30.3.08

Ir à escola só com a garantia de não haver qualquer contacto com rapazes

Ana Cristina Pereira (texto) e Paulo Pimenta (fotos),in Jornal Público

No Bairro de São João de Deus, o Projecto Integra-te, da Fundação Filos, tenta captar menores de 15 anos para a frequência escolar. Soraia e Cristiana obdecem a regras apertadas


A psicóloga Paula Correia bate à porta. Se não o fizer, Soraia não aparece no atelier da EB1 São João de Deus, no Porto. Hoje de nada vale a viagem. A rapariga de 14 anos gastará a tarde a provar o vestido que usará daqui por quatro dias, num casamento. Sem ela, nem vale a pena bater à porta da sobrinha, Cristiana, dois anos mais nova. Quando uma falta, a outra falta.

Dentro da família de etnia cigana os ritmos familiares prevaleceram sempre sobre os horários lectivos. Paula sabe-o. Está perante o que os teóricos chamam uma encarregada de educação "hostil" - a que não vai à escola, não colabora em actividades desenvolvidas pela escola, não atribui valor à escola. Tenta conquistá-la, a Elvira, mãe de Soraia, avó de Cristiana.

Catorze raparigas de etnia cigana foram sinalizadas como público-
-alvo do Integra-te, um projecto de combate ao abandono escolar que em Setembro principiou no bairro em vias de extinção. A maior parte "casou" e, por ordem do "marido", ficou fora desta parceria entre a Fundação Filos e a EB1 São João de Deus. A frequentar o projecto, há três mais ou menos assíduas e duas mais irregulares.

Elvira está sentada no sofá. As filhas Soraia e Maria do Amparo acomodadas ao seu lado, junto à janela. "Mal seja menstruada, acabou. Nos ciganos é assim. Se for um menino, a gente deixa ir até grande, se ele quiser. É mulher, já não pode ir", atira Maria do Amparo. A filha mais velha de Maria do Amparo conta 10 anos e está no 3.º ano. "Calhando bem, faz o 4.º".

Dantes, ninguém parecia importunar-se. Elvira "metia [os filhos] na escola se quisesse, se não quisesse não metia". Nem matriculou Glória, a filha mais velha. Maria do Amparo frequentou apenas o 1.º ano. Sandra é a mais escolarizada das mulheres da família - abandonou a escola no 3.º ano, tinha nove anos. E Soraia saiu sem sequer completar o 2.º ano.

No ano lectivo 2006/2007, Soraia não pôs os pés no edifício grafitado. "Mandaram chamar várias vezes". Elvira "disse que ela não ia mais". E a escola pareceu aceitar, como aceitara outras decisões idênticas. Mas, em Setembro, Paula Oliveira bateu à porta, sorridente, determinada.

A intransigência de Elvira parecia intransponível. "Se elas não vão para a escola, eu vou para casa delas", arriscou a psicóloga. Elvira cedeu e Paula iniciou sessões de duas horas e meia "vezes" dois dias por semana. Como ainda não havia uma relação de confiança, Maria do Amparo ficava "a tomar conta" e aproveitava para aprender a desenhar as letras.

Maria do Amparo sabe o quanto lhe faz "falta saber ler e escrever". Por isso incita a filha a não fazer de conta, a aproveitar o tempo que gasta na escola . Todos os dias, é um fadário para a levantar. A mãe desperta-a e ela "diz que está cheia de sono". Então Maria do Amparo obriga-a a levantar. "Eu não obrigava", interrompe a avó. "Coitadinha, custa-lhe tanto".

Qualquer coisa parece ter-se mexido dentro da velha Elvira. Autorizou o regresso à escola em Janeiro. Com cuidado, muito cuidado. Nem Soraia nem Cristiana poderiam ter contacto com rapazes. Paula teria de ir buscá-las e de ir levá-las, com a garantia de não trocarem uma palavra com quem com elas se cruzar pelo caminho. Teriam de "estar separadas numa sala, a única que se podia juntar a elas seria Jordana, por ser prima, as outras meninas nem pensar". O projecto comporta um espaço de aprendizagem alternativa - ateliers de culinária, costura, pintura, informática dirigidos pela psicóloga e pela assistente social da escola. Se elas decidem fazer um bolo, as raparigas aprendem Português ao passar a receita, Matemática através do pesar dos ingredientes. A terceira fase seria a passagem para a sala de aula, mas Paula não se ilude.

