25.5.13

65 há uma luta escondida contra a solidão

Por Filipe Morais, in iOnline

Lisboa tem das maiores percentagens de idosos isolados no país. Muitos com reformas baixas e casassem condições

Carlos Santos tem 81 anos. Mora sozinho no Poço do Bispo, Lisboa, num prédio antigo com uma porta de entrada que dá para a estrada onde diariamente passam centenas de pessoas na carreira 728 da Carris. O prédio tem corredores largos, que os moradores usam para estender um pouco as suas casas e onde deixam estendais de roupa ou brinquedos de crianças, num labirinto húmido e escuro com umas grades no chão que não inspiram muita confiança e pedem para ser contornadas. A porta da casa de Carlos é verde como todas as outras e tem um autocolante com a bandeira nacional. Carlos vive ali desde que nasceu, e praticamente sozinho desde os nove anos de idade. A mãe morreu quando ele tinha essa idade e ficou a tomar conta de si e do irmão mais velho. "Ele tinha um problema de cabeça e não podia estar sozinho, e então tive de ser eu a tomar conta dele", conta-nos com um quase sorriso, enquanto recorda o irmão e aponta para a única fotografia que tem com ele, em cima de um armário. Esteve para casar quando tinha os seus 20 anos, mas pôs como condição continuar a viver com o irmão mais velho. A namorada não aceitou e ficou tudo por ali. "Nunca mais quis mulher. Para viver, pelo menos. O meu irmão era da minha família e não o podia deixar sozinho", diz. O irmão morreu quando Carlos estava nos 50 anos e desde aí que vive sozinho.

Carlos Santos é um dos milhão e 200 mil idosos que vivem sozinhos em Portugal. O número foi identificado no último Censos, que mostra que 60% da população idosa vive sozinha ou na companhia de outros idosos. O Alentejo é a região que tem a maior percentagem de idosos que vivem sozinhos: 22% da população com mais de 65 anos está nestas condições. Mas só em Lisboa a percentagem de idosos a viver sozinhos é a mesma: 22% dos idosos da cidade vivem sozinhos, e muitos sem apoios.

Carlos Santos tem apenas a sua reforma de 300 euros e desde há uns meses tem uma pequena ajuda da Junta de Freguesia de Marvila, que lhe leva alguma comida. As funcionárias da junta ajudam--no agora também a organizar os medicamentos, que estão arrumados pela ordem por que são tomados, e a saber o que está nas cartas que recebe. Carlos admite que não sabe ler nem escrever, "só dá para identificar os números e saber qual é o autocarro de que preciso para ir ao médico ou tratar de alguma coisa".

Apesar de viver sozinho, Carlos Santos nunca deixou de querer ter a sua vida. Faz questão de ter tudo organizado e de o mostrar: as gavetas da cómoda com a roupa que ele próprio passa a ferro, os lençóis noutra gaveta. Na cozinha está tudo o que precisa para cozinhar as suas refeições e aproveitar a água da única torneira da casa para usar na retrete ou para lavar a louça. Todas as rotinas estão bem treinadas e Carlos faz questão de as manter.

Para passar o tempo, diz-nos que vai falar um pouco com "alguns rapazes da minha idade" ali ao largo, ou até ver um jogo do Oriental de Lisboa. "Depois almoço e janto sempre aqui, e vejo a telenovela à noite e deito-me cedo." Carlos vive sozinho, mas não está completamente isolado. Na parede da sala, onde se pode ver o Tejo, tem dezenas de fotografias da sua história e de algumas crianças: "São os meus netos. Não são meus, mas é como se fossem. São os filhos de uma rapariga amiga, que é como uma filha, e aos sábados vou sempre jantar com eles." Não o diz, mas percebe-se que é o ponto alto da semana. "Não me sinto sozinho. Só à noite, quando me ponho a pensar, mas depois sei que tenho de não fazer isso e penso noutras coisas. Durante o dia, nem me lembro e pronto." As fotografias na parede mostram que a sua vida foi mais longe do que o largo do Poço do Bispo. Carlos foi ajudante de motorista e viajou muito nos camiões. Trabalhou numa fábrica e, já reformado, ajudava num restaurante. Hoje aproveita para ter uma vida mais calma e, apesar de não saber ler nem escrever, está atento: "Vejo os noticiários e isto está tudo mal. Têm de se preocupar mais com as pessoas", diz. Não esquece as críticas ao governo e garante que vai sempre votar: "Isso não falha. E é sempre no PCP."

