Por Luís Rosa e Sílvia Caneco, in iOnline
Presidente do Sindicato dos Magistrados do MP critica gestão do DCIAP: "É incompreensível ter investigações concentradas numa só pessoa." (Rosário Teixeira)
Rui Cardoso diz que os discursos de intenção contra a corrupção não chegam: é necessário investimento. Os cidadãos têm uma percepção negativa da Justiça e o representante dos procuradores não iliba o Ministério Público de culpas: é importante "melhorar o que se faz em inquérito" nos casos mais complexos e mediáticos. São precisos assessores que ajudem os procuradores a analisar a prova e é desejável que se crie um tribunal especializado em crimes económicos. Ainda assim, garante que Portugal não tem um problema de celeridade no processo penal.
O caso da prescrição da multa de 1 milhão de euros de Jardim Gonçalves voltou a colocar na ordem do dia as prescrições. Por que razão o sistema judicial português não consegue corrigir este problema?
As prescrições são hoje significativamente menos do que foram noutros tempos. Aquilo que foi notícia foi uma prescrição num processo de contraordenação. Por vezes são nos processos criminais. Não devemos misturar os dois planos, até porque há entidades diferentes em ambos. Já ouvimos imputarem responsabilidades ao Ministério Público (MP) quando, neste caso, não tem qualquer intervenção. Na primeira fase está numa entidade administrativa, que nesta situação era o Banco de Portugal, e depois passa directamente para uma fase judicial. Num processo-crime as prescrições em inquérito são raríssimas e geralmente devem-se ao facto de a notícia do crime chegar já muito tarde. Nos julgamentos é mais frequente, mas a maior parte das vezes o que leva a isso é a dificuldade em iniciá-lo por não se conseguirem localizar os arguidos. Nos processos de contraordenação, sim, há muitas prescrições: a maior parte acontece quando o processo ainda está na entidade administrativa.
Concorda com o aumento dos prazos de prescrição dos processos de contraordenação?
Os prazos no máximo estendem-se até aos oito anos. Poderá parecer que é muito mas não, porque processos da CMVM ou do Banco de Portugal (BdP) têm a complexidade de um processo-crime. A grande dificuldade é ter logo conhecimento da infracção, o que no caso BCP foi muito tempo depois de ela ter ocorrido. A investigação do BdP andou rápido, a acusação foi feita num ano, houve a parte contraditória durante mais um ano, o que é razoável. No tribunal, o julgamento demorou um pouco a começar e foi interrompido por uma decisão do juiz com a qual a Relação discordou, mandando seguir o julgamento. Essa decisão da Relação é irrecorrível mas houve tentativas de recurso e reclamações. Perderam-se quase três anos. Talvez não seja necessário aumentar o prazo mas talvez se justifique criar uma nova causa de suspensão - a condenação inicial - como acontece num processo-crime.
A falta de meios não justifica as prescrições?
De modo algum. Neste caso se houvesse falta de meios era do BdP e o regulador não tem os constrangimentos orçamentais que têm os tribunais. A falta de meios existe essencialmente no MP e na investigação criminal. Há prazos para as conclusões dos inquéritos que são ambiciosos mas depois não há condições práticas para os atingir. Na generalidade dos processos, o MP cumpre os prazos previstos na lei. Naqueles altamente complexos, em que se está dependente de outros países, de respostas a cartas rogatórias, não há possibilidade de acelerar: há países que cumprem, países que cumprem tarde e outros que não cumprem mesmo. Outra causa da demora são as perícias: são muito demoradas e caras e não há dinheiro nem peritos.
Não tem havido vontade política de fazer esse investimento, apesar do discurso contra a corrupção?
O discurso de luta contra a corrupção tem de ser levado às últimas consequências. Não basta fazer discursos de intenção. É um investimento mas com retorno garantido. Se conseguirmos outra eficácia na acção penal estaremos a poupar muito dinheiro. Veja-se o que está a acontecer no processo das farmácias. O que o Estado está a arrecadar é muito significativo e pode ser feito noutras áreas. Mas tem de se querer.
A duração média dos inquéritos que entraram em Lisboa foi de 6 meses e 7 dias. Mas continua a persistir na opinião pública uma percepção negativa sobre os casos mais complexos que leva à ideia da justiça dos ricos e dos pobres.
O MP tem resultados em julgamento muito bons: taxas de condenação de 85%. Mas são esses processos mais mediáticos que constroem a percepção da comunidade sobre a justiça criminal. O MP tem de melhorar o que faz em inquérito, estar seguro das provas e ter capacidade de as fazer provar em julgamento. A organização do sistema judicial não está adequada a julgamentos de casos complexos. Faz-nos falta um tribunal especial que consiga ter o know-how que o MP já tem e como há em Espanha, por exemplo. O MP tem uma grande necessidade de assessoria, de alguém que esteja ao lado, que vá ajudando a analisar a prova pois por mais especializado que um magistrado seja não consegue saber tudo. Os gabinetes de apoio que estão previstos nas comarcas poderão servir para isso.
As reformas penal e civil criaram os instrumentos necessários para combater a morosidade da Justiça?
