31.3.08

"O que se passa é um atentado aos direitos das crianças"

Ana Dias Cordeiro, in Jornal Público

Leonardo Cardoso é historiador, investigador em Ciências Sociais do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa (INEP) de Bissau e autor do estudo Tráfico de crianças na Guiné-Bissau elaborado a pedido da Organização Internacional para as Migrações (OIM) em Maio de 2007.

Como descreve a situação das crianças "talibés" que vão parar à mendicidade nas ruas de Dacar?

É uma situação absolutamente deplorável, porque efectivamente grande parte das crianças que vão para o Senegal levam uma vida extremamente dura. São exploradas e maltratadas. O que se passa é um atentado aos direitos mais elementares dessas crianças. Mas é importante dizer que nem todas as crianças "talibés" estão sujeitas a estes males. O próprio termo "talibé" significa "aluno". Esta é uma tradição com raízes muito antigas. Existem escolas corânicas que têm uma longa tradição e são muito reputadas. Há relações de parceria entre escolas corânicas na Guiné-Bissau e no Senegal. Antigamente, saíam crianças de algumas escolas da Guiné-Bissau, porque havia afinidade entre mestres corânicos dos dois países. Não havia então qualquer objectivo de exploração. E as crianças iam de facto para aprender o Corão.

Quando começou a haver exploração?

É um fenómeno recente de há uma dezena de anos, mas está a piorar. No âmbito da aprendizagem do Corão, os "talibés" devem sujeitar--se a algum sofrimento para serem homens amanhã. O que acontece é que os marabouts [mestres corânicos] aproveitam isto para obter rendimento. E reprimem as crianças, quando estas não reúnem os montantes exigidos. Essas crianças são obrigadas a passar o tempo quase todo a mendigar. É aí que aparece o fenómeno da exploração e que se começa a deturpar a base da razão e do objectivo do envio das crianças.

A quem podem ser atribuídas responsabilidades?

Há implicação de quem envia as crianças e, na maioria dos casos, quem as envia são familiares. Não os pais biológicos, mas aqueles que ficam com elas, quando, por exemplo, o pai morre. São os pais adoptivos ou os tios. Nas sociedades islamizadas e sociedades fulas da Guiné-Bissau, os tios têm habitualmente uma grande influência na família. E, quando o pai morre, a mãe, viúva, é recebida em herança por um irmão do marido. Muitas vezes com a pressão deste, a mãe cede e assim se desenrola o processo. Quem acompanha, em grande parte dos casos, são esses familiares. Quem leva é normalmente quem autoriza. Mas depois há quem deixa passar na fronteira. E tudo leva a crer que há situações de subornos nas fronteiras, apesar de, muitas vezes, a transposição de fronteiras não se fazer nos pontos de passagem oficiais. E de as próprias autoridades estarem desprovidas de meios para controlar a situação. Por outro lado, há uma certa cumplicidade entre famílias de aldeias muito próximas de um e de outro lado da fronteira que facilita a passagem das crianças.

O que podem as autoridades de Bissau fazer para travar este fenómeno?

Tem havido uma certa intervenção e algumas diligências, mesmo a nível das embaixadas, mas que pode ser insuficiente. Deviam ser elaborados programas de apoio às crianças, porque nem sempre são bem acompanhadas e reintegradas nas famílias. O Estado também deve ser encorajado a aprovar uma legislação que preveja medidas punitivas severas para os traficantes e os agentes policiais envolvidos.