Em Campolide, a poucos metros das Amoreiras, Alice Leitão mora sozinha num primeiro andar. A fachada do prédio parece em bom estado, mas basta abrir a porta para perceber que há coisas prontas a cair. Nas escadas, os canos estão à mostra. Alice Leitão recebe-nos à porta, magrinha, mas bem-disposta, apesar de "não gostar de falar para jornais". Foi viver para aquela casa com cinco anos e mora ali há 76. Desde que morreu o marido, mora sozinha, já que o filho e o neto afastaram-se e não têm ligação. "Não sei bem onde mora, ele não quer saber de mim e nem quando estive no hospital lhe disse nada. Eles não ligam mas, de vez em quando, eu ainda telefono." A casa de Alice tem dois quartos, uma sala e uma cozinha ensolarada. Mas a casa de banho é a sua grande preocupação: "Aquele tecto está ferrugento e pode-me cair em cima a qualquer altura." O tecto está escuro com a humidade e o travessão de ferro não a deixa descansada. Explica que, para tomar duche, tem de pôr um alguidar fora da porta e tomar banho numa marquise que dá para a cozinha. "Senão ainda me acontece alguma coisa aqui sozinha", refere. Alice Leitão queixa-se da falta de força nas mãos que já não lhe permite cozinhar. São os serviços da junta de Campolide que lhe levam comida já preparada, duas vezes por semana. Apesar de isolada, diz que tem consigo "as pessoas amigas da junta. Ajudam-me a limpar a casa e a fazer a cama. De resto, vou fazendo o que posso". Alice não se dá muito com os vizinhos e só sai de casa "para ir ao médico ou quando é preciso, se me vierem buscar".

Ouve a missa em casa e durante os dias tenta descansar, ler e "ouvir a televisão. Por causa do glaucoma, não consigo ver muito bem". Não costuma falhar os noticiários, mas apressa-se a dizer que não se interessa pela política. "Mas quero saber como andamos. Isto assim está mal. Vai dar buraco e assim não chegamos a lado nenhum", avisa.

A situação de Alice é uma das visadas pelo programa Apoio 65 - Idosos em Segurança, da PSP e GNR. Só na área de Lisboa, a PSP tem 259 polícias em Equipas de Proximidade à Vítima, o tal policiamento de proximidade. Em 2011 houve 3739 idosos sinalizados a receber este apoio na área do Comando de Lisboa da PSP, e em 2012 foram controlados 3282. Em situação de risco estavam 825 idosos identificados e havia 1208 casos que ainda não tinham sido sinalizados na área de Lisboa. Em todo o país, a PSP tem quase sete mil idosos controlados e perto de 1500 em situação de risco.

Na Serafina, a uma dezena de metros do Aqueduto das Águas Livres, Eulália Julieta Matias mora numa casa da câmara. Avisam-nos antes que a casa está em mau estado e até já foi inspeccionada pela Protecção Civil. A realidade é pior do que o aviso. A fachada, estreita, parece feita de cartão e está a cair. Eulália aparece à janela, sorridente e com energia. Ao abrir a porta, pede para não ligarmos à arrecadação de baixo e leva-nos a subir umas escadas, íngremes e frágeis e com a tinta azul das paredes solta, para nos mostrar em que situação vive. Eulália vive sozinha desde que o seu "velhinho" morreu, há quatro anos. A casa era dele e mostra sinais da vida que já não tem: há armários cheios de pratos, copos, talheres e canecas com sinais de não serem usados há muito.

Julieta, como é tratada no bairro, faz por passar pouco tempo ali, já que ajuda outra senhora da sua idade. "Vou a casa dela ajudá-la, e normalmente almoço e janto lá. Às vezes fico lá a dormir, ou então venho aqui para casa, mas isto está em más condições. Já viu ali o tecto a cair?" Abre a porta de outro quarto, para nos mostrar um buraco com um metro de diâmetro nas telhas, e um alguidar em baixo para apanhar a água da chuva. O chão do quarto onde dorme e tem a televisão abana a cada passo, os tapetes estão húmidos. Eulália conta-nos que quer sair dali e que a reforma até dava para pagar uma renda até 50 euros. "Já pedi uma casa e até estou disposta a pagar. Não pode ser muito, mas posso pagar qualquer coisa. Precisava era de sair daqui", da casa onde vive há uns 15 anos. Está há três anos à espera de uma casa da Gebalis. Antes vivia com o marido, pai dos três filhos e com quem tem um historial de violência doméstica. Só se dá com o filho mais novo, que vê de vez em quando. Diz que a filha já lhe bateu ali mesmo, no bairro, e não sabe do filho mais velho, que até "tem uma pastelaria. Uma vez pedi-lhe para me ajudar com uns 50 euros e desligou--me o telefone. Desde aí que não sei dele". Apesar disso, é o número dele que tem apontado a lápis, na porta de um armário.

