31.3.08

Desviar a rota de quem "já está na fronteira" do mundo da droga

Ana Cristina Pereira, in Jornal Público

Delegação Regional do Norte do Instituto da Droga e da Toxicodependência abre serviço integrado de apoio à comunidade


Não veio por causa do haxixe fumado à socapa - fumou um só charro, para experimentar. Veio porque parece caminhar para um buraco. Falta às aulas. Quando não falta, porta-se mal. Às vezes, até sai a meio. Não possui uma teoria apurada sobre esta atitude que repete, repete, repete. Encolhe-se na cadeira: "Não gosto das aulas." Ela tão grande, já com 14 anos, e os outros tão pequenos, ainda com dez ou 11. E os pais? "Os pais não dizem nada."

Os pais nada podem dizer - ele já morreu, ela vê-a de 15 em 15 dias. Mas há no lar que a acolhe quem muito lhe diga "que vá, que não falte". Impotente, esse alguém encaminhou-a para o Projecto Integrado de Apoio à Comunidade, uma iniciativa pioneira da Delegação Regional do Norte do Instituto da Droga e da Toxicodependência (IDT) destinada a crianças e jovens em risco.

Enquanto, lá em baixo, no rés-do-chão, decorre a consulta dela, cá em cima, no primeiro andar, o delegado regional, Adelino Vale Ferreira, e a coordenadora do projecto, Albina Sousa, libertam alguns detalhes. Um e outro usam a expressão "prevenção indicada": a dirigida a quem ainda não entrou no mundo das drogas, está ali, "na fronteira" - "pode até já ter iniciado os consumos, só que não é toxicodependente".

Diana (nome fictício) corresponde ao perfil. Está a repetir o 5.º ano e já antes reprovara três vezes. Cada retenção alarga a distância que a separa dos colegas de turma. É como se aquele lugar já não lhe pertencesse. Junta-se aos mais velhos, "que às vezes nem escola fazem, que querem é divertir-se", fumar uns charros, namoriscar. Valoriza muito, demasiado, quem com ela passa as horas roubadas às aulas.

Há jovens que precisam de aconselhamento e jovens que precisam de acompanhamento - consulta de psicologia e/ou de psiquiatria. Há pais necessitados de informação e de orientação para lidar com situações de crise e há pais necessitados de terapia. Há instituições, sobretudo escolas inseridas em contextos problemáticos, aflitas. O projecto procura actuar nas diversas frentes, como um todo.

"Não havia um serviço destes" e o delegado regional inquietava-se com o que se lhe afigurava ser uma "grande lacuna". Não é que fosse o grau zero, que existisse rigorosamente nada. "Já existia uma consulta dirigida a não toxicodependentes", salientaria, já fora daquele espaço, o presidente do IDT, João Goulão. Só não havia uma resposta "tão estruturada, tão sólida".

Recurso de retaguarda

Desconfiado de "respostas parciais, dispersas, fragmentadas", Adelino Vale Ferreira quis incorporar a interdependência dos vários factores de risco, afastar-se da estratégia centrada na substância consumida, avançar para a intervenção do indivíduo inserido na comunidade. "Não nos vamos sobrepor [às organizações que operam no terreno], vamos complementar [o seu trabalho]", enfatiza Albina Sousa. Isto será, por exemplo, "o recurso clínico que lhes faltava na retaguarda".

O Projecto Integrado de Apoio à Comunidade contempla uma vertente de formação a agentes que trabalham com crianças e jovens em risco e até um espaço de consultadoria e apoio técnico (no planeamento, na execução e na avaliação) a instituições. Esta é uma forma de dar "um suporte científico" ao trabalho desenvolvido na região. Albina Sousa dá o exemplo do psicólogo da escola que "se sente muito só". Outro exemplo é o do professor que cai numa turma mais turbulenta e carece de estratégias para captar os alunos, envolver as famílias. A EB 2.3 Dr. Leonardo Coimbra (filho), uma das escolas mais problemáticas do Porto, "já pediu para ir lá uma equipa fazer prevenção indicada".

Diana é trazida por uma psicóloga do lar que a acolhe. Não percebe o apoio psicológico que esta lhe dá lá dentro como tal. É como se deslocar-se ali, à delegação regional do IDT, servisse para sacralizar o apoio. Talvez o estar ali, fechada, naquela sala de pé-direito impressionante, com uma técnica que só vê na consulta, facilite a construção de relação de confiança que precisa para a sua terapia.

Olha-se para ela toda encolhida na cadeira, a vislumbrar o futuro: "Quero ser empregada de mesa, é o meu sonho." O que a atrai naquela carreira? "Sei lá! Gosto. Uma colega minha, a Marina, tem-me contado as coisas que faz e eu acho engraçado." Marina, a amiga, fez um curso específico. Diana terá de ter o 6.º ano para nele ingressar. E para ter o 6.º ano terá de ir às aulas, de estudar. "O discurso faz sentido para ela, só que ela sente-se incapaz de o pôr em prática", comenta quem a traz.

O espaço de consulta, que arrancou a sério em Janeiro, já integra mais de 300 crianças e jovens encaminhados por ONG, escolas e tribunais de família e menores.

Projecto já abrange 26 concelhos

Há outras zonas do país que ambicionam avançar


O Projecto Integrado de Apoio à Comunidade abrange 26 concelhos da região norte. A unidade é constituída por uma equipa multidisciplinar, dependente do delegado regional do Norte do Instituto da Droga e da Toxicodependência (IDT), Avelino Vale Ferreira, e do núcleo de apoio técnico. "Os colegas querem introduzir isto noutras áreas geográficas", orgulha-se a coordenadora do projecto, Albina Sousa. Estão ambos animados, embora conscientes de que este projecto, como qualquer outro, não é uma panaceia. Simplesmente tenta funcionar em rede, trocar uma lógica passiva (esperar que alguém venha ao IDT) por uma lógica activa (os técnicos deslocam-se, por exemplo, às escolas). Uma parceria com o Departamento de Comportamento Desviante da Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto e outra com o Departamento de Psicologia da Justiça da Universidade do Minho irá garantir formação contínua à equipa. A.C.P.