24.11.12

Silva Peneda “Lisboa começa a assemelhar-se a uma metrópole de terceiro mundo”

Por Isabel Tavares, in iOnline

O ex-ministro de Cavaco defende que Portugal deve descentralizar os serviços públicos. E até pode fazê-lo com dinheiro da Europa


Silva Peneda é um homem de consensos. O presidente do Conselho Económico e Social diz que na política é preciso haver convicções, “não muitas, mas algumas”. A sua é que é importante haver uma cultura de compromisso. “Nas circunstâncias em que Portugal está não encontra saídas na base de um único poder ou um único homem. A legitimidade política resultante do voto é reforçada pela capacidade de relacionamento com outros centros de poder, sem a qual a aptidão para resolver problemas é nula ou atabalhoada.” Mas para resolver a crise económica, além de vontade política é preciso dinheiro. Portugal deve apostar na reforma fiscal, da justiça e da administração pública e com isso pode conseguir fundos. A Europa deve avançar já para um novo modelo de financiamento. Sem isto, tudo está em perigo.

Na visita de Merkel a Portugal admitiu a possibilidade de protestar contra a chanceler alemã. Fê-lo?

Não. Não e até gostei muito de uma das declarações que fez e do apoio que expressou ao banco de fomento, que é uma ideia minha. Fiquei muito satisfeito e, vindo de quem vem, é sinal de que, a nível europeu, há apoio.

Como e porque surgiu a ideia do banco de fomento?

No primeiro semestre do próximo ano, se tudo correr como está previsto, serão negociados os fundos estruturais. Este banco iria gerir essa verba, servir de veículo financeiro. Os países têm de se adaptar às novas orientações e todos estarão de acordo que as infra-estruturas, as auto--estradas, o saneamento básico, foram boas prioridades numa determinada época, mas neste momento não são.

Quais são as prioridade actuais?

Hoje julgo que há consenso político para que as prioridades sejam concentradas no crescimento económico. Ora era importante haver um veículo financeiro que possa conduzir esse tipo de operações. Eu diria que é uma espécie de BEI [Banco Europeu de Investimento] à escala portuguesa. Isto será negociado, mas sabemos que as negociações com os funcionários são sempre complicadas quando aparece algo de inovador. No entanto, quando se começa uma negociação e se percebe que a decisão já está tomada do ponto de vista político, é mais fácil. Depois do apoio da senhora Merkel não me admirará que a Comissão venha também a apoiar a ideia.

É preciso criar um banco para gerir o dinheiro dos fundos estruturais?

Não sei se a designação é essa, isso é uma decisão política que não me compete. Mas é um banco que não vai ter depósitos, não vai ter balcões.

Será mais uma estrutura pesada?

Não, não, não. Não pode. Se for montada terá provavelmente de ficar sob a tutela do Banco de Portugal, mas com regras muito próprias, não vai competir com os bancos tradicionais, pode é complementar esse esforço. Pode ter uma função muito importante na recapitalização das empresas, porque um dos problemas que temos é que as empresas são muito débeis em termos de capitais próprios. O dinheiro virá fundamentalmente dos fundos estruturais.

Merkel está, por isso, perdoada?

Não. O problema da senhora Merkel tem a ver com o percurso da Alemanha, que nos deu algumas inquietações. Para já, porque quando a crise começou houve sempre uma recusa de a ver como uma crise sistémica e sempre se pensou que seria resolvida caso a caso. A Alemanha só abandonou esta ideia quando percebeu que os efeitos da crise podiam ser devastadores para o país. Houve aí um atraso.

O que é que se poderia ter feito?

Sempre entendi que perante a crise sistémica que se avizinhava a zona euro devia ter uma instância única que fosse responsável pela emissão de dívida pública. Isto iria diluir os problemas dos países periféricos. Não aconteceu assim, estamos a pagar uma factura. Se a União Europeia tivesse tido algumas das reacções que está a ter agora, e que são tardias, teríamos evitado muitos problemas.

A segunda observação é que esta história do desígnio europeu fez com que a própria Alemanha começasse a ter a percepção de que poderia ser uma grande potência mundial – que nunca poderia ser, porque para isso há duas condições basilares, o poderio militar e a independência do ponto de vista energético, e a Alemanha não reúne nenhuma das duas. Esse tempo está a mudar, mas deixou sequelas, a ideia de que os povos do Sul são uns malandros, uns preguiçosos, e isso marcou e marca ainda hoje. As sondagens recentes mostram alguma visão paroquial de que os problemas são resolvidos pelos alemães. Assim deixa de haver uma concepção europeia, e isso é mau. Não é mau só para Portugal, é mau para a Europa como um todo.

