Raquel Albuquerque, in Público on-line
O número de pessoas em união de facto quase duplicou em dez anos, os casamentos desceram 39%. Não se gosta menos, dizem os sociólogos. Conquistou-se foi a liberdade de escolher a conjugalidade
Decidiram ir viver juntos há dois anos, sem que um casamento tenha sido o motivo dessa decisão. Marta Zagalo e José Dias viveram em casas separadas durante o namoro. Uma outra coisa, “que valeu mais do que um contrato de casamento”, motivou a decisão: o nascimento do primeiro filho. “Antes de o Gustavo nascer, éramos um casal de namorados unidos, mas de certa maneira cada um com a sua vida”. Hoje têm uma responsabilidade e vida em comum, mas sem o oficializarem num papel: vivem em união de facto.
Ambos fazem parte da geração que está a gerar a última quebra nos casamentos. Os números mostram-no: houve menos 39 por cento de casamentos em 10 anos (os casamentos católicos diminuíram 61 por cento). E num ano, de 2010 para 2011, houve menos 4 mil casamentos. Ao mesmo tempo, aumentou o número de pessoas em união de facto (cerca de 381 mil em 2001 para 730 mil em 2011) e a percentagem de nascimentos fora do casamento foi de 42,8% em 2011, de acordo com dados do Instituto Nacional de Estatística (INE).
Tanto Marta como José, de 32 e 36 anos, fazem parte da “geração da modernidade avançada”, como refere Maria das Dores Guerreiro, socióloga, professora do Instituto Universitário de Lisboa (ISCTE-IUL). “É a geração que está no ‘mercado matrimonial’”. São jovens com valores modernos, baseados em novos modelos de constituir família. Embora numa mesma geração existam diferentes formas de conceber o casamento, lembra a socióloga, estes são jovens que tendem a apostar na formação individual, não só académica, mas também afectiva. Também apostam numa fase de experimentalismo, em que testam viver a dois, a tempo inteiro ou "numa vivência em part-time, na qual a sexualidade está mais presente”, descreve a socióloga.
Marta e José correspondem a grande parte dessas características, mas também não excluíram a ideia do casamento, desde que seja uma “celebração de vida, como as bodas de prata ou diamante”, não um contrato. “Não faz sentido aplicar as regras de uma relação contratual a uma união entre duas pessoas”, diz José Dias. Para eles o casamento é “um constrangimento”. Para os amigos, dizem, menos um casamento não é nada grave, “significa menos uma festa, uma despedida de solteiro, um presente”. Já para os familiares, sobretudo os de mais idade, “a adaptação à nossa realidade de família não casada foi mais difícil, mas ambas as famílias foram muito tolerantes”.
O que os leva a não casar
Entre as pessoas hoje em união de facto, a maioria tem entre 25 e 44 anos. Os números mostram que 69% das 730 mil pessoas em união de facto são solteiras. A seguir estão as pessoas divorciadas (24%), as viúvas (4%) e as pessoas ainda legalmente casadas (3%), segundo os dados dos Censos de 2011. “O estado civil legal e a vivência em união de facto foram observadas através de duas variáveis independentes”, esclarece o Gabinete de Censos do INE. “As alterações tiveram como objectivo acompanhar as mudanças ocorridas ao nível da conjugalidade”. Quanto ao conceito de ‘união de facto’, é definido pelo INE como “a situação de duas pessoas de sexo oposto ou do mesmo sexo que vivem juntas como casal sem que sejam legalmente casadas uma com a outra”.
Quanto a informações mais detalhadas sobre quem vive em união de facto, o Gabinete dos Censos explica que os questionários “foram objecto de apreciação” pela Comissão Nacional de Protecção de Dados, que “emitiu decisão no sentido de eliminar-se a informação respeitante às variáveis relativas a união de facto, entre pessoas do mesmo sexo e entre pessoas de sexo diferente, por se enquadrarem na esfera de dados sensíveis, designadamente de dados sobre a vida privada”.
Só que o facto de uma união de facto não obrigar a um registo vai tornar mais difícil, por exemplo, acompanhar as dissoluções das uniões. Em termos estatísticos, diz o INE, “o facto de não existir um registo dificulta sempre a observação do fenómeno”.
