31.3.14

“Caló” até pode jantar três vezes

Ana Cristina Pereira, in Público on-line

Cada vez mais voluntários estão a distribuir comida nas ruas do Porto. Ressalta a falta de articulação entre eles. Unem-se, separam-se, sobrepõem-se, por vezes atropelam-se.

Começam a alinhar-se antes das 19h, de pé, umas atrás das outras, no passeio da Rua Dr. Alberto Aires de Gouveia, em frente ao serviço de urgências do Hospital Geral de Santo António, no Porto. Amiúde, a fila dobra a esquina, acompanha a inclinação da Rua da Restauração, onde José Alberto Santos, conhecido por “Caló”, jargão dos ciganos da Península Ibérica, há tanto faz cama.

Todas as noites por ali pára gente a distribuir comida. Chegam em carros particulares ou com o nome de uma organização pintado num dos lados e ocupam parte do passeio ou do jardim do Carregal, um pouco acima. Uns esperam em silêncio, outros com alarido, por vezes tenso, por vezes divertido.

– Ouvi dizer que vão acabar com as reformas – provoca “Caló”, ao ver aproximar-se um homem baixo, de cabelo espetado, irritadiço na sua ressaca, a quem chama “Gandalf”, personagem do autor britânico J. R. R. Tolkien.

– Ui! O que vamos comer? Aparas?! – retorque o outro, a fiar-se no que ouve, já a fazer carranca.

– Sabes o que te safa a ti? O Governo não valer um c..! – prossegue “Caló”, a divertir-se com o efeito alcançado.

– Votaste?!

– Não voto desde os 18 anos!

– Não votas porque és um irresponsável!

– E tu? Para que votas, se és reformado?

– Porque tenho direito!

– E vai às manifestações, o gajo! – mete-se José Maria, que dorme numa pensão ali perto, provocando uma gargalhada geral.

– E vou!

– Se estás reformado, vais fazer barulho para quê? – torna “Caló”.

– Eu luto pelo povo!

A conversa interrompe-se mal os três homens avistam uma carrinha branca a fazer pisca-pisca para a direita. De dentro dela saltam pessoas que se distinguem de todas as outras que ali estão por usarem coletes reflectores. Abrem as portas de trás e tiram tudo o que lá está dentro.

Umas montam banca onde a fila começara a formar-se e tratam de servir uma sopa de legumes. Outras montam outra banca um pouco acima. Hão-de entregar um café em copos de plástico e um kit (um refrigerante e três ou quatro croissants que agora mesmo enfiam em sacos de plástico).

Mais voluntários nas ruas
Noite após noite, em várias partes da cidade, a horas diversas, passam grupos de voluntários a oferecer uma sopa e/ou um prato principal e/ou um kit: Mercado do Bom Sucesso, Rua Júlio Dinis, Rua da Restauração, Jardim do Carregal, Avenida dos Aliados, Rua da Alegria, Praça da Batalha, Rua Sá da Bandeira, Rua Gonçalo Cristóvão.

Quem são estes, de colete reflector, que já serviram “Caló” e José Maria e agora servem os que se lhes seguiam? “Viemos do Amor Caseiro, fomos para o Amor-Perfeito e agora somos um grupo de amigos voluntários que apoia os sem-abrigo”, explica Alda Pires, 48 anos, empregada de cantina.

A crise – ou a consciência dos seus efeitos – está a levar mais voluntários para as ruas da cidade. Nesta vontade de bem-fazer, unem-se, separam-se, por vezes atropelam-se.O grupo sem nome aparece na Rua Dr. Alberto Aires de Gouveia sempre por volta das 21h de segunda-feira. Aquela era noite de míngua. Isso mesmo lhe assegurara quem espera na fila. Afinal, já ali vinha um grupo da CASA – Centro de Apoio aos Sem-Abrigo trazer sopa e primeiro prato. Ao deparar-se com estes, concentrados, a saciar quem esperava na fila, avançaram os outros para a Praça da Batalha.

Os voluntários da CASA foram para uma zona da cidade que sabiam a descoberto, mas há aqui quem fale na sua mudança como se fora uma birra. É como se não coubessem ambos na Rua Dr. Alberto Aires de Gouveia, em frente ao serviço de urgências do Hospital Geral de Santo António, no Porto. Como se não pudessem unir-se uns a dar uma sopa e um kit, outros o prato principal e o café.

“O que trazemos não dá para todos”, lamenta Carla Nunes, 40 anos, a voluntária que neste grupo concentra melhores contactos de angariação de bens alimentares. “Ficam alguns sem comer.” Pelo menos até por volta das 23h, quando na zona passarem os voluntários do Colégio do Rosário.