Essas divergências vão sair reforçadas neste conselho europeu extraordinário?

As divisões são muito grandes e isso acentua o paroquialismo. O continente só sobreviverá e terá um papel importante no contexto mundial se funcionar numa base coerente. Eu considero, por exemplo, que o modelo de financiamento da própria União Europeia está esgotado.

Porquê?

Porque é um modelo de financiamento que não tem nada de comunitário. Os orçamentos são preparados linha a linha. Eu fazia um jogo comigo mesmo, punha os auscultadores, ouvia só a voz dos tradutores e, pelo discurso, conseguia saber se quem falava era um alemão, um italiano, um francês, porque os argumentos eram repetidos. É um orçamento que não tem transparência nenhuma.

Qual seria para si a fórmula certa?

Quando a União Europeia foi concebida, o Tratado de Roma dizia que tinha de ser financiada por recursos próprios, mas ela é financiada pelas quotas dos sócios, os estados-membros, portanto o cidadão comum vê a União Europeia como um custo. Alguns países, caso de Inglaterra, pensam que estão a ter um custo e não um benefício. Quem é anti- -europeu tem uma série de argumentos para utilizar – e usa-os. Julgo que a UE não tem sabido trabalhar com essa realidade e esta reforma já devia ter sido feita. Perdeu-se tempo. Mas os estudos estão feitos, há várias formas de obter receita com base em impostos sobre o ambiente, taxa Tobin e outras. Isto evitaria estar a discutir periodicamente quem paga o quê, onde sobressaem os egoísmos.

Quais as suas expectativas em relação ao Conselho Europeu extraordinário?

Infelizmente, delineia-se um conselho em que as tensões vão ser muito grandes. Há pouca margem de manobra porque as pessoas falam muito para os seus eleitorados e depois, quando chegam aos conselhos, é difícil recuarem e gera-se uma trapalhada política. Não estou muito optimista. A tendência é para um corte muito aprofundado e a política de coesão deve ser das mais afectadas, o que levanta problemas. Já ouvi declarações de que a proposta é inaceitável e corroboro a afirmação.

Porquê?

Repare, um orçamento da União Europeia com 1% do PIB, estamos a falar de quê? Para a UE, que quer ser uma coisa poderosa, isto é insignificante, não é nada. Há aqui muita insipiência e muito que mudar nesse sentido. Quando falamos em federalismo falamos em transferência entre as regiões, de países mais ricos para países mais pobres. Este é um dos princípios da União Europeia. O azar – o azar não, o facto – é que a convergência não se deu.

O que falhou?

A entrada da moeda única correu bem na primeira década, mas com a crise financeira e económica o que tem acontecido é que tem havido uma divergência entre países. Julgo que o grande debate que está por fazer tem a ver com a seguinte questão: será possível haver uma moeda única em países com fortes divergências em termos de competitividade, de produtividade, de cultura, de tradições? Se a resposta for positiva, então temos de ver que mecanismos e de que instrumentos se deve dotar essa gestão da zona euro para que isso funcione.

E tem uma resposta?

Tenho para mim que a zona euro está profundamente desequilibrada. Devia assentar em quatro pilares fundamentais, a cabeça, um comando, que numa determinada fase foi marcado pela França e pela Alemanha, o crescimento económico, que também não tem existido, o emprego, que também não há, e as finanças públicas, o único pilar que existe, mas que é curto. Estão a fazer-se reformas no sentido de reforçar alguns pilares, mas a meu gosto lentas. Precisávamos de alguma coisa mais.

Identifica-se com alguns líderes políticos?

As personalidades de hoje de quem me aproximo em termos de pensamento político e económico são Mario Monti – que tem um relatório fantástico sobre o mercado interno, ainda não era primeiro-ministro italiano quando o fez, em que muitas das reflexões mereciam acolhimento e debate muito sério, porque são feitas não numa perspectiva nacional, mas numa perspectiva de visão europeia –, e Jean-Claude Juncker [primeiro-ministro do Luxemburgo e presidente do Eurogrupo], com quem partilho ideias mas que além disso é meu amigo pessoal de longa data.

O euro continua a fazer sentido?

Se eu voltasse atrás, e fui um defensor do euro, porventura teria evitado alguns erros. As políticas económicas foram negligenciadas. A moeda em si não está em crise, o que está em crise é a gestão da zona onde ela se aplica. Quando as economias deixaram de crescer, e perante a crise do sistema financeiro, os países com mais dívida são os mais expostos. Esta é uma das fragilidades do euro, que desde o princípio devia ter uma instância de último recurso que acudisse nestes casos e evitasse efeitos de contágio. Não tinha. Aliás, o próprio instrumento que define se o país tem ou não condições de entrar para o euro, que é o Pacto de Estabilidade e Crescimento, ignora coisas essenciais.

