5.7.12

"Tenho 63 anos. Se me aumentam a renda de casa, estou feito"

Por Ana Cristina Pereira, in Público on-line

Actualização do Instituto da Habitação e da Reabilitação fará subir média das rendas de 27,5 para 67 euros até ao final de 2013. No bairro de Contumil, Nordeste do Porto, já se fala na mudança.

Álvaro Fonseca Ribeiro vinha a sair de casa, com a mulher, Maria de Fátima. Mora no Bairro de Contumil, no Nordeste do Porto, há mais de 30 anos. Nem quer ouvir falar na actualização de rendas que o Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana (IHRU) fará até ao final do próximo ano. "Se me aumentam a renda, estou feito. Tenho 63 anos. Fui operado ao coração. Tive um esgotamento de cérebro."

O homem de cabelos brancos, fato preto, paga dois euros para morar num bairro que trata como o seu reino. A sua voz é "a mais ouvida" nestes blocos de um bege empalidecido pela idade e pela incúria. "Não há aqui malfeitores, droga. Eu não deixo. Qualquer pessoa, cigana ou não cigana, vem comigo para resolver qualquer problema."

Nunca ouviu falar no novo regime de rendas apoiadas, que a Assembleia da República aprovou em 1993. Ninguém lhe falou na ideia de uniformizar o sistema de renda da habitação social - propriedade de organismos autónomos ou institutos públicos, de autarquias locais ou de instituições particulares de solidariedade social. Os seus filhos cresceram e saíram do apartamento e nunca ninguém lhe mexeu na renda.

Está longe de ser caso único. Num total de cerca de 12.500 fogos, só três mil estão sujeitos ao regime de rendas sociais baseado na composição e no rendimento do agregado. Nos outros, as rendas estão congeladas há 20 ou 30 anos, diz Vítor Reis, presidente do IHRU. O que se passa, agora? "O processo de actualização, que começou há dois anos, estava a andar muito devagar e foi acelerado. O objectivo é que esteja concluído até ao final do próximo ano."

Para já, há quem pague dois euros, como Álvaro. E quem pague 220 euros. A média das rendas anda pelos 27,5 euros. Com a actualização em curso, deverá ascender aos 67, o que representa um aumento de 150%. Incomportável para famílias com orçamentos cada vez mais reduzidos? A ninguém, assegura Vítor Reis, será pedida uma taxa de esforço superior a 15%.

O plano é aumentar a receita de quatro para dez milhões de euros por ano, o que deverá servir para fazer as obras que muitos dos bairros carecem. Em 2007, o instituto contraiu um empréstimo de 55 milhões - já gastou 22 milhões. A intervenção no Bairro de Contumil começa ainda este ano.

As obras que Vítor Reis anuncia podem mudar a vida de quem, como os filhos de Álvaro, se cansou de esperar por um apartamento, tomou as caves e as transformou em sítios com grau de habitabilidade variável. Álvaro nem os quer imaginar a sair dali: "São eles que me estão a ajudar a levar isto. É um bairro com muita gente. E eu tenho de manter isto tudo em ordem".

60 euros por um T4

As famílias deverão ser chamadas, uma a uma, ao IHRU. Todas serão, depois, informadas dos novos valores. A ordem, torna Vítor Reis, é para não facilitar: "15% das rendas que emitimos não são pagas. Há pessoas que não pagam renda há dez anos. Estamos a mover todo o tipo de processos para que cumpram com as suas obrigações".

A mudança, avançada ontem pelo Jornal de Negócios, entrara no bairro através das televisões e infiltrara-se nas conversas. Numa rua, atrás de uma carrinha branca, um homem vendia ameixas douradas apanhadas ali perto: um euro e meio por cada dois quilos. Num muro, três mulheres comentavam as últimas. O marido de Lina Cunha é que ouvira a notícia. "A gente tem tão pouco e ainda vai ficar com menos! Tem de haver uma guerra."

Paga 60 euros por um T4. Parece pouco. Pagavam mais antes de o marido perder o emprego no bingo. Não vê como pagar mais agora, que estão ambos sem trabalho e têm a casa cheia de filhos e netos. Em casa de Manuela Pereira, a mulher que se senta ao seu lado, com o seu saco de ameixas, paga-se 32 euros. "É isso há 32 anos. Há 32 anos, era o máximo. O direito era não aumentar enquanto o meu pai for vivo." A mulher, de 46 anos, está desempregada: "Só numa fábrica trabalhei 17 anos. A fábrica fechou e eu vim para a rua. Antigamente, arranjava-se para senhoras, mas também está mau para as senhoras. As senhoras separam-se dos maridos, ficam sem subsídio [de férias e Natal]. Também nos mandam embora". Paula Machado, a da cadela, também está só com duas horas de limpeza. "Já nem para comer dá. Muitas vezes, é uma refeição ao meio-dia e uma sopinha à noite. Antigamente, não havia rendimento, mas havia trabalho. Daqui a pouco a gente vai trabalhar para o passe. Ai! Vem aí a fome. Fome mesmo."

Menos inquietos, a digerir o almoço no sofá da sala, estavam Eva Vaz e o marido. É auxiliar de acção médica. O marido é reformado dos serviços prisionais. Têm dois filhos fora. Vivem com a que acabou o mestrado em Biologia com 20 e está a concorrer para uma bolsa de investigação. Não é de esperar que continuem a pagar os 32 euros que pagam desde que para ali se mudaram, há 32 anos.