Eulália Julieta Matias não tem problemas em dizer que trabalhou em limpezas. Num cabeleireiro, num alfaiate e numa loja de fotografias, mas o tempo de que gostou mais foi quando trabalhou numa república de estudantes em Coimbra, quando tinha 21 anos: "Tratavam-me muito bem e brincavam muito comigo. Gostava muito de lá estar." Agora passa os dias em casa da senhora de quem trata, que "é como uma irmã. Ajudou-me muito e agora ajudo-a eu. E como ela tem melhores condições, de vez em quando fico por lá". Da junta de Campolide chega algum apoio, com comida, normalmente às quintas-feiras. Do resto trata sozinha: lava a roupa e estende-a na casa de banho, organiza os seus medicamentos e idas ao médico. Diz que deixou de frequentar a igreja do bairro por causa das conversas. "Prefiro ver a missa em casa e estar sozinha. Aqui ou lá na outra casa. Estamos as duas, mas estamos bem."

Das várias juntas de freguesia que lidam com a população mais idosa, todas dizem que há mais mulheres a viverem sozinhas do que homens. Fernando Carvalho é um deles. Mora sozinho na Quinta do Ferro, a pouca distância do Panteão Nacional. A porta de entrada tem duas campainhas, a de Fernando é a da casa de baixo. Elisabete, da junta de São Vicente de Fora, conhece-o bem e acompanha-nos. Chama por ele e avisa antes para o estado da escada, enquanto Fernando Carvalho abre a porta, calmo e bem vestido, com a vizinha de cima ao lado. Convida-nos para descer as escadas, encostados à direita e com cuidado para o corrimão não cair.

A casa tem um pequeno pátio, com a cozinha e a casa de banho no exterior, mas as duas divisões são muito pequenas e não têm água. A casa só tem uma torneira que Fernando gere para tudo. A porta de entrada dá para uma sala, escura, com uma mesa, um móvel, um sofá e a máquina de lavar roupa, para aproveitar a água. O quarto da esquerda era do enteado de Fernando, que morreu com uma overdose. À direita está o quarto onde dorme. A cama ocupa quase todo o espaço e as paredes estão manchadas e literalmente a cair da humidade. Um pouco por todo o lado estão fotografias da mulher, que morreu há três anos: "Isto é tão difícil de cá chegar que o INEM não dava com a casa e os bombeiros não conseguiam descer com a maca." Elisabete diz-nos que, até há pouco tempo, Fernando andava de luto. De cada vez que olha para uma fotografia da mulher, Fernando parece pronto a chorar.

Desde que é viúvo que reorganizou a sua vida. Elisabete diz que ele é persistente e vai com frequência à junta e à câmara de Lisboa pedir apoios ou que lhe reparem a casa, que é alugada. A insistência já lhe garantiu a limpeza da mata em frente de casa e algumas melhorias na casa. A reforma de 200 euros mais a pensão da mulher não lhe permitem investir na casa. Mas chama a atenção para o portão das traseiras: "Fui eu que o fiz, tinha de estar aqui mais seguro."

Hoje em dia conta apenas com algum apoio da junta e da enteada, que mora em Algueirão. A distância não é muita, mas é suficiente para que não estejam juntos com muita frequência. Fernando Carvalho vive sozinho, mas diz que não se sente isolado: "De manhã levanto-me e trato dos meus passarinhos. Depois vou aos Ases [de Santa Clara] ou à junta, e à tarde venho para aqui, descansar e ver televisão." Os problemas de saúde têm sido encarados de frente: "Há um ano fui operado ao ouvido e depois à próstata. E quando saí da tropa tive de pôr uma sonda na cabeça." Não explica bem como, mas diz que a enteada o foi acompanhando nestas situações. Falámos a 13 de Maio, com as imagens do Santuário de Fátima na televisão, e Fernando aproveita para sublinhar, com orgulho, a forma como segue a religião: "Sou uma pessoa de fé, sou muito religioso", diz.

