23.5.13

Tráfico. Em Portugal também há agências de trabalho falsas e mulheres vendidas

Por Marta F. Reis, in iOnline

Três anos de investigação revelam casos dramáticos como rapto de sem-abrigo e expõem preconceitos perigosos, como só acontecer aos outros

Aos 20 anos, J. preparava-se para uma aventura perigosa. Profissional do ping-pong, foi contactado pela uma agência chinesa que lhe prometia um salário a léguas do que poderia almejar cá enquanto treinador. A marcação da viagem, paga pela alegada empresa, coincidiu com uma das acções de formação realizadas pelo Instituto de Estudos Estratégicos e Internacionais (IEEI) no âmbito da investigação de três anos que culminou ontem com apresentação de dados inéditos sobre a dimensão do tráfico humano em Portugal. Cláudia Pedra sensibilizou técnicos do programa Escolhas, do Alto Comissariado para a Emigração, que por sua vez apanharam J. antes de se meter no avião que o levaria para um campo de trabalho do outro lado do mundo. No espaço de dias de troca de informações e parceria activa, o que este núcleo de investigação diz ser a principal lacuna do combate ao tráfico humano em Portugal, perceberam que seria um embuste e dissuadiram o jovem.

Se este caso foi despistado, muitos são os que passam todos os filtros que existem em Portugal e incluem planos estratégicos e um observatório na tutela do Ministério da Administração Interno.

O estudo, que teve um financiamento da UE na ordem dos 300 mil euros, estima que as vítimas de tráfico humano em Portugal serão o triplo das estatísticas oficiais, entre 250 e 270 por ano quando o máximo de potenciais casos sinalizados em Portugal foram 125 no ano passado. Mas além destas há mais, porque o país também é usado como ponto de passagem. Na última década a Organização Internacional para as Migrações (OIM) sinalizou 96 vítimas que passaram por Portugal na mão de traficantes ou angariadores sem que ninguém tenha dado por isso.

Num auditório da Fundação Calouste Gulbenkian onde estiveram apenas 20 pessoas, os investigadores do IEEI – que entretanto fundaram uma associação independente que irá focar-se apenas no combate ao tráfico (Rede Internacional de Estudos Estratégicos) desenharam uma realidade que os próprios descrevem como “assustadora” e onde pesam estereótipos mas também preconceitos.

Ao longo da investigação, na qual entrevistaram 115 vítimas, descobriram que em Portugal há provas de todos os modus operandi descritos no tráfico humano a nível mundial. Se dominam as vítimas de exploração sexual e laboral, encontraram indícios de tráfico de crianças para adopção ilegal mas também de tecidos e óvulos, nada disto registado em termos oficiais.

O perturbador, diz Cláudia Pedra, é que alguns casos permanecem, como é o caso de agências de recrutamento falsas sediadas em Portugal ou do “negócio paralelo” da exploração sexual, em que as vítimas são vendidas a outros traficantes e ficam a dever-lhes o valor da transacção. Os valores apurados superam os 25 mil euros, que as vítimas – na maioria das situações mulheres – têm de pagar através da prostituição. Um dos casos mais surpreendentes levou-os a São Teotónio, Odemira. A ligação foi Sunan (nome fictício), de 29 anos, natural da província de Phuket, na Tailândia. Foi uma das vítimas entrevistadas através de uma ONG, mas perceberam que não era o único. Concorreu a um emprego numa agência de trabalho temporário que dava pelo nome de Agência de Recrutamento de Tailandeses S.A. e oferecia 500 euros por trabalho numa fruticultura. Trabalhou 16 horas por dia, por 100 euros mensais. Cláudia conta que os contactos internacionais revelaram um esquema montado a partir de Israel, e que em Portugal é gerido por portugueses, belgas e israelitas. “Há um ano e meio conseguimos fechar o escritório em S. Teotónio, mas existem mais. E como estas agências poderão existir outras.”

Ainda nos casos mais inesperados, chegaram também à fala com dois sem-abrigo que relatam um rapto idêntico, um em Aveiro e outro em Lisboa. Ambos foram traficados para explorações agrícolas em Espanha, espancados durante a viagem e agrilhoados para não fugirem chegados ao local de destino.

Para os investigadores, três anos de trabalho – onde ouviram também ONGs e autoridades oficiais – acabam por traduzir-se em múltiplas recomendações, todas importantes. Descobriram 37 rotas que trazem ou levam pessoas de Portugal para exportação, alertando para o peso crescente das rotas marítimas – por exemplo vítimas escondidas em contentores – e que em Portugal não estão acauteladas. Depois, há detalhes onde seria importante haver um reforço da colaboração entre países. Deram por exemplo o caso de mulheres brasileiras traficadas para exploração sexual, que geralmente voam do Brasil para Madrid e depois cruzam a fronteira por terra. Por outro lado, revelaram, há um crescente envolvimento de alegadas agências de viagens no tráfico para exploração sexual ou laboral. Não encontraram nenhuma a operar a partir de Portugal, mas sinalizaram casos de vítimas que chegaram ao país por essa via. Geralmente, o modus operandi passa pela venda de uma viagem turística a um estrangeiro, com marcação de hotel e voos. Chegados a Portugal, são confrontados com uma factura dezenas de vezes superior. Na ausência de dinheiro para pagamento, as vítimas são forçadas a trabalhar para a agência até cobrirem a despesa.

Para os investigadores, uma das mensagens essenciais – sobretudo em período de crise – é que as formas de recrutamento são cada vez mais na base de promessas falsas do que da violência e em mais da maioria dos casos os angariadores são pessoas próximas. “Uma das vítimas que encontrámos foi uma jovem angolana que casou com um português em Angola e foi trazida para Portugal para exploração sexual”, alerta. “O mais grave é que o perfil das vítimas de tráfico ainda é muito estereotipado. Pensa-se que é uma coisa de terceiro mundo, de pobres.”

Entre as mudanças que defendem está a criação de mais centros especializados de apoio às vítimas – actualmente só existem um no Porto com 10 vagas só para mulheres e só no ano passado houve 36 pessoas, a maioria menores, a precisar de acolhimento. Mas acima de tudo, dados que não são residuais impõe uma mudança de paradigma, com a passagem da tutela desta área do MAI para o Ministério da Justiça, pondo-se a tónica na defesa dos direitos humanos e não na punição dos traficantes. “Hoje os processos são por vezes desumanos. Foi público o caso de um jovem do Norte que foi levado para Espanha para ser explorado sexualmente e esteve cinco meses naquela situação para as autoridades terem provas suficientes. Isto não pode continuar”, apelou Cláudia Pedra.