No âmbito civil, os maiores problemas estão na acção executiva. Houve um trabalho muito positivo. Há hoje para os agentes de execução, mesmo a nível informático, condições de trabalho ímpares na Europa e esperemos que a médio prazo se reduza a morosidade. No processo penal as reformas que se fizeram foram pontuais. Houve alterações positivas para a prova em julgamento mas para imprimir mais celeridade ao sistema pouco foi feito. Mas não temos, sublinho, um problema de celeridade no processo penal. O MP tem conseguido cumprir os prazos de inquérito, a instrução normalmente é rápida e os julgamentos na generalidade dos tribunais singularidades estão a ser marcados a dois, três meses, o que permite julgar no espaço de um ano após um crime. Ao nível da Relação e do Supremo temos do melhor que há na Europa. Depois, nas Varas Criminais, as coisas mais simples correm bem e rápido. As mais complexas demoram muito tempo a começar e a acabar, o que em muitos casos tem a ver com a natureza do processo. Se olharmos para um Face Oculta, com a complexidade que tinha...
O julgamento começou em 2011, estamos em 2014.
É muito tempo.
O julgamento da ex-ministra da Educação está para começar há dois anos.
Há muitos juízes nas Varas Criminais nesta altura e o Conselho Superior da Magistratura já tomou várias medidas para imprimir maior celeridade. Não é compreensível que se esteja a fazer um julgamento em exclusividade e depois não se utilize boa parte da semana.
O governo anunciou nas grandes opções do plano para 2014 que irá proceder a uma reforma sistémica do Código Penal e do Código de Processo Penal. Há necessidade disso?
Justifica-se olhar com tempo e de forma suprapartidária para esses dois códigos. No CP há muitos crimes que estão desadequados da tutela dos dinheiros públicos, da própria organização administrativa e política do país, e isso gera zonas de sobreposição e grandes lacunas. No CPP há uma grande necessidade de olhar para alguns meios de obtenção de prova, como o regime das escutas ou a recolha de prova em ambiente digital. Há uma grande confusão pois há uma sucessão de diplomas legislativos que não são compatíveis. E isso gera uma grande insegurança na aplicação da lei e faz que o resultado final de um processo nem sempre seja o desejado.
Está à espera que a ministra da Justiça volte à carga com o crime de enriquecimento ilícito?
Não faria mal se existisse esse crime, desde que seja conforme à Constituição. Há soluções. Ou pela via fiscal, ou no que diz respeito aos titulares de cargos políticos, mudando o regime da declaração de rendimentos. Aplicando-o a todos os portugueses será difícil fugir ao choque com a Constituição.
O novo mapa judiciário introduz uma pequena revolução na organização dos tribunais e do MP. O sistema judicial está preparado para a mudança já em Setembro?
O processo de mudança será complexo, delicado e arriscado. Ao que sei o governo está a trabalhar seriamente nisso. Se não estiverem reunidas as condições práticas, espero que seja adiado pois se a mudança não for bem feita poderá prejudicar o sistema durante muito tempo. Haverá sempre o problema do afastamento para as populações. Se isso for atenuado, a experiência do passado mostra que a reforma pode ser positiva.
A PGR disse que só teve conhecimento do arquivamento do inquérito contra o procurador-geral angolano três meses após ele ter sido concluído. Tendo em conta as relações diplomáticas com Angola, é aceitável?
A responsabilidade sobre a condução de um processo é sempre do magistrado que é titular. Independentemente disso é justificável, e até recomendável, que haja um acompanhamento próximo desses processos mais delicados.
As mudanças nos comandos da PGR e do DCIAP beneficiaram a Justiça?
Muito. A procuradora-geral pacificou o MP e pô-lo a caminhar num bom caminho. O MP deixou de estar parado. O procurador-geral anterior, apesar de ter reclamado mais poderes, pouco usou os que tinha. A mudança está a sentir-se: há um aumento da coordenação no MP. O DCIAP, como se viu em dois despachos, um com a nova estrutura e outro com o plano de acção para 2014, passou a ter outro tipo de actuação, muito mais racional e com objectivos. Claro que resultados práticos vão demorar mais porque são processos complexos e que demoram muito tempo.
Mas não estão quase sempre concentrados no mesmo procurador?
O DCIAP tem 20 procuradores. É absolutamente incompreensível para qualquer tipo de organização ter numa única pessoa o conhecimento sobre uma parte muito importante daquilo que faz. Deve haver um conjunto de pessoas aptas a trabalharem naquele tipo de processos e a conduzirem aquelas investigações. Ao longo de muito tempo no MP isso não foi desejado. O que, como gestão de uma máquina que tem 1500 magistrados, é um absurdo.
As prescrições e absolvições de arguidos socialmente influentes têm levado ao enraizamento da ideia de que a evolução social produzida pelo 25 de Abril não chegou à Justiça. Concorda?
Quarenta anos após o 25 de Abril continua a haver uma justiça para ricos e outra para pobres, o que não significa que os pobres tenham uma má justiça. Os ricos têm a possibilidade de pagaram honorários a advogados, peritos e todas as despesas dos processos, o que lhes permite ter uma actuação processual ilimitada. Mas isso não significa que só existam prescrições nos processos dos ricos. Pelo contrário. Para os pobres continua a haver dificuldade de acesso à justiça. Só tem condições para pedir apoio judiciário quem praticamente é indigente. Quem tem qualquer coisa que lhe permite sobreviver não tem apoio mas aquele pouco que tem dificilmente chega para pagar as despesas de um processo, que são altas hoje.
...Do lado dos tribunais há medo de julgar os ricos?
Espero que cada juiz tenha capacidade de olhar para todas as pessoas de forma igual. Algumas notícias que tenho tido não são nesse sentido. Há pessoas que têm ficado escandalizadas com a subserviência no trato de alguns juízes em relação a alguns arguidos. E isso são sinais preocupantes.