Sandra Afonso, Joana Gonçalves, in RR
Na saúde surgem os primeiros sinais de otimismo, que dão margem a uma reabertura gradual da economia. O equilíbrio entre os dois não será fácil e especialistas do Centro Europeu de Prevenção e Controlo de Doenças assumem a possibilidade de um retorno ao confinamento. Mas com ou sem retrocesso, serão as empresas capazes de se adaptar a esta nova realidade? “Duvido que muitas o consigam fazer”, alerta economista.
Dois meses após o início do surto em Portugal, o número de casos de recuperação supera o número de mortes por Covid-19 e a taxa de crescimento de novos casos é inferior a um. A curva que acompanha a evolução semanal de novos infetados já atingiu o ponto de inflexão e apresenta agora uma tendência decrescente.
O cenário parece favorável ao início do desconfinamento, que teve início nesta segunda-feira, no entanto a taxa de letalidade do novo coronavírus continua a subir e o país regista um excesso de mortalidade desde março, mês em que surgiu o primeiro caso confirmado de Covid-19 e foram adotadas medidas restritivas para contenção de contágios.
O número de atendimentos nas urgências permanece significativamente abaixo do normal, desde então. Em 2019, foram atendidos diariamente em urgência cerca de 18 mil utentes, de acordo com os dados disponibilizados no portal da transparência do SNS. Os últimos números disponíveis, referentes a 3 de maio, revelam que apenas 7.470 pessoas recorreram ao serviço de urgências de um hospital público nesse dia.
Em entrevista à Renascença, Jorge Félix Cardoso tinha já alertado para a necessidade de não descurar a assistência médica prestada aos restantes doentes, não infetados com o novo coronavírus. "O sistema não se pode esquecer dos outros doentes, pelos quais é responsável também e, portanto, tem de haver uma cautela para que não se desviem demasiados recursos para o combate à Covid-19".
"A comunicação das autoridades de saúde também deve frisar bem que a necessidade médica urgente é um dos motivos que justificam uma saída de casa", reiterou.
Entre os critérios apontados por António Costa para o levantamento gradual de restrições em Portugal, estão a capacidade de testagem (37.302 pessoas por milhão de habitantes), superior à média da União Europeia, um risco de transmissibilidade do novo coronavírus inferior a 1 e uma taxa de ocupação de unidades de cuidados intensivos que ronda os 55%.
Os três pontos entram na lista do último relatório de avaliação de risco o Centro Europeu de Prevenção e Controlo de Doenças (ECDC, na sigla inglesa), que vai ainda mais longe e reforça a necessidade de fazer o rastreamento imediato dos contactos de alguém que esteja infetado ou apresente suspeitas, quer através de serviços telefónicos dedicados, quer através de aplicações de telemóvel concebidas para o efeito, como forma de quebrar as cadeias de transmissão.
Um levantamento demasiado rápido das medidas de confinamento, concluiu o ECDC, pode causar um rápido ressurgimento das cadeias de transmissão, agravando as já enormes perturbações económicas e sociais. A organização alerta, por isso, para a possibilidade de reintrodução de medidas de confinamento, caso o cenário regrida.
Um sinal de otimismo, apontado pelo primeiro-ministro, é a percentagem de doentes que estão a ser seguidos em casa. De acordo com o boletim diário da DGS, cerca de 96% dos infetados com o novo coronavírus estão em isolamento domiciliário. A atual percentagem em internamento ronda os 4%, com 0,6% em cuidados intensivos.
A taxa diária de ocupação de UCI tem-se situado entre os 50% e os 65%. Destes, 50 a 60% foram diagnosticados com Covid-19, de acordo com os dados divulgados esta tarde pelo primeiro-ministro, que não são públicos, apesar de já terem sido solicitados à Direção-Geral da Saúde.
O primeiro-ministro defende, por isso, que o SNS é capaz de responder a futuros casos mais críticos.
Para evitar sucessivas regressões, de confinamento e reabertura, um estudo elaborado por investigadores da universidade norte-americana de Harvard recomenda que o regresso à atividade económica seja feito, progressivamente, em quatro fases, e não reabrir todos os negócios e estabelecimentos em simultâneo após o período de restrições.
Apesar de ser defensor da resposta governamental, Henrique Barros, presidente do Conselho Nacional de Saúde, tinha já alertado para as consequências que pode trazer para o equilíbrio orçamental.
"Tem de haver um balanço. Não é sério fazer crer que podemos olhar apenas para um lado da moeda. Não podemos deixar as pessoas adoecerem e morrerem para manter a economia a funcionar, mas também não é sério olhar apenas para os aspetos da saúde e descurar completamente os aspetos da economia. Sem economia não temos saúde", defendeu em entrevista à Renascença.
