8.2.21

Agora com Internet e computador, Samuel já pode fazer mais de três fichas por dia

Cristiana Faria Moreira (Texto) e Nuno Ferreira Santos (Fotografia), in Público on-line

Depois de um ano em que muito ficou para trás, Samuel tem finalmente um computador e Internet para ter aulas à distância, ainda que isso vá ser um grande desafio para ele e para a mãe. Em Lisboa, há alunos que vão recomeçar a escola sem o equipamento prometido, que não está a ser distribuído de forma uniforme em todas as escolas e agrupamentos.

Se Samuel pudesse decidir, o mundo seria feito de Matemática. Contas de somar, subtrair, multiplicar ou dividir a revestir as paredes de todos os prédios, numa espécie de quebra-cabeças constante. “E nós podíamos desenhar com uma caneta o resultado das contas.” E, quem sabe, cantarolar a cantiga que a mãe lhe ensinou para ajudar nas contas de Matemática. “Sete e sete são 14 com mais sete 21, tenho sete namoradas e não gosto de nenhuma.”

Samuel tem oito anos e anda no 2.º ano na Escola Básica Luísa Ducla Soares, no centro de Lisboa. É também naquela zona, a escassos metros da Avenida da Liberdade, que vive com a mãe numa casa pequenina, com paredes enegrecidas e tomadas pela humidade, onde, normalmente, não tem computador nem Internet. Foi assim que passou os últimos meses do ano lectivo passado. Sem aulas online, só com as fichas que ia fazendo com a ajuda da mãe e com o “Estudo em Casa” na RTP. Foi assim que aprendeu a fazer contas, mas deixando o Português um bocadinho mais para trás.

O regresso às aulas esta segunda-feira será, desta vez, diferente: já há lá em casa um computador com Internet para ajudar ao estudo. Agora, a preocupação da mãe, Ana Paula Carvalho, é outra: “Se a gente mal tem dinheiro para sobreviver, e se ele me estraga o computador, como é que vou ter dinheiro para pagar?”

Quando, em Março do ano passado, as escolas encerraram para tentar controlar o “bicho” foi “fixe porque assim já não tinha de fazer trabalhos”, recorda Samuel. Sem computador e sem Internet, mãe e filho acabaram por ficar votados à sua sorte, sem grandes contactos com a professora. A solução era ir acompanhando as aulas do “Estudo em Casa”, na RTP, mas depressa Samuel sentiu que eram difíceis de acompanhar. “Eles falavam muito rápido e eu sentia-me para trás.” Acabou por firmar “um contrato” com a mãe: fazer “três folhas por dia,” que é como quem diz três fichas — uma de Português, uma de Matemática e outra de Estudo do Meio — dos cadernos de actividades que tinha lá por casa.

Era o primeiro ano de escola de Samuel, que já adiara a entrada por um ano por ser hiperactivo e ter défice de atenção. Apesar de gostar muito de Matemática, a “coisa mais difícil do mundo”, de ser “o mais rápido da turma”, o Português é que ainda não o convence. Sabe ler “mais ou menos”, ainda com muita dificuldade. “Mas posso dizer como se escreve ‘lupa’. É um ‘l’ e um ‘u’ e um ‘p’ e um ‘a’. Lu-pa.”

Neste ano que passou, muita coisa ficou para trás, por aprender. Como na escola juntaram na mesma turma alunos do 1.º e do 2.º ano, a dificuldade de alguns exercícios vai-lhe causando ansiedade. “Isto para eles é muita confusão”, observa Ana Paula, que carrega ainda o peso de sentir que não o consegue ajudar nas matérias por ser tudo “muito diferente” do seu tempo de escola.

Faltam computadores

Na semana passada, a professora ligou para dar a boa notícia de que, pelo menos por agora, teria um computador com Internet para seguir as aulas. No entanto, é apenas um empréstimo até ao regresso das aulas presenciais. E, por isso, a mãe logo se encheu de preocupação. “Tenho um papel para assinar que diz que a responsabilidade fica sobre mim. Mas se a gente tem o azar de o computador cair… ele, como é assim um bocado despistado, vai a correr, leva tudo à frente e eu não tenho hipótese de pagar”, sofre Ana Paula por antecipação.