Assim como se vê o aumento das uniões de facto, vê-se a diminuição dos casamentos. Para além da perda de valor institucional, que Marta e José descrevem, há outros motivos. Se olharmos para a quebra dos primeiros casamentos – entre a geração que está no mercado matrimonial – então é de considerar uma transição para a vida adulta cada vez mais tardia, motivada em parte por uma formação académica mais prolongada ou pela precariedade laboral e o desemprego. Segundo os dados do Instituto dos Registos e Notariado (IRN), a idade média no casamento passou de 32 anos em 2006 para 33 em 2012.
Já as dificuldades financeiras, diz Maria das Dores Guerreiro, não têm necessariamente de desincentivar uma união (embora essa união possa não passar por um casamento). “Imagine um casal que vivia em casas separadas e pagava duas rendas. Podem pensar que, dada a situação, se calhar até era mais rentável ‘juntarem os trapinhos’ e reduzirem as despesas’”. Outra realidade próxima das dificuldades financeiras e do desemprego é a emigração: “se há menos população jovem, também há menos pessoas no mercado matrimonial”.
Por fim, há outro ponto relevante: a liberdade individual. “Se o casamento for entendido como uma perda de liberdade, então estar sem vínculo e sem coabitação plena pode ser uma forma de a salvaguardar”. É disso que Marta e José falam. “Para nós, a liberdade individual é essencial e não queríamos estar sujeitos às regras e formalismos impostos pelo casamento. A união de facto proporciona-nos uma maior liberdade de construirmos a nossa relação à medida dos acontecimentos”.
É esse desenhar de um percurso biográfico autónomo, sem imposições, que a socióloga também salienta hoje em dia. “Não há um destino traçado que passe obrigatoriamente pelo casamento”. Já para Maria João Valente Rosa, demógrafa e directora da Pordata, esta evolução reflecte uma aposta nas relações. “Torna as pessoas mais livres e libertas dos outros, com uma proximidade mais genuína, sem sacrifícios”. Contudo isso “não significa que gostemos menos ou que as pessoas se tornaram mais egoístas, pelo contrário. É uma sociedade mais baseada em emoções onde as relações entre as pessoas aumentaram em qualidade”.
Direito a escolher
Se a liberdade é uma conquista, poder escolher é outra. Para Anália Torres, socióloga e professora no Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas (ISCSP), é isso que está em causa quando se fala do aumento dos casamentos homossexuais e da diminuição dos casamentos heterossexuais. “Não há paradoxo nenhum entre eles. O que está em causa é o direito a poder optar e os homossexuais não podiam”.
Oscar e João Pinto, quando pensaram em casar, já o podiam fazer. Casaram-se em Portugal, em Julho de 2012. Foi um dos 295 casamentos entre pessoas do mesmo sexo no ano passado (95 entre homens e 200 entre mulheres), segundo os dados do IRN. É em Paris que vivem hoje, onde ainda se assiste à luta pela legalização do casamento homossexual. Se não fosse a falta de trabalho e as condições diferentes que conseguem ter na capital francesa, viveriam em Lisboa.
Oscar, 27 anos, nasceu em Taiwan e João, 29, é português. Conheceram-se num site de encontros na Internet e durante três anos mantiveram um relacionamento online. Falavam diariamente pelo Skype e contavam um com o outro para partilhar o que quer que fosse. Em 2010, Oscar foi de Taiwan para Paris, para estudar, e tomou a decisão de comprar um bilhete de avião e vir a Portugal. Confessam terem receado desiludirem-se quando se encontrassem pessoalmente. “Mas já não havia volta a dar”, diz João.
Encontraram-se pela primeira vez em Lisboa, continuaram em contacto à distância e, um tempo mais tarde, Oscar regressou a Lisboa, onde ficou durante um mês. “Desde essa altura senti que ele era a pessoa certa. Não nos pareceu nada estranho, era a continuação do que tínhamos”, conta Oscar, em inglês, embora diga já começar a perceber algumas coisas em português. Durante esse mês, estiveram a viver juntos e a “partilhar um quarto pela primeira vez”, acrescenta João. Falar em casamento começou por ser uma brincadeira. “Nunca tínhamos pensado a sério no assunto, falávamos disso a gozar".