Uma ideia partilhada por Jorge Félix Cardoso, um dos mais jovens investigadores do Centro de Investigação em Tecnologias e Serviços de Saúde (CINTESIS).
"Não é possível continuarmos neste cenário por muitos mais meses. Não nos podemos esquecer que para além de ser uma tentativa de combate à Covid-19 também gerará muitos outros problemas de saúde e não só, por via do empobrecimento, da recessão e dificuldade no acesso à alimentação e cuidados de saúde", alerta o estudante de medicina.
O "lay-off" simplificado permitiu evitar o encerramento de muitas empresas, a maioria continuou aberta, ainda que a funcionar de forma parcial. No entanto, esta que é a medida mais utilizada pelos empresários, não deverá ser suficiente para evitar insolvências e despedimentos a média prazo.
Segundo o economista João Duque, “infelizmente, muitas empresas não vão conseguir manter-se a funcionar mesmo depois da reabertura da economia, pois o tempo que vai demorar a recuperação total para as voltar a manter em estado de sobrevivência (muitas já estariam com dificuldades) será elevado”.
Não há previsão sobre quantas empresas serão afetadas, mas o economista acredita que “sem fôlego para sobreviverem, muitas vão sucumbir. E muitas vezes até a própria procura vai modificar-se o que vai levar a uma alteração definitiva do mercado e, assim, à perda total de capacidade de sobrevivência”.
A solução poderá passar por uma reconversão total. “A única possibilidade para essas empresas será a de modificarem o seu objeto dedicando-se a outra coisa. Serão capazes? Duvido que muitas o consigam fazer”, concluiu João Duque.
Para já, o desemprego inverteu a tendência dos últimos anos, de descida ou estagnação, mas está longe dos números da última crise, o que é normal, uma vez que este é um dos indicadores que mais tempo demora a reagir.
No entanto, apesar das organizações nacionais e internacionais estimarem já um impacto no PIB superior ao registado na anterior crise, não é certo que no trabalho tenha o mesmo efeito. “Fora de Portugal sim”, admite o economista João Duque, mas no nosso país, “com esta medida de mitigação do 'lay-off' simplificado, pode ser que não chegue, no imediato, a valores tão elevados”, acrescenta. Segundo o professor de finanças do ISEG, “tudo vai depender do prazo de recuperação da economia”.
Alojamento, restauração e comércio são os setores que mais recorreram ao "lay-off" simplificado, mas aquele que colocou mais trabalhadores em casa com dois terços do ordenado foi a Indústria Transformadora. João Duque lembra que “as empresas em que foi possível manter o teletrabalho (muitos serviços) puderam manter a atividade sem recorrer ao 'lay-off'”.
Neste momento já estamos noutra fase, pós Estado de Emergência, em que a economia se prepara para reabrir, de forma faseada. Nem todos vão conseguir retomar ao mesmo tempo e muito vai depender da atitude dos consumidores.
“Na recuperação o “medo” vai dominar. Não só o dos trabalhadores, mas também dos clientes. Estes irão ditar a oferta”, defende o ecnomista. “O turismo e os transportes, a indústria aeronáutica, devem ser dos mais afetados”, acrescenta.
O Governo já reforçou por três vezes as linhas de crédito, mas muitas empresas, sobretudo as mais pequenas, continuam a queixar-se de dificuldades de funcionamento, principalmente ao nível da tesouraria.
No primeiro fim de semana de maio, o executivo anunciou mais 5 mil euros para micro e pequenas empresas, 80% a fundo perdido. Segundo o ministro da Planeamento, Nelson de Sousa, este apoio abrange todas as áreas, "mas é particularmente vocacionado para os setores do comércio tradicional, restauração e serviços pessoais". Poderá assim aliviar um dos setores mais afetados.
O economista João Duque destaca duas áreas de atividade: “a do alojamento e restauração (com menos capacidade de resistência) e a da informação e comunicação (com mais capacidade de resistência)”.
Desde que teve início o surto de Covid-19, o Governo tem respondido com sucessivas medidas de apoio à economia. O Banco de Portugal já admitiu uma recessão de 5,7% este ano, no pior cenário, e esta é uma das previsões mais conservadoras. O Governo poderá ter de continuar a responder com novos apoios ou o reforço dos já existentes.
“O reforço das medidas governamentais agora parece inadiável porque muitas das medidas de apoio às empresas já estão esgotadas. Penso que deverão chegar ao dobro do que foi anunciado,” prevê João Duque. No entanto, “há que ver em que medida Portugal tem capacidade de endividamento para tal.”