Por exemplo?

Por exemplo, Espanha cumpria todas as regras, mas todos sabíamos que na sua base havia uma bolha especulativa na área da construção civil. E isso não é medido. Os critérios são muito nominais, têm pouco a ver com a economia real. E hoje falamos de convergência real.

E se se perceber que o euro foi uma decisão errada?

É um cenário que não pode deixar de ser ponderado. Se um país da zona euro não pode usar moeda, se vê cortadas todas as possibilidade de não ir ao fundo, de ter espaço para se salvar... Eu não gostaria de ponderar esse cenário porque não sei as consequências, que podem ser muito diversas, mas neste momento, se não houver soluções verdadeiramente europeias para a zona euro, as coisas podem complicar-se. Mas penso que até às eleições alemãs o quadro político europeu não vai ter grandes mudanças.

O fim do euro seria o fim da União Europeia?

Não sei perspectivar a Europa sem o euro. Seria o fim do projecto político da União Europeia. Se olhar para a história da Europa, o que a marca ao longo de séculos e séculos são lutas fratricidas entre povos. Os últimos 60 anos são excepção e 60 anos são curtos numa história. No entanto, se houver consciência deste facto e do que representa o valor do projecto europeu, que significa fundamentalmente um projecto de paz – e paz significa também crescimento económico, solidariedade, democracia, liberdade, Estado de direito –, o projecto poderá desenvolver-se. Agora que ele está em risco de soçobrar está.

Já explicou os desvarios da Europa. Quais foram os desvarios de Portugal?

Os desvarios de Portugal têm como consequência as facturas que estamos agora a pagar. E o Conselho Económico e Social (CES) chamou a atenção em muitos pareceres, ao longo de vários anos, para despesas não orçamentadas, dependência em relação ao exterior, aumento da dívida. Aliás, fiz questão de, no parecer sobre o Orçamento do Estado para 2013, anexar uma folha com frases de há dez anos. Portanto, se aconteceu não foi por falta de aviso.

Qual é a sua sensibilidade sobre a sensibilidade do Presidente da República em relação a este orçamento?

[Risos.] Não sei. Sei a minha, que foi transmitida ao senhor Presidente da República através do parecer do CES, no qual me revejo. O parecer é feito por muita gente de vários quadrantes, sindicatos, patrões, universidades, autarquias, associações da sociedade civil, economistas, e é preciso ver que ninguém votou contra [houve abstenções], o que significa que é um documento de compromisso.

Como vê o Orçamento para 2013?

Este Orçamento é condicionado por vários factores. Primeiro, é uma factura dos erros e dos desvarios do passado. Segundo, é feito num clima de grande incerteza, a ponto de o próprio governo ter feito no relatório que acompanha o Orçamento uma análise de risco. É também feito por um país que está na zona euro e na base de um programa da troika. Dito isto, não estamos muito confortáveis com as previsões do governo e dizemos que o produto vai decrescer mais do que está previsto, o desemprego vai crescer mais do que está previsto, o desinvestimento vai ser maior.

De todos esses, há algum ponto em que seja possível mexer?

O programa com a troika. O programa tem erros de concepção ou aspectos importantes que não foram devidamente considerados.

O que é que não foi ponderado?

O forte desequilíbrio da estrutura produtiva portuguesa, muito assente em pequenas e médias empresas. Quando vem uma aragem adversa, as médias abanam mas conseguem reestruturar-se, as pequenas fecham a porta e acabou. E é isso que explica a subida do desemprego. A segunda realidade é o forte endividamento das famílias, que é um problema complicado. Todos os processos de ajustamento envolvem dor, mas receamos estar a entrar num processo em que temos dor e não há ajustamento.

Que alterações podiam ser feitas ao programa com a troika?

Quando a troika esteve cá eu até disse que o Memorando devia chamar-se Memorando de Entendimento Evolutivo. Não se trata de renegociar a dívida, a negociação tem a ver com aspectos como os encargos financeiros, os prazos de amortização. E também achamos que há necessidade de haver um certo equilíbrio entre as medidas de contenção orçamental e as de crescimento económico.

Tem outras opiniões, além da do CES?

