reduzindo mas estamos a distribuir agora mais — cerca de 550 por dia, em quatro rotas de Lisboa”, afirma. Chegam-lhes igualmente pessoas com perfis diferentes: quem ficou desempregado, jovens, quem ficou sem recurso para pagar rendas, imigrantes” de várias origens (indianos, africanos dos PALOP e alguns brasileiros), afirma. “Há pessoas que têm casa mas que já não têm recursos e pedem para levar refeições para os filhos”. Tem chegado também casos que não eram comuns: pessoas que vão buscar comida para levar para casa ou então que ficam nos carros a comer.

À Comunidade Vida e Paz tem chegado casos que não eram comuns: pessoas que vão buscar comida para levar para casa ou então que ficam nos carros a comer.
A Comunidade também dá apoio a cerca de 25 famílias, com cabazes, roupa, materiais de limpeza e produtos de higiene, e os pedidos destes beneficiários também têm vindo a aumentar (o processo de inscrição é longo, mas subiu para 30, refere).

Renata Alves prevê que a situação piore. E, com a crise económica que se adivinha, as dificuldades vão acentuar-se. “Percebemos que há pessoas de classe média que neste momento estão sem qualquer tipo de rendimentos. Temo que existam poucas respostas para as necessidades que estão a surgir.”

A previsão do agudizar da situação é comum a todas as instituições com quem o PÚBLICO falou. Eugénio Fonseca defende a criação de um plano de “contingência social”: “É bom que o Governo acorde”, refere. “Tenho receio que não seja tão rápido quanto desejável”.

Eugénio Fonseca defende a criação de um plano de “contingência social”: “É bom que o Governo acorde”, refere. “Tenho receio que não seja tão rápido quanto desejável”.
Embora não tenha dados concretos sobre novos pedidos nas cantinas sociais, Lino Maia, presidente da Confederação Nacional das Instituições de Solidariedade CNIS), também defende a necessidade de implementar um plano de emergência que contemple refeições, distribuição de cabazes, apoio domiciliário a doentes covid-19 e familiares e isenção de pagamento de instituições frequentadas por crianças para pais que estiverem desempregados.

“A nossa preocupação é que os recursos disponíveis não estão a ser suficientes. Se houver um acréscimo exponencial vai ser dramático”, conclui Eugénio Fonseca.