Com Jordana, a outra presença regular no Integra-te, aconteceu. A mãe de Jordana dá-lhe mais liberdade. Quando apareceu a menstruação à filha, então com apenas 11 anos, não a retirou da escola. Quer que ela tire o 4.º ano.

A corpulenta rapariga está com 14 anos, "se estivesse no 5.º a mãe já não deixava" frequentar. A mãe de Jordana, como Maria do Amparo, não deixa a filha avançar para a EB2 e 3 da Areosa, frequentada por alunos mais crescidos.

- Como vês esta situação?

- Normal. Os pais têm medo que elas se encontrem com rapazes, que elas "casem", essas coisas assim.

- E o futuro?

- Normal, casar, ter filhos, trabalhar nas feiras.

Antes de Paula aparecer na sua vida, pouco ia às aulas. Ia às feiras - a Famalicão, a Vila do Conde, a Ermesinde. Ia ajudar os pais "a descarregar o camião, a pendurar, a vender" roupa. Às vezes, não era o trabalho, era a falta de vontade. Deitava-se tarde, "o despertador tocava, acordava e adormecia outra vez".

Ainda agora esteve outra vez para desistir. A família recebeu a carta com a ordem de despejo - poucas coisas espantam tanto os técnicos como estas transferências e despejos ordenados pela câmara a meio do ano lectivo e, no entanto, viram-nas repetir-se vezes em conta desde o início das demolições.

Agora, Paula vai buscá-la a casa do familiar que a acolhe. Está decidida a garantir que faz, pelo menos, o 4.º ano.

O Rendimento Mínimo Garantido, actual Rendimento Social de Inserção (RSI), meteu as crianças de etnia cigana dentro das escolas, mas o absentismo e o abandono permanecem elevadíssimos, reconhece Vítor Marques, presidente na União Romani. As raparigas são as primeiras a sair. "É o medo da perda de virgindade", resume o dirigente associativo. "O receio é enorme e duplica se a menina estiver comprometida".

A virgindade ainda é "altamente valorizada" entre os portugueses de etnia cigana, concorda Olga Mariano, presidente da Associação para o Desenvolvimento das Mulheres Ciganas Portuguesas. A família que apresenta a noiva virgem é considerada idónea, merecedora de todo o respeito. Se a noiva não for virgem, até pode "ser devolvida" à família, que se cobre de vergonha.

Ou porque o período chega ou porque a rapariga "já tem um corpinho que se note" ou porque a hora de "casar" espreita, entre os 11 e os 14 anos as raparigas de etnia cigana deixam a escola. "Os pais temem um envolvimento com um jovem não-cigano ou até cigano" só que de uma família que lhes desagrada, sublinha Victor Marques. Protegem-na, alguns quase que as escondem.

"A mulher não se valoriza pela educação, valoriza-se pelo casamento", resume a viúva. Por isso os pais investem muito na ida a festas - provar um vestido é mais importante do que ir a uma qualquer aula. Uma família pode gastar mais de 500 euros num vestido de uma rapariga. As adolescentes aparecem nas festas "bem vestidas, bem penteadas, bem pintadas, com ornamentos em ouro, porque vão ser vistas pelos pais dos moços em idade casadoira".

Com os rapazes é diferente. Os rapazes têm liberdade para frequentar a escola enquanto lhes apetecer. Por norma, ficam até ao momento de constituir família, por volta dos 14 a 16 anos. As suas expectativas de vida também não passam pela escola. A maioria dedica-se ao comércio, sobretudo ambulante. "Salvo raras excepções", torna Olga Mariano, a escola só interessa para aprenderem todos "a facturar, a ler, a escrever". E "para os rapazes tirarem a carta de condução".

Algum dia os pais terão de valorizar a escola, projecta Olga Mariano. As ocupações tradicionais - como as feiras ou a venda porta a porta - "estão em vias de extinção".

Das 14 raparigas sinalizadas pelo projecto da Filos, apenas três frequentam a escola com alguma assiduidade. "A escola [em Portugal] só se revê na sua cultura de origem", critica Victor Marques, presidente da União Romani, a terminar um mestrado sobre abandono escolar precoce no Vale do Ave. "Não sabe" lidar com os imigrantes ou com os portugueses de outra etnia. "A prática educativa tem de atender ao choque cultural", considera também o sociólogo Manuel Sarmento, da Universidade do Minho. Sem isso, torna Victor Marques, os portugueses de etnia cigana continuarão a encarar a escola como um lugar aonde se vai apenas por obrigação, para não se perder o Rendimento Social de Inserção.