A religião está também muito presente no dia-a-dia de Lisete Alves, que mora apenas umas ruas mais acima. A casa tem melhores condições, mas os tectos falsos estão em mau estado e o chão da casa está inclinado. Lisete só pede ajuda para reparar esses pontos e a escada da casa, alugada com uma renda de 25 euros por mês. Viúva, vive sozinha, mas é das pessoas menos isoladas, já que os dois filhos e o neto são contactos permanentes.

Tal como Hortênsia Gomes, que mora em Chelas. O filho vai passando com frequência lá por casa mas, sem emprego certo, não a pode ajudar muito. Hortênsia Gomes, de 69 anos, vive sozinha desde que o marido foi para um lar por ter Alzheimer, e só para o lar são 700 euros das reformas. De repente, viu-se com pouco mais de 300 euros por mês: "Deixei de ter dinheiro para os comprimidos e de poder tomar tudo. A Santa Casa ajuda pouco", conta-nos, com voz chorosa e preocupada com o seu futuro, que não será o que pensava quando veio de Gafanhão, Castro Daire, para Lisboa.

Por sua vez, Carlos Silvestre sempre viveu em Lisboa. Dos idosos isolados com que falámos, era dos que tinha piores condições de vida. Aos 72 anos vive na casa que era da família, mas actualmente tem apenas um quarto para si, sem luz ou água. Um incêndio, há uns anos, destruiu o interior do prédio de três andares e Carlos só consegue ocupar um quarto, com um cobertor a tapar a janela. A um canto tem a cama e à frente um cabide com umas camisolas penduradas. Um pequeno armário dá-lhe para guardar algumas coisas e ao lado da cama mantém um rádio com o qual tenta ouvir os relatos. Tem um balde para as suas necessidades, que despeja depois para uma fossa.

Carlos é conhecido no bairro como o Surdo. Conta a sua história de vida com um sorriso, apesar das dificuldades: "A reforma é de 300 euros, dá para ir comendo aqui nos Ases ou nos cafés, para uns cafés e umas cervejinhas." Trabalhou na estiva, numa casa de candeeiros e numa loja de anúncios luminosos. Tem uma filha, que mora ali em frente, mas com quem evita contacto. A mulher morreu quando a filha tinha um ano: "Fiquei sem condições para a criar e tive de a entregar à minha irmã mais velha, e depois ela foi para a Casa Pia. Eu, agora, não tenho ninguém que trate de mim. A minha mãe ainda me fazia o comer e fazia-me companhia, mas morreu há três anos." Carlos Silvestre conta com apoio da junta para o levar "aos hospitais, para fazer o IRS e para lavar a roupa na lavandaria e tratar dessas coisas, quando é preciso".

Duas ruas ao lado, ainda na Quinta do Ferro, mora Maria Assunção Barros, conhecida ali como Maria Preta. Tem 87 anos e está acamada. Conta com a ajuda da vizinha da frente, que a lava todos os dias e lhe trata da comida, que chega numa marmita. "Sou de Cabinda. Casei com 20 anos e vim para cá, porque o meu marido trabalhava nos barcos. Agora ele 'foi para a ilha' e só tenho os meus filhos", que moram na mesma casa, mas não terão emprego e não tratam da mãe.

Assunção Barros caiu na cozinha e teve de ser operada. Foi perdendo mobilidade e, hoje, quase não sai da cama. Conta ainda com a ajuda de outra vizinha, que tem um café, para lhe tratar de todos os medicamentos: "São mais que minhas mães", diz, entre o choro e os sorrisos de quando recorda o emprego no Tribunal Militar e o carinho com que era tratada pelos colegas. "Agora só quero ir para a ilha também. Mas enquanto formos vivos, temos de tratar uns dos outros".

Segundo dados do Instituto Nacional de Estatística, em 2050 um terço da população nacional será idosa. Hoje, 20% dos portugueses têm mais de 65 anos e um estudo da Deco revela que um milhão de idosos não consegue ou tem dificuldades em comer, andar ou cuidar da higiene.