Não foi por uma questão prática que se casaram, mas pelo valor emocional que vêem na confirmação de um compromisso. Quando a decisão se tornou séria, quiseram que o casamento fosse só com a família. “Agora temos o compromisso de nos mantermos juntos. O casamento deu-nos perspectivas mais seguras para fazer com que funcione”, diz João. Para Oscar, o casamento passou-os da fase em que “eram só os mundos de nós os dois” para a fase em que as famílias também fazem parte.
Há outros casos em que as famílias também têm peso na decisão da conjugalidade. Assim é para Dipti Pancha (26 anos) e Filipe Rebolho (35), com casamento marcado para o próximo mês de Março. Nunca na família de Dipti alguém se casou com uma pessoa de outra religião: ela foi a primeira a fazer essa escolha. É indiana, de religião hindu, nascida em Maputo. Veio com nove meses para Portugal, com os pais e os dois irmãos mais velhos. Ao contrário dela, os irmãos, que hoje vivem em Inglaterra, tiveram mais contacto com a família em Moçambique e por isso também tiveram mais influência da religião. “A religião ainda é uma coisa presente nos meus pais, a mim já não me diz tanto. Não como carne de vaca, por exemplo, porque a vaca é sagrada para os hindus, mas não sou praticante”. Isso nunca foi um problema para a família. “A crença é de cada um. O meu pai é bastante aberto, acha que a crença não deve ser impingida a ninguém”.
É Dipti quem conta a história dos dois: conheceram-se na faculdade, começaram a falar na Internet e há um ano Filipe pediu-a em casamento. Quando foi conhecer a família do namorado, que é católico não-praticante, sentiu-se bem aceite. “Não tiveram esse preconceito, acho que lhe podemos chamar preconceito. O pai do Filipe não viu problema em saber que o filho ia casar com alguém que não era cristã”. Já a fase em que Dipti teve de contar ao pai, acrescentando que ia deixar Lisboa e o trabalho para viver para perto de Mirandela, onde está o namorado, não foi fácil. “Tive receio, mas ele acabou por aceitar. Acho que também já estava à espera que não me casasse com um rapaz indiano”.
Dipti conta que a irmã mais velha já lhe tinha dito que dificilmente a via casada com um homem indiano. “São mais controladores em relação à mulher e, por exemplo, não aceitam relações sexuais antes do casamento. Em geral são extremamente fechados e tem uma forma de pensar em túnel”. Ter sido criada e educada em Portugal fê-la sentir-se mais próxima da cultura europeia e ocidental do que da indiana.
Só que nem sempre tinha pensado em casar. Ao mesmo tempo, não se imaginava numa união de facto. “Tenho amigas a pensar o contrário, mas acho que uma união de facto é uma relação um bocadinho frágil e isso nunca me atraiu. Acho que há mais segurança num casamento, até mesmo quando se fala em filhos ou questões patrimoniais”.
É a questão patrimonial que a advogada Rita Sassetti, especialista em Direito da Família, sublinha como a principal diferença em relação a um casamento. “Quem vive numa união de facto, ou seja, com coabitação seguida de mais de dois anos, tem direitos, mas não é herdeiro. Estando casado, passa automaticamente a ser herdeiro”.
Para lá do património, Dipti põe à frente do casamento a felicidade. Falar em divórcio numa família indiana e hindu? “É um tabu, para ser sincera. As pessoas preferem ficar casadas e serem infelizes, do que enfrentar a vergonha de um divórcio”. Para a mãe, nascida e criada na Índia, um divórcio é sinónimo de estragar a vida. “Eu preferiria enfrentar um divórcio a ser infeliz. É a minha vida”.
Para Marta e José o casamento não é prioridade, mas também não vêem fragilidades numa união de facto. Para Oscar e João poderem optar por casar foi importante: é nesse compromisso que vêem mais segurança na relação. Já o casamento civil de Dipti e Filipe, daqui a menos de dois meses, prova que a religião e a cultura não são obstáculos. Como sublinha o psicólogo Manuel Peixoto, também a noção de um ‘bom casamento’ mudou. “Antes, a questão principal era o suporte económico, o bom casamento era esse”. Hoje, o bom casamento dependerá principalmente do que cada um quiser para a sua vida.