in Jornal de Notícias
A crise financeira está a levar consumidores portugueses a usarem menos drogas recreativas e mais das que aliviam o sofrimento, como a heroína e o álcool, alertou o presidente da Agência Europeia de Informação sobre Drogas.
"Aquilo que nos caracteriza, e a alguns dos países que enfrentam dificuldades semelhantes às nossas, é algum decréscimo nas substâncias mais associadas ao ambiente recreativo e algum recrudescimento do uso daquelas que estão mais ligadas ao alívio do sofrimento", afirmou João Goulão, em entrevista à agência Lusa.
Entre as drogas que voltaram a registar usos elevados estão a heroína e o álcool, substância que é, "tradicionalmente na nossa cultura, de fácil recurso e consumida com este objetivo (de aliviar o sofrimento)", avançou João Goulão, em declarações à Lusa, à margem da apresentação esta terça-feira do Relatório Europeu Sobre Drogas, em Lisboa.
Admitindo que "estas flutuações ainda são discretas", o presidente da Agência Europeia de Informação sobre Drogas (EMCDDA - Observatório Europeu das Drogas e da Toxicodependência na antiga denominação) lembrou que o impacto da crise financeira e do aumento do desemprego ainda não está explanado no novo documento, mas explicou que os sinais já são visíveis na sociedade portuguesa.
"A cocaína, que no nosso país estava em crescimento, parece ter entrado numa fase de planalto, a canábis continua a ser de longe a substância ilícita mais consumida, a heroína, que estava num franco declínio, está também num planalto e com alguma tendência a subida", resumiu.
Esta tendência de crescimento dos utilizadores de heroína é notada, de acordo com o mesmo responsável, entre aqueles que já foram viciados nesta droga.
"Felizmente temos uma diminuição sustentada do número de novos utilizadores, em particular naquilo que diz respeito à heroína. São raros os jovens de mais tenra idade que entram nesse tipo de consumo, aquilo que temos são pessoas mais velhas, algumas delas com passados de consumo e que, nas atuais condições, acabam por recair", explicou.
No caso dos mais jovens, a heroína não é a opção tomada, até porque esta droga "se auto-desprestigiou dado os efeitos muito visíveis de degradação que provocou em gerações sucessivas, mais velhas", referiu João Goulão, sublinhando que, entre os mais novos, as preferências passam pela canábis, pelas novas substâncias psicoativas e pela cocaína.
Uma outra consequência da crise financeira que afeta os portuguesas é aquilo que João Goulão chama de "adictofobia".
"Temos gozado, ao longo da última década ou talvez mais, de um consenso alargado na sociedade portuguesa relativamente à bondade das políticas que temos prosseguido relativas à toxicodependência", lembrou, sublinhando que este cenário está a mudar.
"Agora que outros grupos populacionais começam a sentir carências, receio que haja - e há alguns sinais nesse sentido - um regresso [da ideia] de que isto não é, de facto, uma doença como as outras, que é uma doença autoinfligida, que eles são doentes porque querem [e que, por isso] morram aí. [Pensa-se que] não vamos gastar recursos que fazem falta a outras áreas da sociedade", alertou o presidente do também observatório das drogas e da toxicodependência.
"O meu receio é que, em termos civilizacionais, a forma como este esforço tem sido encarado pela população possa ter algum retrocesso", reforçou, adiantando estar a ser já preparada, em Estrasburgo, uma conferência internacional "para debater este aspeto, e outros concomitantes, do impacto da crise".