Andreia Sanches, in Público on-line
O julgamento de 15 envolvidos nos motins de 2008, na Quinta da Fonte, Loures, começa esta quarta-feira. Nos últimos anos, os moradores empenharam-se na pacificação. Recentemente, o director do agrupamento de escolas escreveu à câmara para dizer que a tensão está a voltar. "Há fome no bairro", diz quem lá trabalha.
Quando se referem àqueles dias de Julho de 2008, alguns habitantes do bairro da Quinta da Fonte, concelho de Loures, dizem que foi “a guerra”. Quando houve “a guerra”, viram-se grupos de homens a trocar tiros, no meio da rua. Viu-se a polícia a ocupar o bairro, dias a fio, casas a serem vandalizadas, moradores em fuga. O bairro explodiu, como um estudo datado do ano anterior, do Observatório da Imigração, avisava que podia explodir: a Quinta da Fonte era “um monstro de problemas”, lia-se nesse documento, relacionados com “insegurança, carências económicas e sociais”.
As imagens dos tiroteios abriram os noticiários. E a “guerra” foi apresentada como um conflito entre moradores ciganos e moradores de origem africana — visão contestada por muitos dos que trabalhavam com a comunidade havia anos. Arruinada ficou a já frágil reputação que a zona tinha, como lamentam ainda hoje muitos dos que ali vivem. Por exemplo, Madalena Máquina, 41 anos, mãe de dois filhos, diz que de cada vez que vai a uma entrevista de emprego e explica que vive neste bairro, leva com uma cara franzida e desconfiada. “A minha filha, quando andava à procura de trabalho, só me dizia: ‘Mãe, temos de sair daqui, não há trabalho para quem é da Quinta da Fonte.’”
Quase seis anos passados, tem início nesta quarta-feira o julgamento de 15 pessoas que estiveram envolvidas nos confrontos. Três respondem por motim armado. Todas respondem por detenção de arma proibida. A maioria já não vive aqui — pelo menos, foi isso que nos foi sendo dito à medida que nos fomos cruzando com quem trabalha e vive nos prédios amarelos da Quinta da Fonte. Nuns há caixas de correio, noutros não, nuns há campainhas, noutros não, mas, dizem os moradores, as empresas de distribuição já entram no bairro sem problemas para entregar encomendas.
Como está hoje o bairro? “Há dez anos, quando aqui cheguei, estava caótico. Em 2008, aquilo que se viu [as cenas de tiros] já não correspondia exactamente à realidade do bairro. Mas quando algo de mau acontece, geralmente segue-se uma coisa boa”, diz Félix Bolaños, presidente do Agrupamento de Escolas da Apelação.
Tensão, outra vez
Depois dos tiros, o Governo anunciou um contrato local de segurança (CLS), que envolveu as freguesias da Apelação, Camarate e Sacavém, a câmara, a polícia, as escolas e dezenas de outras entidades — a experiência alargou-se depois a outros pontos do país. “De 2008 até 2011 foi feito um trabalho fantástico, que pode ser um exemplo europeu de como se faz uma intervenção [num bairro]”, continua o professor.
No último ano e meio, contudo, algo mudou. “E sente-se uma tensão muito grande [no bairro e na escola].” “Um nervosismo” como não se sentia havia muito tempo. Há cerca de um mês, Félix Bolaños escreveu uma carta à Câmara de Loures e a vários outros parceiros. Para dizer, no essencial, que até acha normal que o investimento público tenha diminuído a partir do momento em que uma certa normalidade se foi instalado. Mas que a crise atingiu em força a Quinta da Fonte. As pessoas perderam o emprego, “muitas têm perdido o rendimento social de inserção, ou os subsídios de desemprego, há muitos problemas alimentares” e “as famílias mais competentes” emigraram.
A Associação de Jovens da Apelação, que depois da “guerra” passou a ter entre os seus dirigentes vários rapazes do bairro, activos e influentes na comunidade, morreu. Estudaram, tiraram cursos e partiram. Também os mediadores que foram formados “são hoje muito menos”, continua Bolaños. Na verdade, mediador, com esse nome, só há um. “Largámos um bocadinho a rua.” Entretanto, nos últimos dois anos, foram realojadas cerca de 600 novas pessoas nos fogos que ficaram livres.
“Formalmente o CLS já não existe”, diz a vereadora da Câmara de Loures Eugénia Coelho (CDU). O Governo deixou de financiar. “Mas na última reunião com o ministro [da Administração Interna, Miguel Macedo, do PSD] ele disse que haveria um novo contrato, com outro nome, mas com a mesma filosofia. Estamos a aguardar.”