Samuel é um dos cerca de 300 alunos do Agrupamento de Escolas Passos Manuel — que integra a EB Luísa Ducla Soares — que já recebeu um computador para este regresso ao ensino à distância. Neste agrupamento com cerca de 1400 estudantes, a prioridade na entrega dos equipamentos que foram disponibilizados pelo Ministério da Educação, no âmbito do programa Escola Digital, foi para os cerca de 500 que são beneficiários da Acção Social Escolar (ASE), escalões A e B. Entre esses, os mais velhos, do ensino secundário, tiveram prioridade, mas já chegaram equipamentos a alunos do 1.º ao 12.º ano, diz o director João Paulo Leonardo. No entanto, nem todos vão arrancar o ano lectivo com computadores, admite o responsável.

Essa distribuição é, na verdade, mais complexa do que se imagina, uma vez que “há famílias com três e quatro filhos” e, apesar de os alunos que têm ASE terem prioridade, há quem não beneficie desses apoios e também não tenha um computador com que possa ter aulas online. E também é preciso chegar a essas famílias, diz o director. Por isso, o levantamento feito pelas escolas no ano passado relativo às necessidades das famílias teve de voltar a ser feito. “Tivemos de voltar a passar o filtro por professores e famílias. Andamos à procura delas”, diz. É o caso de Sílvia Canoa, que está em teletrabalho, apenas com o computador que a empresa lhe disponibilizou, e que não sabe como há-de fazer para conciliar com as aulas de Guilherme, colega de turma de Samuel. Requereu esse apoio à escola, mas ainda não sabe se conseguirá tê-lo.

Entregues os 300 que recebeu, para já, do Ministério da Educação, o agrupamento tem agora cerca de mais 100 para distribuir, que fazem parte do conjunto de equipamentos que a Câmara de Lisboa comprou em Maio do ano passado. O município entregou então 3319 computadores portáteis e routers aos agrupamentos, para que os distribuíssem pelos alunos do 3.º e 4.º ano, beneficiários da ASE. Ao Agrupamento de Escolas Passos Manuel foram entregues cerca de 100. A maior parte dos equipamentos foi devolvida no final do ano lectivo. Serão agora, numa segunda fase, distribuídos por quem ainda não tem. “Vamos fazer o esforço máximo possível para atender a todos. Neste momento, é escolher o pedaço do braço que podemos cortar”, lamenta o director.

“Vai haver recreio, mãe?”

Perante a demora na chegada dos equipamentos do programa Escola Digital, alguns municípios e juntas de freguesia avançaram com a compra de computadores e routers para que os alunos pudessem estar preparados para este regresso às aulas. No caso de Lisboa, a câmara sublinha que “a distribuição de computadores é da responsabilidade do Ministério da Educação” e que já no ano passado adquiriu equipamentos que foram então colocados “à disposição das escolas”, que os estão “a distribuir autonomamente”, conforme as necessidades que identificam no terreno.

Em resposta ao PÚBLICO, o gabinete do vereador da Educação, Manuel Grilo, refere que a distribuição desses equipamentos tem estado a acontecer “diariamente, mas não de forma uniforme em todas as escolas e agrupamentos”: “Há alguns que já têm quase todos os computadores e routers previstos, enquanto outros continuam a aguardar parte desse equipamento.”

Além do risco de estragar o computador emprestado pela escola, Ana Paula preocupa-se por não saber trabalhar com a máquina. “Sei que vai exigir muito porque aquilo é chinês para mim. Ele [o Samuel], se calhar, desenrasca-se melhor do que eu.” Ao mesmo tempo pensa nos miúdos que vivem com os avós, pessoas mais velhas que nunca tocaram num aparelho daqueles: “Como é que vão ensinar os netos? É um bocado complicado.”

Mãe e filho estão também curiosos por saber como vão correr as aulas, se a professora conseguirá dar a matéria. “É que nós, às vezes, portamo-nos mal e ela põe-nos de castigo. Mas aqui não vai pôr, porque estamos no computador”, ri-se Samuel, também ansioso por reencontrar os colegas, mesmo separados por um ecrã. Ainda não sabe bem como será, mas já vai imaginando: “Como aquilo deve estar dividido em imagens para eu ver os meus colegas, vou conseguir ver o Guilherme, que é o meu melhor amigo.” Se é para ter aulas “a sério”, há ainda uma dúvida que o está a deixar ansioso: “Vai haver recreio, mãe?”