Ainda não é quantificável o impacto da atual crise na economia, mas o professor de finanças admite que será “imenso”. Estes dados são sinal disso.
Os portugueses já pediram perto de 270 mil moratórias que permitem suspender o pagamento das prestações de um total de quase 24 mil milhões de euros em créditos.
As micro e pequenas empresas são as que têm menor expectativas de sobrevivência e são também as que mais recorreram ao "lay-off" simplificado. Um dado preocupante, se tivermos em conta que “representam quase 80% do emprego em Portugal e 60% do VAB (Valor Acrescentado Bruto)”, alerta o economista. “Por isso é tão importante manter a estrutura empresarial em fase de latência produtiva”, conclui.
Os distritos com mais recurso ao "lay-off" simplificado e pedidos de apoio de trabalhadores independentes são Lisboa, Porto, Braga e Setúbal. Em comum têm o facto de se situarem no litoral e de concentrarem grandes áreas populacionais.
O facto do interior apresentar menos pedidos de ajuda prende-se com a forma como este vírus se propaga, defende João Duque. “É normal que as zonas menos densamente povoadas tenham sido poupadas. É uma questão que decorre da forma como o contágio se propaga.”
Redução do custo de energia "é um projeto adiado", apesar da maior queda de sempre no preço do petréleo
Nem tudo o que veio com esta pandemia é mau, uma das consequências foi a queda a pique do preço do petróleo, no chamado mercado dos futuros, ou seja, as ordens de compra e entrega para os meses seguintes. Isto afetou em particular o mercado norte-americano, onde a cotação do barril atingiu valores negativos. Na prática, estavam a pagar para que alguém recebesse as entregas de crude.
Como chegámos aqui? Por um lado, o mercado está saturado e já não tem espaço onde armazenar petróleo, porque com a maioria das pessoas e indústrias paradas a produção excede o consumo. Por outro, é o resultado de um mercado especulativo, onde muitos dos que compram e vendem petróleo não têm na verdade capacidade para receber e ou guardar o produto.
Com os armazéns cheios, subitamente todos querem vender as encomendas e não há quem compre, por isso, o preço desce a pique e há quem pague para não receber barris de petróleo que, na verdade, nunca pretendeu comprar.
Enquanto tudo isto acontece nos EUA, em Londres, mercado de referência para Portugal, o barril de Brent regista também quedas históricas, mas não chega a valores negativos.
Para as famílias, “preços muito baixos da energia eram ótimos se os pudéssemos aproveitar. Infelizmente, isso é um projeto adiado”, diz João Duque. Só a atual carga fiscal sobre os combustíveis limita consideravelmente o impacto da redução do custo da matéria prima. Já para as indústrias “são boas notícias”, refere o economista.
Menos sorte tem o Estado. “O efeito vem mais por via orçamental. O IVA sobre os combustíveis pode sofrer e, além disso, a baixa no volume de vendas afeta muito o imposto sobre produtos petrolíferos cobrado.” Mas “menos receita fiscal significa mais imposto ou mais dívida a pagar no futuro ou menos espaço para ajudas as empresas.”
"Os hotéis terão de descer os preços se quiserem manter a esperança do turismo nacional"
A descida mais expressiva tem sido na energia, impulsionada pela queda dos preços das matérias primas, em grande parte pela diminuição da mobilidade e da produção industrial.
Nos hotéis e restauração, um dos setores que tem denunciado mais dificuldades, os preços de março ainda não demonstram essa situação, em parte ainda devido ao efeito do carnaval (que este ano se comemorou a 25 de fevereiro), por outro a Covid-19 só começou a alterar os hábitos dos portugueses e a afastar os consumidores dos hotéis e restaurantes a partir da segunda quinzena de março.
Para João Duque, “os hotéis terão de descer os preços se quiserem manter a esperança do turismo nacional e mitigar, de algum modo, a quebra do turismo internacional. Já na restauração prevejo uma subida de preços para compensar a perda de lugares dos estabelecimentos.”
Esta subida de preços é também inevitável nas passagens aéreas, segundo João Duque, “a menos que aqui os governos subsidiem os bilhetes. Dada a capacidade de oferta instalada não acredito que a procura consiga pressionar os preços.”
De qualquer forma, “a inflação, hoje, na 'eurozone' não é problema, pois a taxa de inflação da Zona Euro está nos 0,4% e o objetivo é 2% (próximo mas abaixo). Há ainda muito espaço até ser um problema”, conclui o economista.