31.3.08

Milhares de crianças da Guiné exploradas nas ruas de Dacar

Ana Dias Cordeiro (textos) e Nuno Ferreira Santos (fotos), na Guiné, in Jornal Público

Vão para o Senegal estudar o Corão, mas acabam por ser escravizadas pelos marabouts. Em Dezembro, Osman e Aladje conseguiram fugir


Os relatórios da Unicef indicam que 90 por cento das crianças pedintes no Senegal estão em Dacar para estudar o Corão.

Não há rasgo nenhum de alegria no olhar de Osman; um olhar cravado numa expressão demasiado séria para os seus 12 anos. Aladje é um pouco mais velho. Não sorri e também o seu olhar se esquiva. Porém, segundo um familiar, "comparado com o dia em que chegaram, não há aqui tristeza nenhuma".

O dia em que Osman e Aladje chegaram a Bissau, vindos do Senegal, foi em Dezembro. No corpo, traziam pouco mais de uma peça de roupa, autênticos trapos por cima dos seus corpos magros, quase doentes. Preferiam esquecer o que deixaram para trás na noite em que fugiram da casa do mestre corânico, perto de Dacar. Saíram sem medo, parecem querer dizer. Pois era do medo que se libertavam.

Osman tem os olhos pregados no chão de areia em volta da casa onde mora no bairro Plack 2, à saída de Bissau. Os primeiros anos da infância foram passados numa aldeia perto de Bafatá, no Leste da Guiné. Depois foi entregue a um mestre corânico (marabout) perto de Dacar, no Senegal, para estudar o Corão. Lembra-se mal do pouco tempo dedicado à aprendizagem do Corão; uma, ou talvez duas horas por dia. E quase sempre de madrugada.

O dia era sobretudo passado a mendigar nas grandes rotundas da capital senegalesa, explica tímido. E quando não trazia os 500 francos exigidos pelo marabout - a quantia exigida aumenta consoante a idade - era castigado. Os mais velhos agarravam-lhe os braços, enquanto era "batido" pelo mestre corânico. Aconteceu "várias vezes". A ele como a todos os outros meninos.

A cara da mãe de Aladje ilumina-se quando fala do reencontro com o filho. Não estava de acordo, quando o pai, hoje falecido, "impôs a sua decisão" e o entregou, de entre seis filhos, ao mestre corânico. Esta é uma tradição enraízada no meio rural essencialmente em famílias de etnia fula; uma tradição de várias gerações em todo o Leste da Guiné-Bissau, onde se concentram a maioria dos muçulmanos que constituem cerca de 40 por cento da população do país.

A religião como um dever

"Nas sociedades islâmicas da África Ocidental, os pais consideram, de forma geral, que a educação religiosa das suas crianças é um dever importante", lê-se no relatório Crianças Pedintes na Região de Dacar, de Novembro de 2007, elaborado pela Unicef, Organização Internacional do Trabalho (OIT) e Banco Mundial.

Nos últimos dez anos, porém, o ensino do Corão no Senegal passou a servir, na maioria dos casos, (não em todos), para encobrir um "tráfico" de crianças de vários países da região, a maioria da Guiné-Bissau, mas também Mali, Guiné-Conacri, Gâmbia, acrescenta Laudolino Medina, secretário executivo da Associação dos Amigos da Criança (Amic) da Guiné-Bissau. Para ele, "esta é a escravatura dos tempos modernos". A Unicef acrescenta que das milhares de crianças pedintes no Senegal 90 por cento são "talibés" (que significa alunos do Corão).

O fenómeno teve especial atenção no fim de 2007, quando, em Novembro, foram interceptados dois grupos de crianças que estavam prestes a atravessar a fronteira, acompanhadas por familiares ou intermediários. Uns e outros muitas vezes confundem-se. Os casos foram noticiados. Os suspeitos, presos, foram entretanto libertados.
Como Osman e Aladje, também Semba regressou recentemente por iniciativa própria a Bissau. Tinha 14 anos quando foi enviado pela mãe, há dois anos. Tem uns grandes olhos em forma de amêndoa, veste umas calças brancas e uma camisa vermelha, que lhe dão um ar impecável, de quem se cuida e vive bem, como qualquer miúdo a terminar o liceu. Mas não. Depois do tempo perdido em Dacar, recomeça com dificuldade a escolaridade interrompida, quando, atraído pela ideia de estudar o Corão em Dacar, escolheu seguir os passos do irmão mais novo. Com ele viviam dezenas de outras crianças num grande recinto, que era a residência do marabout, conhecido por "Alpha Mouniro", um guineense há muito tempo a viver no Senegal.

Quantas dessas crianças eram guineenses? "Todas", alguém traduz, enquanto Semba continua, entre o crioulo e o fula: "Essas crianças dormem no chão, vivem muito mal. Um dia, não aguentam e fogem."

Laudolino Medina, da Amic, completa as partes inacabadas de uma reconstituição difícil de fazer. Longe da família, no Senegal, Semba desabituou-se do crioulo. Mas parece estranhar ainda mais ouvir alguém traduzir a sua história para português.
A sua família vive do pequeno comércio. A mãe vende mancarra (amendoim) e açúcar, em casa. "A maior parte dos familiares destas crianças são extremamente pobres. Os marabouts enriquecem à custa delas", diz Laudolino Medina.

É difícil saber quantas crianças estão nesta situação, que, segundo a Unicef, "as expõe às doenças e aos acidentes", por viverem numa "precariedade extrema", sem acesso à escola ou aos cuidados básicos de saúde, mas também sujeitas a "vários tipos de violência".

O investigador guineense e autor do estudo Tráfico de crianças na Guiné-Bissau, de 2007, Leonardo Cardoso, não avança números absolutos. Mas estima que haja pelo menos quatro a cinco mil crianças guineenses nesta situação no Senegal e acrescenta que há tabancas (aldeias) do Leste da Guiné de onde saem 40 ou 50 crianças por ano. Também ele considera que este fenómeno se explica pelo "agravamento do nível de pobreza nos dois países", em parte explicado pela desvalorização da moeda comum, o franco CFA. Uma pobreza que contrasta com a riqueza dos marabouts, que agora "têm carros, boas casas, televisões", diz.

O chefe de família que agora recebe Osman, Aladje e Semba acolhe outras crianças na mesma situação. Também se chama Semba. Escolheu como apelido "Portugal", onde viveu alguns anos. É imã deste bairro, que junta cerca de 60 mil pessoas. Muçulmano devoto, estudou o Corão há 20 anos em Gabu, no Leste da Guiné-Bissau. Diz não haver qualquer justificação para o aproveitamento da situação para fins lucrativos por parte de alguns marabouts. Não todos, frisa. O ensino do Corão deve ser apoiado na Guiné-Bissau para evitar que as crianças partam para o Senegal com esse fim, defende.

Este problema tem aumentado, pela "pobreza generalizada" em que vivem muitas famílias guineenses. Mas também por uma "perda de valores", acrescenta na mesma conversa Laudolino Medina. "Assiste-se a uma transgressão de normas e valores culturais, com a pobreza." E conclui: "No caso da Guiné-Bissau, com a instabilidade, muitas famílias que fugiram do conflito de 1998 e 1999 e se instalaram no Senegal ficaram lá. Encontraram como alternativa para a sua sobrevivência pôr as crianças nos centros corânicos."