por Alberto Gonçalves, in Diário de Notícias
Segundo dados do INE, a taxa de risco de pobreza em Portugal aumentou em 2012 para 18,7%. Dito assim, parece justificado o alarme geral e a presença nas televisões de estudiosos aflitos. Porém, ao acrescentar-se, de modo a acentuar as sombras, que a taxa é a mais elevada desde 2005, obtém-se o efeito inverso ao desejado e a coisa muda de figura. Se não erro, em 2005 os poderes públicos tinham acabado de construir uma resma de úteis campos da bola (e organizado o "melhor Europeu da História"), planeado o TGV e prometido o futuro aeroporto de Lisboa, entre outros desígnios nacionais que nos haveriam de conduzir à felicidade eterna. Os tempos, pois, eram risonhos, tão risonhos que o facto de o número de pobres de então superar o actual não incomodava ninguém, ou quase ninguém. E achava-se importantíssimo lembrar que os portugueses, incluindo os menos afortunados, não são números: são pessoas.
Infelizmente, as pessoas em causa vêem-se transformadas em números logo que os seus alegados paladinos necessitam de agitar estatísticas. As dramáticas condições de vida de perto de dois milhões de cidadãos, de resto uma quantidade relativamente estável ao longo da última década, constituem a garantia de uma vida desafogada para as centenas ou milhares que "combatem" a pobreza como se o salário deles dependesse disso.
E o engraçado é que depende. Não falo dos sindicatos, que há muito desistiram de investir conversa fiada nos desvalidos e passaram a ocupar-se dos funcionários do Estado. Nem falo das organizações caritativas, religiosas ou laicas, as quais, com boas ou duvidosas intenções, conseguem alimentar e vestir quem precisa. Falo das fundações, redes, associações e "observatórios" (?) dedicados, assaz naturalmente, a observar a desigualdade e a pobreza - à distância, claro.
Não gostaria de ofender essas prestimosas entidades, mas desconfio do empenho em salvar os pobres quando os salvadores carecem dos mesmos para se alimentar, vestir, pagar a renda, viajar (os voos para reuniões em Bruxelas são indispensáveis) e, em suma, existir. Se não faz sentido um observador de pássaros pretender dizimar as populações de rouxinóis, estorninhos e toutinegras, também não se compreenderia que os observadores da pobreza desejassem genuinamente a erradicação desta. Ou, se quisermos um exemplo familiar ao capitalismo "selvagem" que tanta indignação suscita, seria estranhíssimo que a Pizza Hut se mostrasse preocupada com o avolumar de apreciadores de queijo derretido.
Donde a perversidade da retórica em voga: espreita-se o "telejornal" e leva-se com "técnicos" autodesignados para "analisar" os pobres (da maneira que se analisa os aminoácidos), enquanto desfiam percentagens que "provam" o respectivo crescimento (a pobreza, nova ou velha, envergonhada ou indecente, escondida ou escancarada, cresce independentemente das circunstâncias). A terminar, lançam meia dúzia de "conclusões", embora sobretudo concluam a urgência em reforçar os apoios às fundações, redes, associações e "observatórios" a que pertencem. A observação da pobreza não pode ficar entregue a pés-rapados.