Eu entendo que os problemas da economia portuguesa não são passíveis de resolução em programas de dois anos. É curto. O busílis é criar condições para haver crescimento económico e há matérias que podem ajudar, como os fundos estruturais ou a gestão financeira, mas há outras mais profundas, como a reforma fiscal, a reforma da justiça e a reforma da administração pública. Devíamos ser um país com grande estabilidade fiscal e não um sistema que muda todos os anos. Isto é importante para quem investe, saber quanto vai ter de pagar. E uma reforma fiscal que actuasse a partir do alargamento de incidência para permitir baixar os impostos. Mas isto não se pode fazer sob pressão. Uma negociação a este nível tem de ter vários pontos, porque torna mais fácil que todos se revejam em algum dos pontos apresentados. Isto é que é o jogo do compromisso. Outro aspecto importante é a coerência entre as políticas. Muitas vezes toma-se uma medida que é correcta do ponto de vista financeiro, mas as consequências do ponto de vista económico futuro são piores. Hoje há uma espécie de ditadura financeira e isso é mau.

Numa altura em que se discute a reforma da administração pública seria importante voltar ao tema da regionalização?

Há uma ideia que me é muito cara e não tem tido acolhimento, se calhar o defeito é meu, que a vendo mal. Quem conhece o país sabe que as cidades médias – Bragança, Mirandela, Guarda, Castelo Branco... –, têm hoje uma qualidade de vida fantástica. Mas Lisboa começa a assemelhar-se a uma metrópole de terceiro mundo, com muita concentração. As grandes cidades da Europa não têm estas características e seria importante equilibrar o território.

É aí que entra a regionalização?

Não, basta irmos para a descentralização. O que é que justifica hoje que praticamente todos os serviços estejam concentrados na capital? Porque não pensar num programa, que exige consenso político, em que, de forma progressiva, os serviços da administração pública sejam espalhados pelas diversas cidades do país? Porque é que as inspecções- -gerais, as direcções-gerais, o Instituto Nacional de Estatística, o Tribunal de Contas hão-de estar em Lisboa, com as tecnologias de informação de hoje e a rapidez com que se circula nas nossas estradas? Eu vivo no Porto e trabalho para o CES a partir de minha casa, muitas vezes de uma forma mais eficaz do que quando venho a Lisboa. A presença física deixou de ser um aspecto fundamental do trabalho.

E o que é que se faz às pessoas?

Isso é carregar no botão do complicómetro, porque até seria uma forma de ter sangue novo na administração pública.

Mas teria custos...

Estou convencido de que isto podia ser financiado de uma forma comunitária. A minha experiência mostra que na Europa tudo é negociável, depende do embrulho. Se embrulho como sendo um instrumento de política regional, que tenha a ver com o equilíbrio territorial do país, tenho a impressão que haveria condições para ser financiado pela UE. Admito que se falar disto neste momento de emergência, de situação dramática, as pessoas vão dizer “este tipo é doido”. Não acredito na criação de esquemas do tipo as empresas das cidades do Interior deixarem de pagar impostos, isso é desigual. Se não houver uma integração forte de políticas públicas, caminhamos para um Interior cada vez mais desertificado, com a perda de qualidade de vida inerente.

Porque é que acha que a ideia não tem tido acolhimento?

Porque as pessoas pensam a curto prazo, nas coisas para amanhã. Mas fazer a reforma da administração pública só na base dos 4 mil milhões de euros é curto. Esta, para mim, seria uma das componentes interessantes, que merecia ser discutida.

Continua a defender a regionalização?

Sim. Mas entendo-a como uma peça da reforma do Estado, não pode ser vista como uma atitude reivindicativa. Faz sentido para ter um Estado mais barato e eficiente. Pensar na regionalização numa lógica algarvia, de poder, criar mais lugares, mais tachos, mais automóveis, mais motoristas, mais burocracia, não. Se não for feita de uma forma clarinha, então não vale a pena.

Nunca aceitou um tacho?

Houve várias coisas que não aceitei e podia ter aceitado. Mas tive vergonha. Quando saí do governo fui convidado para administrador da CGD. Ia ser visto como mais um que teve ali um lugar político e como não tinha experiência na banca resolvi não aceitar. Voltei à comissão de coordenação, depois o engenheiro João Cravinho demitiu-me e fui para a Sonae, onde fiquei que até Durão Barroso me convidar para o Parlamento Europeu, onde gostaria de ter estado mais um mandato, mas o partido entendeu que não. Quando a Dr.a Manuela Ferreira Leite me convidou para aceitar a presidência do CES, um cargo equiparado a ministro, decidi ir ver a legislação. Quando vou ver quem assinou o decreto, lá estava: José Almeida Silva Peneda! Portanto, 20 anos antes, criei o meu próprio posto de trabalho. Isto é que é visão!